©michal jarmoluk
 

 

 

 
 

 

 

 

ainda havia carambolos nos muros



ainda havia carambolos nos muros

e restos de morcegos enterrados no jardim


também aranhas em chamas espalhando suas mortes pelo quintal

entre lagartas-de-fogo derrubadas do pé de goiaba

abrigo de cascudos joaninhas e ânsias de menino


enquanto urubus disputavam carniça na calçada

e gangujis entravam em casa pelo ralo do banheiro

o único medo figurava no voo de um cavalo do cão


lesmas soterradas no sal da cozinha

[pareciam vingar-se no pelo dos potós


teiús e camaleões topavam com brincadeiras na quinta das irmãs

alguém abria um casulo que diziam apontar a bahia

e outros enigmas evocados pelo sabor da larva

[incrustada no babaçu







assar castanha



requer engenho a arte de assar castanha 

exige cuidado ao examiná-las 

e estar atento ao deixá-las ao sol 

se alguma castanha verde engana


o mesmo olhar que agora procura 

uma lata de leite em pó vazia 

e depois abri-la e furá-la a faca 

tornar plana toda sua curvatura


encontrar três pedaços de tijolo 

para apoiar a lata deslatada 

e usar graveto e papel feito lenha 

para só então receber o fogo


encontrar ainda um cabo de madeira 

para mexer e virar as castanhas 

além de derrubá-las ao final 

e apagar fogo e castanha na areia


abrir as castanhas com pedra ou tijolo 

e constatar entre os dedos sujos 

o quanto eram poucas


e compensar a falta com farinha 

e pilar tudo num pilão imundo 

onde cada um receberá seu punhado


adoçar com cuidado e sem cuspir 

resquícios de carvão tijolo e areia 

pois leva arte o engenho de assar castanha







sombra de bois



abriga o gado a sombra dispersa

dos galhos emaranhados dos cajueiros

diante de um mundo cercado de arame farpado

demarcando a poeira e barro

que emergem por toda estrada


abriga o gado um gavião em suas costas

no silêncio da tarde devora

parasitas encontrados pelo couro

em meio aos diferentes tons de sua pelagem

e entre as folhas secas que recobrem o chão

buscam os bois o que restou de seu pasto

entregues à aridez de existir nestes outubros







rua sem denominação III



rua da estrela avenida circular 

rua uruçuí rua balsas rua guaporé


distante dos nomes que outrora evocavam 

usos costumes metáforas e tradições

quando poucos muros davam testemunho

às inúmeras ruas que tiveram seus nomes

esquecidos na poeira das homenagens

mudam-se tempos e vontades


rua desembargador freitas avenida miguel rosa

quintino bocaiúva arlindo nogueira francisco mendes


e distante do tempo e espaço destas vias

uma cidade se desdobra em seus limites

para que entre passos calçadas esgotos

e placas demarcando logradouros

encontrarmos o nome do silêncio

entrelaçado no alto desta esquina


tão anônima quanto os transeuntes que por ela transitam 

sob a ausência de nomes que ainda não incorpora

alheios sobrenomes aos que aqui habitam

o espaço em que plantaram suas vidas




[Do livro Ainda havia carambolos nos muros, 2019]




chaval_ce



uma arquitetura pela pedra

abrigo de silêncio pelos campos

dos tabuleiros e manguezais


uma arquitetura pela pedra

seu traço adensa sua geometria

de matéria concreta esculpida

na indecifrável linguagem do tempo


outra arquitetura pela pedra

no gesto do pescador ao lançar a rede

na precisão de seu ofício

no equilíbrio em sua canoa

na líquida concisão da água


rio ubatuba rio timonha

rio de sal e pedra demarcando

seu caminho no corpo dos carnaubais

nascidos acima da aridez destas pedras







inhuma_pi



habitam estes banguês tempo e terra

seus caldeirões de água em pedra

o mugido da vaca no curral da frente

o rangido da carroça cheia de meninos

que gargalhavam na vereda da lagoa


habita estes banguês um vento contido

dividindo o sabor da cana-de-açúcar

entre abelhas e rapadura e as mãos

girando a arquitetura do alfinim

enquanto a mãe d’água prepara o meio-dia







jatobá do piauí_pi



interrompe o silêncio da campina

a marcha do gado tangido pela estrada

ruminando seus passos

diante do voo das garças espantadas


pertence ao silêncio das veredas

o trinado de passarinhos

sabiá bigode galo de campina

buscando pelo chão seu pasto

e ao menor rumor ganham novamente

o céu ou os galhos que se ofertam em abrigo


se mistura ao silêncio

o cheiro do campo após a chuva

o verde reaceso na superfície das folhas

enquanto ao longe é possível escutar

a proximidade do gado conduzido pelo aboio







ouro preto_mg



as pegadas esculpidas no tempo

pisaram escravizadas nas pedras deste chão


subiram por estas ladeiras

carregando nos ombros o peso

da devoção dos fidalgos


entre serras e morros uma cidade é semeada

dividida em dízimos e senzalas

uma cidade demarcada pela arte

avessa aos espaços vazios

dividida em entalhes de madeira e pedra sabão

que ouviram os sussurros de inconfidentes

que ouviram os suspiros de marília

e a condenação de um alferes e sua descendência


as pegadas esculpidas no tempo

desceram à escuridão destas minas

no mínimo espaço abaixo da sobrevivência humana

abrindo novos caminhos com os próprios ossos

a dor abafada nas entranhas da terra

em busca de minérios para adornar a riqueza alheia

onde tudo que é belo se prepara no sangue




[Do livro Destinerário, 2019]




a uma abelha que se prendeu no âmbar



em beleza, delícia e decoro

pela tarde divaga a breve abelha

desejando a eternidade envolvê-la

quando na seiva arriscasse seu pouso


mas que outra forma no âmbar deixaria

a delicada essência de teu voo

muito além dos limites desse corpo

no pouso impresso na matéria fria


quem sabe o tempo ou o corpo somente

revestido na resina do instante

quem sabe o voo colhido nesse ventre


quando nenhum outro engenho enfim alcance

sem que a morte para este fim se invente

ao colher a beleza que lhe encante







o poema a poesia



se enquanto há risco há esperança escondida

na tênue trama de silêncio e carícia

onde repousa palavra carente de signo

à tinta demarca em linha o ensaio

e desafia a razão delirante da lira


sem enfeite do acaso em traço sombrio

do silêncio que te veste enquanto tantos versos lia

envolvendo teu ventre como arabesco em pergaminho

mas despia a íntima linha de tua rima


estas vestes ofertadas ao itinerário da escrita

demarca o ritmo destes passos despidos

bem antes de vesti-la em invisível signo


qual o risco de escrever teu corpo

refúgio do delírio entranhado em teu ser


qual palavra esconde tua completa nudez







labirinto este círculo infinito



labirinto este círculo infinito

de som e espaço ocultando a saída

neste espelho perdido em meu ouvido

olhar mergulho viagem vertigem

labirinto neste íntimo caminho

nenhuma linguagem diz o que digo

toda fala guarda o mesmo destino

sempre repetindo o vício do giro

toda linguagem diz mais do que digo

desenha o tempo um eterno rabisco

espelho silêncio palavra origem

reflexo sonoro escutando o ciclo

seria a alma o delírio seria

labirinto este verbo substantivo







os nomes as pedras



deixai aqui nestas pedras o nome e a fábula

daqueles que almejam a revelação

para que o tempo os apague plenamente

em sopro enigma e luz

a mais cega das visões


comei e bebei com satisfação

pelo bem que propiciastes em dias passados

à espera da palavra e seus cavalos

que árduos disparavam

pela imensidão do verso


deixai também este verbo

impresso em talhe na mesma pedra de seus nomes

tu que és tantos e deixas tão pouco

para que o tempo também esqueça entre as pedras

a inútil memória do corpo




[Do livro Entre áridos anseios dispersos, 2017]

 

                  

 

 

 

 

 

 

 

 


Adriano Lobão Aragão nasceu em Teresina, Piauí, em 1977. Mestre em Letras pela Universidade Estadual do Piauí. Professor de língua portuguesa do Instituto Federal do Piauí. Trabalhou como assessor pedagógico da Editora Saraiva. Em 1998, por meio do Concurso Novos Autores, recebeu o Prêmio Cidade de Teresina pelo livro Uns poemas, publicado no ano seguinte pela Fundação Cultural Monsenhor Chaves. Em 2005 publicou Entrega a própria lança na rude batalha em que morra, pela Fundac. Seu livro Yone de Safo foi agraciado em 2006 com prêmio Torquato Neto instituído pela Fundação Cultural do Piauí e publicado pela Amálgama no ano seguinte. Publicou ainda as cinzas as palavras (amálgama, 2009) e, em 2012, lançou seu primeiro romance, Os intrépidos andarilhos e outras margens (Nova Aliança). Em 2017, publicou Os tempos e a forma (Desenredos), poesia reunida, contendo os livros de poemas anteriores e o inédito Entre áridos anseios dispersos. Em 2019, publicou o livro de poemas e fotografias Destinerário (Desenredos) e a segunda edição de Os tempos e a forma (Desenredos/FCMC), incluindo o inédito Ainda havia carambolos nos muros. Atualmente, edita a revista eletrônica Desenredos.


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