O jardim de Po Chü-yi

 

 

Dizem aí que Fulano é um grande poeta

que tem estilo, e até consegue imitar

a si mesmo, para conservar sua marca

Que é como Picasso depois de Les Demoiselles

Quanto a mim, sei que meu pequeno jardim

não é como o das grandes casas de portões vermelhos

dos poetas que olham desdenhosos o outro lado do bulevar

Não é como os planejados para a entrada dos grandes colégios

nem como os que embelezam ainda mais os fluxos do sol

que rebatem nas vitrines das grandes empresas

Em meu pequeno jardim, eu sei, há flores

grandes e minúsculas, coloridas e tristes, às vezes

perfumadas

e há também flores falsas como é natural das plantas

flores enjambradas e ervas daninhas que tenho preguiça

de tirar, ou não sei como

então deixo aos poucos amigos quando vêm beber vinho

olharem e dizer: "ô, isso cresceu aí...", e respondo: "foi mesmo..."

Então vamos beber um pouco mais de vinho, e aponto

uma velha espreguiçadeira herdada de Po Chü-yi

poeta mais sábio que todos nós juntos, e que após ouvir

o alaúde

 perguntava:

"Por que suspirar por grandes terraços, açudes

quando um pequeno jardim é tudo quanto basta?"

 

 

 

 

 

 

Provérbio de Jesus entre os doutores

 

 

Três coisas pasmam e sete são de estarrecer

A ignorância, que em si mesma é já uma petição de princípio

e Esopo ensinou que contra os deuses, o lobo ou o tirano

qualquer argumento se mostra inútil — todo rio que corre para cima

está por antecipação no território da irracionalidade

A obstinação costura com fina agulha a boca da paciência

A razão política, a burocracia, os cães do estado, o caixa eletrônico

desativado em dia inútil

Apenas teima calmamente enquanto for possível, quem sabe

até antes que o sol se ponha sobre ti

O demônio é falastrão, e há sempre um mestre aqui outro ali

Não gasta tua cruz, faz um meneio de cabeça entre irônico e digestivo:

"Ah, sim..."

Então vai em paz, ainda faltarão 20 ou 30 anos

para salvares o mundo

 

 

 

 

 

 

FÁBULAS DA NATUREZA E DA CULTURA

 

 

Rainha-mãe

 

 

Antes de acordarem para sonhos perturbadores

a rainha-mãe, oleira balofa

já os havia transformado em macilentos cupins

cuspindo e cagando 7, talvez 14 bilhões

de vorazes e pestilentos consumidores

de soldados rasos a coronéis de asa-casaca,

capazes

de perder a graça e vociferar na noite insana: vão!

comam sua mãe! E cada um repete em seu incesto

o pesadelo autofágico da borracha a que se acomodaram

 chamar

ciclo da vida

 

 

 

 

 

 

O Castelo [décima primeira narrativa]

 

 

Sendo a seu ver o que ela esperava, eu, embora para mim naquele dia após destempero de ressaca parecesse apenas o arremedo de mim mesmo, ela gritou de um lugar distante [digamos uma montanha] dizendo que poderia ser ela gritando de um lugar distante [digamos um pedestal ou uma torre ou um castelo] um comando que eu poderia inferir em terceira pessoa [diga-se lugar vazio ou lugar nenhum ou puramente lugar da linguagem, que existe por si mesma y sem nós] a partir do qual ela poderia ser ela na dúvida depus os tijolos na ruína que se chamava Castelo do Ser para que os frangalhos se derruíssem e esboroasse o resto de nós que parecia haver neles ou em nós, dois símiles elementares um olhando para o outro através do Tempo que não admite contestação, mas permite a dissimulação

 

 

 

 

 

Hayao Miyazaki

 

 

Grande é o mundo, nós o dominaremos

com a pequenina flor salpicada de crianças

e vendavais

um bastão, uma velhinha, um carrinho quebrado

que sobrou da última guerra

Mas o espírito é como uma fagulha, um vento singelo

que sopra ainda tenro dos pés de limão

de onde nasce a primavera e as gargalhadas da infância

Lá vêm elas,

as pequeninas correndo pelos campos

espalhando novas sementes nos balancinhos

novas lentes para cegueira 

desentranhando a catarata do meu olho

Agora vejo o que parece Totoro quase no meio da chuva

o mundo é vasto quando estamos dentro

nós o dominamos ao nascermos sempre

e de novo

entre suas viagens e paisagens

pântanos e bolinhas de fuligem

até completarmos o ciclo de volta

para nossa mãe, 

a casa

 

 

 

 

 

 

Idade dos metais

 

 

Ao amanhecer por entre as ruas,

o sol tropeçou em dois cadáveres.

 

Sobras da noite inoxidável

a catadora de latinhas

tem mais coisas a fazer.

 

 

 

 

 

 

Fumês ao crepúsculo

 

 

Reinventar a vida é redimi-la de toda a sua crueza

não se suas mediações

É preciso desculpá-la em seu teatro cósmico

ereconhecer que nós continuamos

a ser tão ranzinzas, tão mesquinhos

 

William Carlos Williams deveria estar vivo

para ver este crepúsculo

 

Diante do mar

nós tiraríamos calmamente os nossos óculos

 

 

 

 

 

 

O filho único

 

 

Tez frágil, pele pálida de pouco sol

A mãe o abraça e o beija

O pai, não tendo outro filho, o abraça e o beija

Por seus olhos transpassam uma indisciplina brincalhona

e sádica

de quem tem todos os gostos satisfeitos

O amor é lindo, feridinhas — certo amor

dos humanos por seus filhos

e por suas "ilusões bem fundamentadas"

 

 

 

 

 

 

Gordos deitando

 

 

Flácidos fiambres da (in)contenção         

entre  crônicas  de uma casa assassinada

 

Verdes camaleões amarelos

 

o oblongo indeciso da testa

a esparramar-se como um suor

nas disritmia dos insetos

gorduras de uma instância mal formulada

 

É noite, os gordos se recolhem

como uma torneira

 

como uma sombra

de Agnaldo Timóteo

 

"Vem, Maria", ele a convida

para um horizonte de expectativas

ensaios de um gato ao luar

e duas montanhas que já dormem

 

 

 

 

 

 

Fetiche

 

 

Meu fetiche é do tamanho de um estádio de futebol

 

tão vasto quanto o banco de madeira  aguardando

o velho corpo do domingo à tarde

ensaiando uma metafísica não concluída

como as pradarias o mar o cachorro doente e solitário

o praguejar do velhote recolhido antes da hora

 

Meu fetiche tem a maciez do teu corpo mutilado

voragem de uma furtiva necrofilia

Mas eu sei que os pedaços que aparecem do teu corpo

para mim

não passam de fenômenos penugens e melindres

quando teu cheiro tem a lógica escancarada

esconde-apaga das guimbas e das úberes disputadas

 

Meu fetiche tem o tamanho da tua bunda

 

e tua bunda é maior talvez que o estádio Mané Garricha

O tamanho ideal, proporcionalmente pouco maior que o Itaquerão

Fortaleza Flutuante

pairando no ócio de um juízo apenas rarefeito

para que os homens devam sofrer a crueldade de sua gula

infinitamente turvos e diminutos

como o sentido de sua mais-valia, sua ferrugem  masturbatória

sua miséria

 

Hoje mesmo te comerei

como se come o capital do mundo

que se violenta com cuspe

na boca das bonecas infláveis

Nós nos pagaremos com grana, grana mesmo

e um pouquinho de promessas sobre o céu

não com metáforas, poemas, flores ou palavras

que marcam a distância entre os destroços e o desejo

depois seremos pessoas normais, fetiches

na deriva da incompletude e do significado

 

 

 

 

 

 

O Fenômeno

 

 

pôs plaqueta de closed

no seu cul-de-sac

e voltou ao nada

 

 

 

 

 

 

Marujos

 

 

A uns velhos amigos, um velho bar

e uma velha cidade

 

 

O sol afunda sonhando um sonrisal em meu corpo

"como o quaraz em ninhos de sangue o sol oculto..."

 

atrás dele a vida doméstica nada messiânica

diz que o fim está próximo como um fígado

 

Enquanto os casais chegam aos velhos resultados

e os artistas disputam o seu fuminho

 

Maré enche maré

vaza

 

Maré enche maré

vaza

 

Venham logo, marujos

meus pés se molham no limiar do já visto

 

só nós  todos juntos

daríamos conta do oceano

agora escuro

 

 

 

 

 

 

Homenagem à mulher que disse

"bom dia"

 

 

quase que o bom dia ecoou pelas ruas

e destravava a garganta de todos

 

mas a van, porra   dava sacudidelas

e os olhos alternativos dos passageiros

encaixotavam um som abafado

 

a ciclista passou com o sol nas costas

enquanto pets e lixo fumegavam   sidra  maçãs

 

"Bom Dia!"

 

a eternidade sopra farpas

crianças são pombos e porcos

 

na manhã sem papilas

ouvi berros

e girassóis

 

 

 

 

 

 

Efeito sanfona

 

 

O ir e vir nietzschiano

 [sentido às vezes pelas glândulas do corpo]

quando a canção da eternidade

estende apenas um chapéu

      e toca o homem comum

 

 

 

 

 

 

Pelanca

 

 

Uma senhora a quem respeito, esta velha ideia cartesiana

remendada em nanquim promíscuo-depressivo

uma senhora a quem respeito:

olho

para ela

pras suas pernas

pras suas pelancas

...........................................................

procuro seu encanto de envelhecer em sua

senectude e ................

no entanto

perdeu a sabedoria quando perdeu a imagem

dos antigos, a liquefazer-se

no espelho sem rio ou fluxo — carcaça de signo

galinha debatendo-se

sem Heráclito

apodrecendo sem

as benesses do tempo, passado ou futuro

porque a imagem do presente eterno é a imagem de frankstein

afogado em um rio de graxa e

  rolamentos

 

Uma senhora a quem respeito completa seu breviário de peles

como quem constrói uma cela para si, ou manda construir

um pardieiro de borracha para habitar[– se]

dentro

lona esticada 5 ou 6 vezes para ajustar-se

à ideia

de que seu corpo com o tempo se deslocou um pouco mais

para a esquerda

quando as plaquetas apontavam pra direita

Velha Salomé de letrado bordel, a nova flor do mal

não é símbolo de nada, é a dissimulação pétala-pelanca 

de lírica morta e cansada metalinguagem

com sorriso de aparelho nos dentes

e pupilos contratados que sobrevoam em torno de sua saia

a mariposa

no desfile toc toc desta longa manhã

 

 

 

 

 

 

Compulsão

 

 

Teu sexo vibra límpido e inconsútil

as pequeninas abas vermelhas em minha mente

e suas pétalas, atrás da vitrine

 

Noite e dia ficaria a apalpá-lo, sem controle

ou insatisfação, dor de nervo que resguarda

o que ainda não obtém

e lateja

 

Eu diria que a cor vermelha combina com teus botões

e teclas iluminadas, sexlular

liso de revistinha playboy ou janelas disfarçadas de Dali

de onde tuas bochechas tremem ao supor que sou gozo

e desejo em movimento

renovador fálico do número-comum

[em ti]

 

quando sou só esparro,  quando só consigo esporrar

msn

você, minha putinha de cabeceira

 

a quem tento guardar inutilmente só para mim

quando os deuses do comércio

já te sabem

e há muito te possuem como o protótipo ritual

da fecundação

 

 

 

 

 

 

Lampejo

 

 

Bela jovem inclina a cabeça

para ser beijada, como se

como há 58 anos

olho para suas mãos e detecto

o resquício de colágeno

é como um resquício de profundo desejo

em vida

segurando a pele tratada

Dentro de sua cabeça deve haver um campo

de beija-flores

ausente nos passageiros em redor

Um campo não suficiente para nos proteger

eu desço,

sinto

em breve ela vai morrer sem mim

 

 

 

 

 

 

Episódio essencial

 

 

Eu estava prestes a cantar a canção distante

mas só eu

adentrando um frágil alheamento noturno

meu fone de ouvido enterrado nas orelhas

a lua nascendo uma hora ou outra por entre as copas e escarpas

baixas as casas as torres suspensas na telefonia

os peitos da garota morena apagavam e acendiam

ao menor tranco do ônibus

restaurando em si o peso manco da realidade

Em breve todos seríamos um gesto essencial

na existência incomensurável e precípite

logo ali,   mais ali:   

onde

parecia

haver a frágil ruptura de uma cortina agônica

e a boca aberta de um homem roncando acorrentada

por cem anos

Pouco a pouco, deixavam atrás de si uma instância vazia e

a boca

eu por último

a conduzir para dentro

 a carcaça de todos

 

 

 

 

 

Escritos aleatórios para máscaras e incertezas

 

 

Flor é a palavra flor, não por dizer, mas por silenciar

 

Flor é o crisântemo aceso, aguardando com ansiedade

a visitante tardia

 

Flor é o bicho de Lígia Clark quando você toca

e ele se abre

 

Flor é a orelha decepada de tuas obsessões psicossexuais

derramando girassóis no ocaso para espantar os

últimos corvos

(há sempre relações possíveis entre flores e navalhas)

 

Flor: rã de Patrick Süssekind na vulvinha virgem da próxima vítima

engolindo insetos e aspirando o hálito ainda quente de um

perfume desconhecido

 

Há flores que nascem no estrume das feiras livres de Paris

 

Mas não exagere em arte conceitual, chá de papoula é

natureza morta

 

pintada de amarelo

 

 

 

 

 

A reclusa

 

 

todos os dias, a reclusa olhava pela fresta da janela

e, tecendo o seu tricô,

não se importava se os poetas cantam para dentro

ou para fora

 

 

 

[imagens ©marcel mariën]

 
 
 
 
 
 
 
 
Antonio Aílton, maranhense, professor, poeta e ensaísta, é doutorando em Teoria Literária pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Entre suas publicações tem Os dias perambulados e outros tortos girassóis (2008, Prêmio Cidade do Recife de Poesia) e As Habitações do Minotauro (2001, Prêmio Cidade de São Luís). Pertence à "geração SAFRA 90", de poetas como Ricardo Leão, Hagamenon de Jesus, Bioque Mesito, Dyl Pires, Jorgeana Braga e Rosemary Rego, dentre outros. É editor colaborador do Suplemento Literário e Cultural JP Guesa Errante, de São Luís do Maranhão.