Adélia Prado
Saudação
Ave, Maria!
Ave, carne florescida em Jesus.
Ave, silêncio radioso,
urdidura de paciência
onde Deus fez seu amor inteligível!
Adélia Prado
Na Germina
> Poesia
Ademir Demarchi
Cinco desaforismos e um poema sem nada no bolso
*
natal
apita o chester
dourado peito de cristo
*
antes do natal
o advento do empacotamento
de cristo
*
etiqueta
o corpo de cristo
é fabricado
na china
*
natal
missa online
dízimo a pix
na paróquia do cristo customizado
*
natal pobre
sem panetone
nem cobre
só roído t-bone
Poema do Natal com Bolso sem nada no bolso
só poema lixo cada palavra um esganiço
natal é dia de desmaiar de fome diante das árvores públicas de natal
dia de correr pras unidades de saúde ver se rola soprinho na veia uau
já não dá pra comprar osso de segunda que se dirá de primeira
o natal é um dia de morte
nem frango pra disfarçar de peru
todo dia a gente tem que ir pro lixo catar o que comer
quando o caminhão chega tem que correr
ser ligeiro e esperto pra chegar no osso
o que dá a gente come pra não carregar no bolso
panetone de natal quem nos dá é o lixo
a gente é otimista tem gente generosa
que põe no lixo uns pedaços de filé
o país aumentou a safra de grãos em 14%
os caminhões vão passar nas estradas blindados
metade da população come uma ou duas vezes por dia
só 9% passam fome bem menos que a comissão dos deputados
dom helder se fala de fome é chamado cristão
se fala do que causa é xingado comunistão
jesus vai voltar
dizem que talvez no ano que vem
ou no outro pode ser que também
é preciso ter fé
esperar em pé
sem lugar pra sentar vou deitar
assim desse jeito que a vida é
Ademir Demarchi
Na Germina
> Poesia
Adriane Garcia
Auto de Natal
Ave-Maria cheia de Graça
O Senhor é convosco
Qual matrioskas nasceu Maria
De Maria de Maria de Maria
Das galés
De parteiras
De Marias
Maria solta um berro
De bezerro que bebia
Mais leite do que Maria
Ave! Nasceu!
Na luz anônima de março
Sem estrela, Maria
É de pesado astro
Galinhas, pintinhos
Vaca, boi, pinheiro
Não é dezembro e os reis
Magos, magros
São os tempos
Maria envolta em andrajos
Manta puída, mãe de vento
Vai para o colo de outra
E outra e outra:
Matrioskas
Maria longe do peito
Maria fazendo escala
Maria Belém fugindo
Herodes com seu buraco
Fome, fomes, Maria
Maria, a mãe, onde está?
Nem ouro, incenso ou mirra
Nem mesmo um boi-bumbá
Estrelado somente o dia
A secar Maria, a secar
À noite Maria molha
O colchão e os modos
De olhar
Maria mijona, Maria chorona
Maria incômodo mar
Ave! Um anjo, Maria
Não tarda a vir consolar
E Maria monta um presépio
Bota um menino no altar
Maria crescendo quer dar à luz
Um homem,
Mas no escuro vem
Maria
De Maria, de Maria, de Maria
De Maria,
Das galés.
Adriane Garcia
Na Germina
> Poesia
Adriano Lobão Aragão
Noite de dezembro
as cinco almas desta família
reunidas no silêncio da noite
celebram sua incômoda comunhão
no rascunho de sorrisos frios
repetidos nos gestos de comer e beber
no entanto é noite de dezembro
o avô morto há duas décadas
permanece jantando na mesa vazia
indiferente aos olhares das crianças
Adriano Lobão Aragão
Na Germina
> Poesia
Afonso Guerra-Baião
Folia de Rei
(Herod's Christmas)
Afonso Guerra-Baião
Na Web
> Poesia
Alberto da Cunha Melo [1942-2007]
2 poemas
Natal
Longe do Olimpo, um deus nascia
roxo, a gritar, como os humanos,
um deus sem flâmulas nascia,
para os perdidos e os insanos;
nada tinha do deus heleno
o deus menino sobre o feno,
era um deusinho de brinquedo
no quintal do Império Romano,
era o deus do povo com medo,
um deus sem sorte, palestino,
e sem teto, desde menino.
Apresentação do Natal
Anunciado desde a época
das grandes tribos, das roupagens
amplas e soltas do deserto
e antes do Cântico dos Cânticos.
Visto sob a forma de pombo
no alto cajueiro do pátio
ocidental, e sobre as tábuas
extraviadas dos mandamentos.
Pressentido no levantar
das lonas, para as litanias
dos salmos nos acampamentos
e na cruz loura da manhã.
Arauta se propaga a voz
alta na túnica dos ventos:
o Primogênito do Gólgota
será coroado e despido.
Mas, não agora que devemos
leve cobri-lo, e coroá-lo
só de avelãs. Hoje somente
basta que seja uma criança.
Alberto da Cunha Melo
Na Germina
> Poesia
Alê Motta
Lembrança de Natal
Minha mãe separava as louças e os enfeites para usar na mesa de Natal quando chegou a notícia. Jogaram o carro do meu avô barranco abaixo.
Na cidade o boato era sobre a vingança do marido da sua amante. Meu avô nunca brincou comigo, era violento com minha avó e antipático com família e vizinhos. Ninguém fez questão de esclarecimento.
Eu era pirralho e não fui ao enterro. Fiquei brincando com um carrinho de plástico que ganhei da minha mãe.
Nunca senti falta do meu avô. Só senti falta das rabanadas naquele Natal. Com velório e enterro não deu tempo para a minha avó terminá-las.
Alê Motta
Na Germina
> Minicontos
Alexandre César
Ovíparo Cristo
O Peru gluglua para lua na véspera de natal
Com pernas patéticas de pau
Como um lobo com penas e sem dentes
Esse ovíparo cristo moribundo
Cavalgando séculos segundos
Sem ter dindja, money, verba
Como um pônei palerma
Se entrega assado uma esperança para o mundo
O seu coração, um vermelho pino saltitante
Vem sanar a humanidade com seu sangue
Da gula sacra da fraternidade
Essa pavonesca potestade
O peito, a coxa, o divino tinto encanto
Uma trindade
É o deus Peru pro seu rebanho.
Alexandre César
Na Web
> Poesia
Alícia Duarte Penna
Natais
Para minha mãe, para a mãe do Rai
mas já é natal? indagava às vitrines de aves e bolas intumescidas
que resultariam em mais e mais excedentes e hino algum
naquele século que já não aguentava mais,
ela, vinda de 1922 ou, antes, entre Rosália, Mariquinhas e Zazá,
do XIX até o XXI, àquela Rua do Ouro desfigurada onde se perdeu,
à mão a justa sacola apenas algumas gramas além da fome,
em firme embora íntima oposição.
E, sobre a mesa, lisa, naquela casa,
um galho seco pintado de branco,
um bolo de gelo e lírios amarelos:
ao inefável.
Alícia Duarte Penna
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> Quem é.
Allysson Gudu
Continho de Natal
Então é Natal?
Parece carnaval!
Nada de data especial é uma data comercial!
O Papai Noel da modernidade, tipo gerente de banco
Usa gravata, banca mimos, ajusta créditos...
Bajulando os homens brancos.
Não há, na tal conjuntura capitali$ta do mundo,
Espírito solidário para os que estão sem salário.
[dezembro, 2021]
Allysson Gudu
Na Web
> Poesia
Ana Caetano
natal
no inverno
do norte
o natal
sempre foi
um tempo
de deuses
imponentes
apolo
saturno
e da vitória do sol
sobre a escuridão
mas ao sul
do hemisfério
o deus menino
passeia displicente
na luz do verão
tem alma rebelde
sotaque ordinário
e bodoque
na palma
da mão
[dezembro, 2021]
Ana Caetano
Na Germina
> Poesia
Anelito de Oliveira
Escrito sobre um paletó plebeu
Alguém pode estar morrendo agora e você não sabe nada.
Você não quer saber de nada além da sua conta bancária.
A vida está sempre em risco e você continua no seu quadrado.
Você acha que as pessoas podem esperar naquele lugar,
Num outro lado, naquele país, naquela cidade, naquela rua,
Lá onde você nunca estará. Mesmo morando lá, você nunca
Tem tempo para estar com ninguém, para se lembrar de
Alguém, para encontrar uma pessoa com suas fragilidades.
A morte de quem quer que seja não lhe toca o fundo vão.
Há muito tempo você se esqueceu que pessoas morrem, que
Pessoas nascem, vivem e morrem — e antes da morte em si
Sofrem muito. Esqueceu-se que antes da morte, dentro da vida,
Há o sofrimento. Você sequer se lembra o que quer dizer isso.
As pessoas sofrem porque são canceladas, porque são esquecidas
Ainda vivas, porque são descartadas como qualquer adereço
Sem utilidade nenhuma num mundo cinicamente customizado.
Aquele velho paletó que lhe vem à cabeça quando começa
A esfriar! Sobretudo quando começa a esfriar em dias
Pré-natalinos. Nesses dias em que até as árvores, sobretudo
As árvores, sentem pena de humanos. Aquele velho paletó que
Foi do seu avô, do seu pai, do seu irmão. Você se contorce diante
Da simples ideia remota de voltar a usar aquele paletó plebeu.
O veludo, as listras amarelas, vermelhas, azuis, verdes. Ah,
Que marmota! Que folião! Que lavrador! Que palhaço!
Encontrar sua infância, sua adolescência, sua pobreza, nosso
Passado, o século vinte! Encontrar uma história onde pessoas
Nasciam, cresciam, adoeciam, sofriam e morriam, nossa! Aquele
Mundo onde ninguém tinha login, onde a morte era real e,
Por isso, precisávamos encontrar consolo no outro, no seu corpo,
Na sua voz, nos seus ouvidos, nos seus braços, no seu olhar tão
Desenganado como o do seu semelhante. O outro era o porto,
A casa, quando viver era estar lançado num mar sempre revolto.
Tudo isso desperta uma vergonha enorme em você. Como é
Difícil falar disso! Ninguém curte, compartilha, elege, premia.
Você não quer falar de nada além do que todo mundo sabe.
Uma pessoa que morre em qualquer lugar é como um paletó
Velho, listrado, que já estava sepultado havia muito tempo.
O paletó que foi o seu abrigo afetivo tantas vezes numa outra
Vida, repleto de sentidos vibrantes, de autêntica ternura,
É o lugar onde você não cabe mais com sua digital arrogância.
Anelito de Oliveira
Na Web
> Quem é.
Antonio Aílton
Dezembro ausente
Ao lado do sofá da morta:
arvorezinha iluminada de vermelho e âmbar
envolta
num pisca-pisca de 16 tonalidades
e 8 alternâncias que mudam automaticamente
guirlandinhas, canutilhos, velhotes rechonchudos
rindo
por entre as filifolhas
anjinhos anunciando a chegada de algum salvador
e bolinhas multicores de vidro resinas bordados ocre
embaixo, pacotinhos simulados de finos presentes
cercam a presepada de ovelhinhas e deidades
o resto você já sabe
para qualquer arvorezinha de natal
cada um deveria cuidar de sua própria lógica
Antonio Aílton
Na Germina
> Poesia