[imagens: pyx in the form of a dove | french 13th century |

 c. 1220/1230 | national gallery of art]


 
 
 
 

QUEM SABE

 

 

apenas o fruto

premature o gosto

apenas o instinto

reitere o gozo

apenas o olho

antecipe o acordo

apenas a cor

adivinhe o luto

apenas o grito

ultrapasse o senso

apenas o vento

assuma os galhos     desfaça as linhas

do mapa     de silenciamentos

manifeste-se o amor convalescente

apenas a saudade

redesenhe o gesto

apenas a palavra

sustente a concretude da ausência

nas rotas da duplicidade:

a medida do olhar correspondente

a presença de um sol incontestável

 

 

 

 

 

 

ÁGUAS DESABRIGADAS

 

 

navegar é impreciso

já que os ventos

as abissas

as tempestades

o canto das sereias

as lendas dos afogados

já que os rochedos

os rombos no casco

já que a falta dos ventos

o gelo insuspeito

o monstro escondido

já que as linhas imaginárias

as avarias no leme

a sede por água insossa

já que as correntes profundas

já que natureza da salsugem

turbam fluxo e destino

borram as cartas náuticas

e impulsionam a incerteza

de que a ilusão da terra firme

comove mais que a viagem

 

 

 

 

 

 

REPTO

 

 

tente-me

porque é azul demais e

ofego

rasgue-me

porque os pássaros sabem e

itinero

afine-me

porque é louco o gosto e

aparvalho

ria-me

porque é a luz que abre e

retino

brilhe-me

porque a boca é nunca e

retumbo

finja-me

porque o sangue exala e

rumoro

cuspa-me

porque a noite é presto e

sincopo

nunque-me

porque o resto é sina e

bem-quero

 

 

 

 

 

 

ANUNCIADA A QUEDA

 

 

brusca de temperatura

estás em antares quiçá

eu arranco o mato

em volta do limoeiro

degustas um boeuf bourguignon

eu não como e nem passo perto

que aqui só pão desamassado posto no correio

esquias em Levi possivelmente

elucubro a descrição de leviatã

cruz credo será fim do mundo

bebericas DRC 1945 quem sabe

tomo água da chuva sabe-se

bem gelada desce pela calha

se calhar pego uma gripe e fico de cama

congeminando fisiologias e vírus

enquanto te enrolas em caxemiras

enquanto praticas eventualmentes

passa o carro anunciando dúzias de ovos

ouves barroquismos e trilos e mordentes

eu que não mordo que não mostre os dentes

o dia nasceu dramático e vilão

o dia mais frio do ano porventura

no hemisfério sulíssimo

na parte desescalada do mapa

no meu quintal

nas poças trementes

aqui no meu coração

 

 

 

 

 

 

DESCORTINADO

 

 

como você dizia

quando o calor esmorece

quando o olhar sentencia

como esse dia anoitece

quando o desejo fenece

quando o ouvido se esquece

como o que se queria

quando jamais se sabia

quando abruma algum dia

como o desfecho amanhece

quando a sede ensurdece

quando a doçura agonia

como um adeus entristece

quando o trovar silencia

quando o silêncio envelhece

quando a palavra é vazia

como você nunca disse

 

 

 

 

 

 

HISTÓRIA NATURAL

 

 

Manhã inteira revisando um livro mergulhada

na nossa língua portuguesa e as regras que prevalecem

 

café lentamente e olhar pela janela olhando olhando

bem longe muito longe mesmo a serra do mar — lá está

encoberta (lá está pra sempre neste minuto)

 

olhando a árvore de nome comprido: sibipiruna do qual

sempre me esqueço está depenada pelo inverno

mas a canjarana persiste mas a canafístula perdura mas

o araribá resiste às piores geadas e o freixo-comum

e a lavanda floresce e suporta a escassez suporta as

temperaturas mais frias porque como os pássaros

têm estratégias têm corportamentos vários por exemplo

hibernação ou a inquietude migratória tudo é estratégia

 

a minha: o mergulho na revisão da língua do livro e

às vezes olhar pela janela à espera de quando

eu mesma puder voltar.

 

 

 

 

 

 

ONDE ESTÁ?

 

 

Há loucura

no carro em que se escuta

a Partita II BWV 826

na moto velocíssima que destrói

o (brilhante) retrovisor

na própria estação pluviosa de

luzes amarelo verde vermelho

nesse lapso de espera (brilhante)

no compasso 27 em que o 4º dedo

faz a passagem fora do tempo

um zeptosegundo

na moto cuja prestação venceu

no intérprete (brilhante) que perdeu-se

nesse fim de setembro de só chuvas

no rosto que se olha no retrovisor

no tempo estilhaçado num staccato

no yottasegundo em que se chora

só por dentro

o sinal se abre

a dinâmica pede aceleração

se repete a travessia

não se vê mais a imagem

no espelho

onde está a loucura

do que se é

 

 

 

 

 

 

FEITO

 

 

la femme nouvelle (...) qui aura des ailes et qui

renouvellera l'univers. G. APOLLINAIRE

 

 

toda feita de amor

deixou lhe acontecerem asas

administrou a argúcia e a fineza das carícias

da carne e cerne regeu a maravilha dobrada

 

toda feita de amor e de arvoredo

pensou-se o itinerário do que é súbito

teceu murtas e arcanos reticentes

preparou misteriosos refrescos

num fermentar pelo labor da saliva

 

toda feita de amor e rio

conquistou clarões e rotas de sede insana

corrigiu enlouquecidos alísios e

não duvidou mais de hiatos

das mãos de pedra

do rocio da seda sobre o corpo arrepio

 

toda feita de amor e lume

flagrou-se exímia e vigente

a constatar-se cerimônia

da boca tomada por canções

nostálgicas

 

sustentou-se no etéreo

ocupada de céu

toda feita de voo

 

 

 

 

 

 

CÉU ABERTO

 

 

abundam figuras de gesso e madeira

cenas de dor e martírio

promessas de algo em troca de

pedido atendido        graça alcançada

milagres em cada contorno

cacos de espelho no topo do altar

um pássaro gigante de isopor

asas abertas e sem olhos é

o espírito que veio

 

andorinhas agitadas e reais

cruzam o teto do templo

no frenesi do sem direção

uma delas se enfia num oco

do púlpito num gesto de

esconde-esconde fará ninho

tão perto de onde se lê

em letras precárias: aqui

a palavra viva da salvação

 

 

 

 

 

 

GUERRA

 

 

dias de escuridão

em que se confundem

ismos sismos cinismos

enciclopedismos

em que se constatam

sabedorias vencidas e

tecidos rotos

torturas dessabidas

lama e barrela das almas

encardidas do poder

de fato

 

nos diz que chora

a mulher

nos conta o homem

que chora

e as palavras melhores flutuam

sem cabimento

a noite que se segue é

noite de mar

em que fragmentos e destroços

não logram contar histórias

de plenitude

 

cindida vexada inecessária

pergunta-se de seu futuro

a inteireza

 

 

 

 

 

 

AÇO

 

 

aquilo que diz que é imediato

e logra cumprir-se uma invernia

faz carnaval dentro do peito

ri mesmo de qualquer teoria

aquilo que quis ser todo visto

verso e longe e remorso e infinito

aquilo que fez-se tão

vago vazio e relicário

aquilo que é só

um alumbramento

aço que insiste no não

aquilo que diz que não fica

aquilo que inventa que não fez

aquilo que então satisfez

a brecha a trinca

e essa vez

 

 

 

 

 

 

PASSEIO

 

 

da vida que

não é vista

tino de cobra que se entoca

perseverança de traça

graça de formiga

grasnado de garça

trilha de caramujo

vontade de avenca

concentração de minhoca

e redondeza da pedra

e vivacidade da erva

e ecletismo da sarça

a alma tal da oiticica

do cogumelo esse riso

do colibri o inciso e

da vida que mais viceja

o pomo na ponta do galho

adeus da fruta que apodrenta

rito da semente

que fica

 

 

 

 

 

 

FOLHINHA

 

 

o anjo em frente à Virgem

nos olhos da menina

ao fundo, pinheiros desconhecidos

e mais ao fundo uma montanha

o longe

: via um belíssimo Da Vinci

na folhinha no armazém do avô

 

onde começam vida e morte

presume a menina

na nuvem desaparecida em chuva

no rio que se desfaz no mar

tudo é pergunta

 

as cenas que via no calendário:

a velha ama lavando os pés do dono

o trabalhador forjando uma lâmina

donzelas colhendo frutos

 

o olhar em volta

rescende a sede imediata

as leis da perspectiva decretaram

que a cor das cenas cotidianas

fora extinta

 

 

 

 

 

 

FIXAÇÃO DE METAS

 

 

minha carne arde

esquento a marmita de alumínio

vou pro trabalho num container

mastigo um simulacro de fascínio

dou um sorriso de plástico

subo na cápsula  lotada rumo ao lar

vejo o outdoor belíssimo de glórias

passo uma legítima nota falsa

e penso que estou ingerindo carne

abro a marmita de pecúnia ao molho

abraço as próprias pernas na cama

toda a carne arde sem patrocínio

abro as próprias pernas plásticas

mastigo um relatório holográfico mal feito

dou um suspiro chocho sem raciocínio

vou pro trabalho numa caçamba

tomo uma cápsula de plástico

a carne no fogo dum inferno

o jogo só um feromônio

o todo um escárnio

meu extermínio

esse milênio

 

 

 

 

 

 

BATALHA

 

 

eu tenho só três minutos

pra falar de infinitos

a apologia do estupro

a punição do aborto

o rito do feminicídio

o corpo que é peso morto

o nojo do beijo velho

a rejeição do sem seios

a ilógica do abuso

a cor melhor de um rosto

a dor maior de um exílio

a permissão do assédio

o assassinato do fluxo

inda restou um minuto

e é dentro dele que existe

o silêncio duro de um grito

: que o sangue todo que insiste

seja o pulsante da vida

de toda mulher que resiste

 

 

 

 

 

outubro, 2025

 

 

Luci Collin é escritora, educadora e tradutora. Tem 25 livros publicados entre os quais Querer falar (Finalista do Prêmio Oceanos 2015), A palavra algo (Prêmio Jabuti, poesia, 2017), Rosa que está (Finalista do Prêmio Jabuti 2020) e Dedos impermitidos (contos, 2021, Prêmio Clarice Lispector – Biblioteca Nacional). Participou de diversas antologias nacionais e internacionais (nos EUA, Alemanha, França, Bélgica, Uruguai, Argentina, Peru, Equador e México). Na USP, concluiu o Doutorado em Estudos Linguísticos e Literários em Inglês e dois estágios pós-doutorais em literatura irlandesa. É professora aposentada do Curso de Letras da UFPR e atua na pós-graduação em Tradução Profissional da PUC-PR. Ocupa a Cadeira 32 na Academia Paranaense de Letras. Outras informações aqui: lucicollin.com.br

 

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