©margarita georgiadis
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 

influências

 

dos sete aos dezessete anos

idade das dez razões

vivia perdida entre a sólida casa

da rua paissandu

e o quintal sem-vergonha

que descia o quarteirão

em direção à boemia

 

doutor adhemar dona nenêm e filhos

do lado do sol

 

maria-beira-mar borboletas e mariposas

na banda da lua

 

 

 

 

 

 

sensibilidad

 

quem nascesse sem olhos

ou privado de luz

teria que saber do mundo

por outros sentidos

 

seria capaz de perceber a beleza

o perfume a textura

do azul?

 

poderia entendê-lo

ao ouvir um blue?

 

 

 

 

 

 

prenhez

 

esta doida de sentires e de pedras

de nublares de viveres e de luas

de sonhares de tornados de dilúvios

 

esta louca das noites seculares

dos falares dos silêncios dos transtornos

das tempestades desaguares e de lama

 

esta insana dos amores impossíveis

das demências dos pulsares dos entornos

das claridades dos escuros e desvãos

 

esta mulher como tant(r)as

habita-me

 

 

 

 

 

 

reme reme

 

o momento congelado

preso na fotografia

é um lance do passado

como a carta que te envio

quando a lês estou mudado

e a tristeza que havia

poderá não existir

 

o tempo é rio

 

 

 

 

 

 

prognóstico

 

um cataclismo

uma hecatombe

 

aquele trombo

dentro da veia

é uma bomba

 

pavio aceso

ninguém se importa

 

a displicência

num caso desses

é a causa mortis

 

 

 

 

 

 

ninho de guaxe

 

muita vez eu fico grávida

gravidez imaginária

e gesto versos

 

as minhas letras meninas

desajeitadas traquinas

são descabelos

 

se para muito não servem

só por isso me completam

é bonito ser poeta

 

nas horas de algum juízo

eu juro para mim mesma

agora chega de rimas

 

escrever no entanto é vício

eu vivo prenhe do ofício

 

 

 

 

 

 

lipoinspiração

 

com todo o zelo que um verso merece

faz-se necessário cortá-lo na carne

lancetar abscessos — sangrar das palavras

excessos estridências

deixá-lo direto

 

o resto

dizê-lo em silêncios

 

 

 

 

 

 

rachaduras

 

dos pingos da chuva

ouvia os chiados

tais quais os enxurros

riachos da alma

 

achou entre os seixos

um nicho de mágoa

prendeu as madeixas

os cachos da lágrima

 

chorou só um pouco

baixinho sem garças

tristezas são brumas

são minas sem mar

 

 

 

 

 

 

(des)equilíbrio

 

meus velhos chinelos

macios como as mãos de minha mãe

tinham sumido

 

ontem achei os meus chinelos

 

no corpo

tanto conforto

passos seguros

 

na alma

a certeza dos chinelos velhos

 

 

 

 

abissal

 

entre o vazio e o nada

havia sua morada

buraco desse tamanho

 

numa noite mui largada

chorou um mundão de lágrimas

as águas do oceano

 

 

 

 

 

 

avô

 

quando vem a brisa toca-me de leve

e o amor desliza pela minha pele

a paz é tão grande tem bigodes brancos

chega no sorriso de um homem brando

eu não sei se sonho ou se imagino

volto a ser menina boca de morango

pés de bailarina olhos de avelã

 

suas mãos macias roçam-me os cabelos

levam-me à trilha do gostar ameno

surgem as lembranças lá de outras terras

onde as oliveiras entre as coisas belas

compõem nosso berço

 

 

 

 

 

 

olha a garoa

 

amanheceu chuva fina

acabou-se a aguaceira

agora nossa senhora

coa nuvem na peneira

 

a minha serra cheirosa

vestiu manto de neblina

com roupa tão vaporosa

parece moça menina

 

mantém os olhos abertos

sem cortina sem vidraça

a vida é boa é bela

não a vês? — a vida passa

 

 

 

 

invisibilidade

 

essa dor que quando olhas

não compreendes por quê

não é de fratura exposta

é de amor sem resposta

a solidão ninguém vê

 

 

 

 

 

 

lealdade

 

por ti eu faço

seguro a onda no braço

e se o mar te der rasteira

amarro-o numa coleira

arrasto-o para as areias

do deserto de saara

 

 

 

 

 

 

afogados

 

omar me quer

a sua língua

lânguida quente

lambe-me os pés

 

omar me pede

não se contenta

toca-me as pernas

alcança o ventre

 

omar se atreve

roça-me o peito

suga-me a boca

o pensamento

 

amar oh mar

ô morte

l e n t a

 

 

 

 

 

aparências

 

globalizaram a tristeza

os romeus as julietas

perdi minhas sapatilhas

sou o eclipse de mim

ouvidos moucos guria

penduro a dor no guindaste

 

coração lápide fria

agonia interminável

minh'alma num espinheiro

vou rodar o mundo assim

morto e em frangalhos

coberto por um cetim

 

tapete vermelho taça

a cor do vinho na face

o disfarce engana a todos

só não tapeia o espelho

não chores por mim não chores

é esse o fim dos tropeços

 

 

 

 

 

 

monoico

 

deus é menina

tem cachos eu acho

talvez seja negra

não a vi de frente

percebi pelo cheiro

de flores queimadas

incenso e fumaça

que veio com o vento

 

foi tal o deleite

na manhã de sol

que pensei

tão bonita

e assim

perfumada

só deus

 

 

 

 

 

 

biografia

 

na guerra foi concebida

ficou-lhe esta ferida

rasgo no espírito

 

quando chegou outubro

envolta num manto rubro

quis ser feliz

 

à meia-noite e meia

na hora da lua cheia

rompeu o escuro

 

assim nasceu uma bruxa

alma cor de puxa-puxa

nome de flor-de-lis  

 

 

 

 
 
março, 2013
 
 
 

 

 
líria porto. professora, poeta, nasceu em 1945 na cidade de araguari, morou em belo horizonte, vive em araxá, interior do estado de minas gerais. tem dois livros publicados em portugal e acaba de organizar quatro outros (asa de passarinho, cadela prateada, olho nu e garimpo) que serão enviados em breve às editoras brasileiras. é uma das escritoras suicidas. publica poemas também em seu blogue tanto mar. tem poemas publicados em várias revistas e sites literários. penetra surdamente no reino das palavras...
 
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