©andrew martin
 

 

 

 
 

 

 

 

Esquecimentos



Esqueci o que fui fazer no quintal. Tenho esses momentos de esquecimento, todos os dias. Vou para a cozinha e não faço ideia do que ia fazer com a peneira grande e a colher de pau que tenho nas mãos. Saio para a rua e constato que não sei o meu destino.


Esqueci de tomar banho algumas vezes, no mês passado. Ou talvez não tenha esquecido. Não posso afirmar.

Tem alguma coisa acontecendo comigo. Desconfio que seja deficiência de vitaminas. O problema é não lembrar o quanto já tomei, quando tomei, para que finalidade tomei. Fico tensa desde o momento em que acordo, até a hora em que me deito para dormir. Todos os dias são assombros, espantos.


Ontem fui parar no meio da rua. Uma caminhonete prata buzinou e eu saltitei para a calçada. Tive que abraçar um poste, porque fiquei tonta.

Hoje acordei e o dia está lindo, um céu azul maravilhoso, trinta graus. É meu aniversário de sessenta e cinco anos. Fiz tapioca para o café da manhã.


Um, dois, três... Dezessete pessoas aqui na minha casa.

Toda família está na minha sala e na minha cozinha. O relógio da parede marca 19:25h.

Trouxeram bolo, risadas e salgadinhos.

Não lembro nada do que aconteceu desde o café da manhã. Olho para a bancada e não há indícios da frigideira e da tapioca. Todos conversam, tem música tocando. Meu ombro esquerdo está dolorido de tanto tapinha de Eeee, parabéns! estou comendo uma coxinha deliciosa, rodeada de netos lindos. 


Devo ter uma doença terminal. Nunca fizeram uma festa assim para mim — com toda a família. Se fizeram, não lembro.







Lucros



Tenho setenta e sete anos e estou muito gordo. Tenho problema de coração, muitas varizes, asma e pressão alta.

Semana passada aconteceu uma catástrofe. Quebrei a balança na farmácia da rua de casa. Vinha da pastelaria, onde tinha comido cinco pastéis de queijo, quatro de carne e tomado duas garrafas de coca. Da calçada avistei a balança nova, tão bonita. Comia a última batata do saco grande de Rufles quando entrei para checar meu peso. Um moleque filmou tudo com um iPhone. Está no YouTube. Viralizou.

O título do vídeo é Velhão quebra-tudo. A trilha sonora é um funk. A cena repete, repete. Um vexame. Meus filhos e seus amigos viram, meus netos e seus amigos viram. Meus vizinhos e seus amigos viram. Todo mundo que eu conheço viu. Tem mais de cento e cinquenta mil visualizações.

Nas montagens do vídeo, além da balança da farmácia, eu quebro a ponte Rio-Niterói, quebro o Palácio da Alvorada, quebro o Cristo Redentor e mais um monte de lugar famoso.

Em frente ao supermercado uns garotos fizeram uma selfie comigo. Na padaria fui recebido com assobios, aplausos, gargalhadas e gritos de Viva o velhão!

Fiquei famoso com essa exposição humilhante. Meu barbeiro nem cobrou meu corte de cabelo.

Paguei o prejuízo da balança ao seu Osório, dono da farmácia.

O garoto do iPhone filmou o momento do pagamento e a minha saída da farmácia, comendo um pacote médio de amendoim. O título deste vídeo é Velhão paga-tudo. Na montagem eu pago os salários atrasados dos professores, pago as aposentadorias atrasadas dos velhotes, pago a dívida externa. A trilha sonora é um pagode. O vídeo do quebra-tudo me rendeu um corte de cabelo gratuito, assobios, aplausos e vivas!, espero que o vídeo do paga-tudo me renda muito mais.



[Do livro Velhos. Reformatório, 2020]

 

                  

 

 

 

 

 

 

 

 


Alê Motta nasceu em São Fidélis/RJ. É arquiteta formada pela UFRJ. Participou da antologia 14 novos autores brasileiros, organizada pela escritora Adriana Lisboa. É autora de Interrompidos (Reformatório, 2017) e Velhos (Reformatório, 2020).