Tarja preta

 

 

O Rivotril,

Depois do esmeril:

Grrrrrrrrrrrrrr

Meus dentes trincam.

Clonazepam!

Dorme tranquilo, meu bem.

Tranquilizantes

Benzodiazepínicos

De alta potência

Ao longo do tempo:

Nada. A vida nem some

Em movimentos de

Farmacodinâmicas.

Meu dinheirinho

Enche o mercado

Sua boca fácil

De hálito pútrido

Pedindo um cigarro

(Qualquer coisa por um barato)

Antiepilético

Antifóbico

Sócio-aceito

Meu olho é pânico

Meu cardiomedo,

 Ansioso, taquicarde

A mancha no vidro

É um embaço

Porque faz frio

A dependência

A dependência

Do ar que eu respiro.

 

 

 

 

 

 

Ela que fez por mim

 

 

Quem me inaugurou no mundo foi minha mãe

Que primeiro, me deu o choro

Depois, me ensinou palavras.

 

 

 

 

 

 

Por decreto

 

 

Tão duro ver a mendigaria

Que eu lhe desenhava

Dourados e púrpuras

 

Na primeira esquina

Ela vendia

Tudo o que eu lhe dava

 

Eu era uma rainha que

Achava triste acostumar-se

Com marrons.

 

 

 

 

 

 

Móveis para a sala

 

 

Cansei demais

Você passou por mim

Como uma espécie de

Cadeira sem encosto e

Eu tive que

Ficar muito tempo

Sentada.

Cansei, meus ossos

Da coluna, onde

Eu pensei que subia

Um calafrio

Estavam era

Cheios de um

Tutano ralo.

A gente não gostava de

Se levantar

Eu gostava, mas

Eu escondi

Porque você era uma

Cadeira

Sem

Encosto.

 

 

 

 

 

 

Um punho fechado

 

 

Tire, doutor, essa dor de mim

Tire sem anestesia, doutor

Que é pra ver se dor maior me cura

 

Tire doutor, por favor

Com suas mãos humanas

Preciso que seja outro a ter, como eu, veias

 

Não posso mais sustê-las

Inchadas, pulsantes se, sinto

Um outro tudo em mim gangrena

 

Ah, misericórdia, o coração

O coração, não, eu não preciso

Desta bomba.

 

 

 

 

 

 

Da fragilidade das coisas

 

 

A corda de sisal

Pode ser grossa como um pescoço

Fina como um adorno

De circundar os pulsos

Forte feixe de fibras

Tranças de jovem intacta

E somente o tempo passa...

 

... Somente o tempo passa

E a velha desgrenhada

Banguela, cega e frouxa

A se sustentar

Por um fio.

 

 

 

 

 

 

Abrir e fechar de olhos

 

 

Primeiro,

Acendi as luzes da casa

E as coisas foram entrando

Uma a uma até

Se tornarem um tanto

 

O primeiro

A sair foi Antônio

Depois dois filhos

Uma filha

Um neto

O cachorro, nesse meio

 

Primeiro,

Eu decidi que jamais sairia

Que tanto fazia

Dentro ou fora

Tudo tendo sido feito em mim

 

O primeiro

Que fiz foi apagar as luzes da casa.

 

 

 

 

 

 

Chão com pele

 

 

Se você estivesse aqui para carregar a dor de todos

Certamente cairia no meio da Via

Crucis

E machucaria mais que o joelho

Porque a dor do mundo é absurda

Como um rinoceronte que nos rondasse a porta

Como uma boca aberta num grito mudo

Enquanto as mãos na cabeça é que dizem

Chega!

Ah, se fosse possível solucionar

Pensar apenas algo novo, talvez tentável

Mas...

Estão todos de joelhos.

 

 

 

 

 

 

O adeus de hoje

 

 

Hoje eu estou lhe dando adeus como quem passa

Naquela rua, pela primeira vez e se encanta e diz:

"Queria não sair daqui nunca mais"

Mas sabe que a espera o vale cru

Onde o rio secou muito antes que a seca

Viesse.

 

De tanto esperar o que não vem eu aprendi a fazer

Sofregamente gostoso uns versos

E descobri que posso burilá-los a esmeril

Trocar palavras, brincar sinônimos

Até que a morte nos

Separe.

 

 

 

 

 

 

Sem canto

 

 

Na minha ânsia de liberdade eu

Tudo libertei

Habito sozinha

Uma casa cheia

De gaiolas vazias

E abertas

 

Os passarinhos não visitam

Não há canto

Nem na janela:

Foram todos para

Outras gaiolas.

 

 

 

 

 

 

Caninos de lobos

 

 

Sorrimos

Há um brilho de caninos

Talvez na arcada

Ainda haja carne

 

O músculo estriado

Faz a ponte do desejo

Saciado, entre os dentes

De comerem juntos

 

O outro.

 

 

 

 

 

 

Como uma infância esquecida

 

 

Se deixar, a poesia vai-se indo

Como se foram as bolinhas de gude

Sumindo por debaixo dos matos e das pedras

Se deixar, a gente que é grande

Nunca mais procura

 

Se deixar só entra em nós o sono

A pressa de ver tudo acabar

Porque já é outro jogo

E agora é a alma, lanhada

E não o solo arranhado com faca

 

Se deixar a gente chega no inferno

E não se vira

E a poesia, chão de amarelinha

Se apaga

E jamais outra vez é Sol.

 

 

 

 

 

 

 

[imagens ©margarita georgiadis] 

 

Adriane Garcia (Belo Horizonte/MG, 1973). Poeta, historiadora, funcionária pública, arte-educadora, atriz. Escreve poesia, infantojuvenis, contos e dramaturgia. Foi a vencedora do Prêmio Paraná de Literatura 2013 (Prêmio Helena Kolody, poesia) com o livro Fábulas para Adulto Perder o Sono. Escreve em adrianegarcialiteratura.blogspot.com.br.