[©sguimas]
 
 
 
 
 
 
 

 

adriana versiani

Carlos,

 

 

sobre a canga de minério

no quintal da minha infância

em uma cidadezinha qualquer

repousa a memória

do caderno de caligrafia

incapaz de domar

as primeiras palavras

fantasmas íntimos

que ainda hoje

me assombram

 

 

Adriana Versiani

Na Germina

> Poesia

> Sementinha

 

 

 

 

 

 

 

adriane garcia

holocaustos

 

 

As baleias azuis param de cantar

Os submarinos se posicionam

Toda guerra é fria

Mas as bombas aumentam

A temperatura

 

Um homem sem teto anda

Acorrentado a sua carrocinha

De destroços

Dois cães em corda curta

São seus companheiros

De miséria

 

Tenho mais piedade pelos cães

Pois todo homem é culpado

Os cães não

Nem as baleias

Os submarinos, sim

 

No meio do caminho tinha uma árvore

Tinha, não tem mais

Minhas retinas estão fatigadas

Do homem

E deste século.

 

 

Adriane Garcia

Na Germina

> Poesia

> Metalinguagem

 

 

 

 

 

 

 

 

alexandre marino

eu também amei uma pedra

 

 

Houve um dia

em que desisti dos homens

e os troquei pelas pedras.

Dialogo com pedregulhos

esquecidos nas calçadas.

Cascalhos abandonados

nos meios-fios.

Tímidos paralelepípedos

falando sozinhos,

testemunhas do impensável.

Britas tapetes das máquinas.

Pedras da lua

e seu olhar nostálgico.

Pedras de toque como a do poeta.

O asteroide que sobre nós cairá,

impiedoso,

em dois mil, oitocentos e pouco.

Amo as gárgulas feitas de pedra

que observam a cidade

e dos homens sabem mais que nós.

Ah, pedra que afiava

a lâmina do velho canivete

com que meu avô picava o fumo...

Os obeliscos a lamentar

a deterioração da História.

As pedras da muralha que separa os homens

e ainda assim preserva sua glória.

O pó de pedra que faz a faiança.

As pedras de Macondo,

brancas e redondas como ovos pré-históricos.

O caminho das pedras sobre as águas

e a ilusão do milagre.

As pedras da cordilheira,

calor sob a neve.

Lavadas no leito do rio,

oferecem água limpa.

Em Macchu Pichu me apaixonei por uma pedra,

desejei suas curvas e reentrâncias.

Sensual, diante de meus olhos,

mirava-me de perto a distância.

Deixei-a a sós,

sob o peso da história

e meus desejos de criança.

Hoje minha alma vive na montanha

e meu corpo é triste como as pedras

que se movem em nossa órbita

e desejam castamente a carne da Terra.

 

 

Alexandre Marino

Na Germina

> Poesia

 

 

 

 

 

 

 

bruna lombardi

supermercado

 

 

Ainda ficou um pouco

de teu cabelo no travesseiro

de teu corpo no meu corpo

de teu cheiro

um pouco da tua colônia

em alguns vestidos meus

ficou no meu cotidiano

um gosto bobo de adeus.

Ficou um resto de shampoo

no teu frasco no banheiro

de tudo ficou um pouco

de teu jeito, de teu cheiro.

Ficaram umas coisas tuas

espalhadas pelo quarto.

Ficou teu riso marcado

na moldura no retrato.

Em tudo ficou um pouco.

Ficou nosso jogo de damas

(eu branco, você preto)

intacto no sofá-cama.

Alguns discos teus, alguns livros

na parede atrás da porta

a gravura de Dalí

e tua natureza morta.

Um pouco de teu silêncio

se espalhou pela casa

tua xícara de porcelana

verde e branca, sem a asa.

De você ficou um pouco

do trem daquela viagem

do nosso jantar chinês

da nossa camaradagem.

Ainda ficou tua letra

em alguns papéis amassados.

Em tudo ficou um pouco

na rua, no supermencado.

Ficou um pouco de você

no mar, no rio, na serra

na estrada da casa de campo

na pedra, no gato, na terra.

Ficou um pouco do teu rosto

no rosto dos meus amigos

ficaram palavras tuas

em tudo aquilo que digo.

Eu fiquei com o teu jeito

de querer falar primeiro

teu corpo no meu corpo

cabelo no travesseiro.

 

 

Bruna Lombardi

> Na Web

 

 

 

 

 

 

 

josé brandão

ressaca

 

 

A Carlos Drummond de Andrade

 

 

Som de bronze nenhum, o tédio tange.

No mármore e no sangue a aderência.

Mas nós que somos filhos da carência,

que oculta flor de fogo nos responde?

O besouro do olvido nos confrange.

Por que condutos fluem as ondas, onde?

A alameda febril consome a angústia

com o seu ímpeto. Nós, os insolventes,

quem somos? O ar nos modela a forma vã,

e contemplá-la é flauta. Vagas? Entoamos

o cântico do mito constelado, dementes

e mansamente lúcidos na escura e chã

(bruma, nudez) medida que geramos.

Quem somos nos exaure em ouro e astúcia.

 

 

 

 

 

 

josé carlos aragão

dois poemas

 

 

para drummond, frost & filhos s/a

 

 

No meio do caminho tinha duas pedras.

 

Escolhi a que tinha mais limo

e isso fez toda a diferença.

 

Fez toda a diferença

a que tinha mais limo.

 

Mas a que tinha mais limo

não tinha mais limo

que as minhas retinas tão fatigadas.

 

E isto, sim, fez toda a diferença.

 

 

 

 

 

 

poema de cinco fases

 

 

Quando eu nasci

nenhum anjo torto deu as caras

pra traçar o meu destino.

Nenhum coach

desses que não têm mais o que fazer

veio me dizer: Vai ser gauche!

 

E eu dei nisso: um José.

E agora?

 

Os homens, agora, matam mulheres.

Não há mais bondes

só pernas. E meus olhos

perguntam o tempo todo

através dos óculos.

 

O homem calvo da barba branca

é triste, não se chama Raimundo

não acredita em deuses

e tem poucos amigos

o homem calvo da barba branca.

 

Mas ainda (e tão somente)

o comovem

essa lua, esse vinho

e seus cachorros

que não tinham entrado na história

e já não estão mais aqui.

 

 

José Carlos Aragão

Na Germina

> Poesia Visual

 

 

 

 

 

 

 

kiko ferreira

dois poemas

 

 

Ocaoso

 

 

o      c

a

o      s

é

r

a

i

o

miúdo,

raimundo.

 

c a s o

r a s o

c a s i m

c o i s a   p o c a

de

é p o c a

ruim

 

p e r t o

do

d e s c a s o

do

a c a s o

 

dos

t

r

o

v

õ

e

s

e

d a s

t

r

o

m

b

e

t

a

s

 

d a s    h i s t e r i a s

d a s    h i s t o r i n h a s

c o l e t i v a s

 

d o s

m o v i m e n t o s

 

do

EU

p r i m e i r o

 

o u

c o l a

o

c o l e t i v o

 

ou, raimundo,

não tem solução

 

 

 

 

 

 

pedra po(e)mes

 

 

numas

vezes,

uma

pedra

no

caminho

é

pedra

noutras,

caminho

 

 

Kiko Ferreira

Na Germina

> Poesia

 

 

 

 

 

 

 

lila maia

magma

 

 

Como se tudo em mim fosse mais

sou eu que me lanço as pedras.

Deixo a faca no peito sem morrer.

Há um fogo no corpo se fechando em ciclo,

esse poema começando do fim.

Inferno? Partilha?

Nada me restitui a inocência

ainda que o sol no café da manhã

seja mais um ofício de querer a lição.

 

O hábito de sofrer diverte.

 

 

Lila Maia

Na Germina

> Poesia 1

> Poesia 2

 

 

 

 

 

 

 

 

líria porto

dois poemas

 

 

messias

 

 

e agora messias?

seu governo acabou

(nem chegou a existir)

e a fome aumentou

e o povo sofreu

e agora jair?

e agora você?

você que é cruel

que agride as pessoas

que faz ameaça

que mente e odeia

 

e agora messias?

está sem discurso

promove a balbúrdia

renega a ciência

já não pode fingir

já não pode negar

atirar já não pode

e a noite gelou

o dia escureceu

o choro aumentou

a alegria não veio

não veio a esperança

e tudo dá medo

e tudo dá nojo

e tudo murchou

e agora messias?

 

e agora messias?

sua palavra é torpe

seu instante é de queda

sua gula de confronto

sua falta de rumo

sua motociata

sua milícia

sua insolência

sua maldade

messias — e agora?

 

sem poder e sem crédito

quer sair do país

não existe país

quer ser importante

o povo o renega

quer voltar pro palácio

trancaram-lhe a porta

messias — e agora?

 

se você corresse

se você fugisse

se você se escondesse

usasse disfarce

mas você não consegue

e agora padece

qual bicho acuado

sem luxo ou conforto

sem mulher sem cavalo

sem filho ou capacho

que o levem pra longe

você está perdido

e agora messias — vai pra onde?

 

 

[final do 2° turno, 2022]

 

 

 

 

 

 

alfândega

 

 

no meio do descaminho tinha umas pedras

tinha umas pedras no meio do descaminho

tinha uns diamantes

 

nunca me esquecerei desta rapinagem

na existência da minha pátria fatigada

tinha uma quadrilha e umas ratazanas

nos descaminhos do brasil

 

 

Líria Porto

Na Germina

> Poesia

> Tudo vira poesia

 

 

 

 

 

 

 

luci collin

a porta da verdade

 

 

                Chegou-se a discutir qual a metade mais bela.

                Nenhuma das duas era perfeitamente bela.

                Carlos Drummond de Andrade

 

 

Abandonada a prece

pelas urgências do corpo,

traz-se o rumor do infinito

em albores de gestos nublados.

 

O barco antigo deixou a costa

e um fogo indolente cozinha a comida

até a flor um cansar-se.

 

Na encruzilhada

o tantofazer dos caminhos,

um quê de indecoro lateja e cintila

nesse meio perfil que se diz franco.

 

Aquele tipo de capricho colado aos beijos,

aquele tipo de ilusão,

aquele tipo de miopia

não vê que o meio-fio dessa via

não antepara

e esse sorriso jamais esplenderá

os fogos da verdade.

 

 

Luci Collin

Na Germina

> Contos

> Flor Bela d'Alma

> Poesia


 

 

 

 

 

manuel bandeira

carlos drummond de andrade

 

 

O sentimento do mundo

É amargo, ó meu poeta irmão!

Se eu me chamasse Raimundo!...

Não, não era solução.

Para dizer a verdade,

O nome que invejo a fundo

É Carlos Drummond de Andrade.

 

 

Manuel Bandeira

Na Germina

> Poesia

 

 

 

 

 

 

 

canção amiga, por milton nascimento

 

 

 

 

 

 

paula vaz

belo horizonte pós-drummond

 

 

Não nasci em Itabira

Sou de Belo Horizonte

Por isso sou alegre e triste

contida e desmedida

Quarenta por cento de ferro nas artérias

Sessenta por cento praça da liberdade

E esse estranhamento do que na vida é sede de ilusão

A vontade de amar que me anima e arruína

vem de Belô

dessas montanhas que tramam e entranham

sua borda infinita evocando o mar

De BH trago esse poema que te ofereço

Esse broche de lagartixa que era da minha avó

histórias do Fernando Sabino

e dos cavaleiros do apocalipse

o chaveiro da Itacolomi

a memória de Angela Lago

e um raminho desses ipês

que tomam conta dessa cidade-jardim

Tive ouro tive cobiças tive enganos

Hoje sou poeta

Sim meu amor

É belo o horizonte

Apesar dos pesares

do medo da morte

do medo da vida

É belo o horizonte

 

 

Paula Vaz

Na Web

> Poesia

 

 

 

 

 

 

rafael fava belúzio

cidadezinha qualquer

 

 

Um homem vai devagar. Anda nas calçadas sem pressa. Cumprimenta um, dá bom dia ao outro. Arrasta-arrasta, arrasta-arrasta o chinelo de dedo. Senta no banco de pedra e tira um cigarro do bolso. Suga silencioso o sumo de fumaça. E sooooooopra... Círculos cinzas saindo no céu... Por entre a fumaça, observa a igreja mais atrás. E suga sem cessar o cigarro. Outra baforada lufa o vento... E mais algumas, prazerosamente, preguiçosamente. Joga o toco de cigarro no chão. E segue devagar o arrasta-arrasta do chinelo.

 

Um cachorro vai devagar. Passa pelo homem dos chinelos e roça as pernas dele. Língua para fora, abanando o rabo, procura carinho. Acaba indo deitar na grama, se eessttiiccaannddoo sob o sol. Fica com focinho de preguiça... Olhos fechados, abertos vez ou outra. Levanta bem aos poucos e se ar-ras-ta até o coreto. Encontra outros cachorros, cheira daqui, cheira dali. Olha a carroça que passa e vai até a rua.

 

Um burro vai devagar, puxando uma carroça. Patatá, patatá; patatá, patatá. Batendo forte as patas sobre paralelepípedos. Patatá, patatá; patatá, patatá. Carrega homem bocejo, atrás do chapéu de palha. Patatá, patatá; patatá, patatá. Sente uma corda guiando e vai dobrando a esquina. Patatá, patatá; patatá, patatá. Impede o carro passar e faz a moto correr. Patatá, patatá; patatá, patatá. Joga esterco na rua, fertiliza e perfuma. Patatá, patatá; patatá, patatá.

 

Devagar... As janelas olham. Acompanham o passar do burro por toda a extensão da rua. Procuram alguma fofoca, alguma novidade que seja. Espiam o céu para saber se vai chover, atrás das montanhas parece haver nuvem. Sorriem para a moça, dão tchauzinho para a criança. Olham a calçada de um lado, olham a sala do outro. Contemplam as outras janelas, todas paradas, nem vento.

 

Eta vida besta?

 

Carangola, outubro de 2012

 

 

[Publicado originalmente no livro 1929.

Belo Horizonte: Impressões de Minas, 2020]

 

 

Rafael Fava Belúzio

> sempre um papo

 

 

 

 

 

 

 

silvana guimarães

dois poemas

 

 

supermercado

 

 

devo-lhe um poema de amor mas

preciso fazer a lista das compras

andar sobre as águas quebrar pedras

romper a fortaleza das palavras

convencer estrelas e cotovias

buscar um farrapo de eternidade

limpar a angústia dos móveis

tirar o encantamento do armário

desvendar seu abismo meus ismos

ferir o pudor raspar o desejo

pera uva maçã ou algodão doce

como se como sempre como sou

adivinhar seu cheiro de magnólia

a febre a dor o desalento implícito

amar e desamar o seu avesso

 

: apalpo a palavra pêssego e ela

se diz entrega em suas mãos

 

 

 

 

 

 

ancestral

 

 

pelo dorso da minha gata

desliza uma mulher

em chamas

 

em seu miado

um rio me atravessa

em tumulto

 

nas suas antenas-orelhas

vislumbro o mundo

encardido

 

a flor: a náusea: o nojo

a morte: esse desperdício

o amor: essa condenação

 

 

Silvana Guimarães

Na Germina

> 7 Contos de Réus

> A Genética da Coisa

 

 

 

 

 

 

 

 

quadrilha, por drummond

 

 

 

 

 

 

outubro, 2025