[Publicado originalmente no livro de estreia do poeta, Festim — um desconcerto de música plástica (Ed. Orikis, 1992), o poema passou por um processo de reimaginação que envolveu "escanagem" + impressão a jato de tinta + fotografia digital]
Ricardo Aleixo
Na Germina
> Poesia
Ricardo Domeneck
Carta ao pai
Agora que o senhor
mais assemelha pedaço
de carne com dois olhos
dirigidos ao teto escuro
no leito em que provável
só não há-de morrer só
porque nem a própria
saliva poderá engolir
por si na companhia
somente desta sonda
que o alimenta
me pergunto se ainda
em validade a proibição
da mãe em confessar
ao senhor os hábitos
amorosos das mucosas
que são minhas
e se deveras me amaria
tanto menos soubesse
quanta fricção já tiveram
que não lhes cabia
biológica ou religiosa
-mente e se também
pediria para sua filhoa
a morte que desejou
a tantos de minha laia
quando surgiam na tela
da Globo da Record
da Manchete do SBT
que sempre constituíram
seu cordão umbilical
com a tradição
e se deveras faria
sobrevir a eles
grande destruição
pela violência
com que urrava
seus xingamentos
típicos de macho
nascido no interior
desse país de machos
interiores e quebrados
em seus orgulhos falhos
de crer que o pai
é o que abarrota
geladeiras e não deixa
que falte à mesa
o alimento que nutre
as mesmas mucosas
em que corre
o seu sangue
mas não seu Deus
e ora neste leito partido
o cérebro em veias
como riachos insistentes
em correr
fora das margens
se o senhor
soubesse o dolo
com que manchei
a mesa
de todos os patriarcas
ainda pergunto-me
se me receberia
com a mansidão
que aceita na testa
o beijo desta sua filhoa
que nada mais é
que a sua imagem
e semelhança invertidas
tal espelho
que refletisse opostos
de gênero e religião
ou o desenho
animado na infância
de uma Sala de Justiça
onde numa tela
podia-se observar
um mundo ao avesso
e se o Pai e o pai
odeiam deveras
o gerado nas normas
da Biologia e Religião
mais tarde porém gerido
na transgressão das leis
que o Pai e o pai
impõem-nos na ciência
de sermos todos falhos
nessa Terra onde procriar
é tão frequente
que gere prazer
nenhum e olho
o senhor
com essas pupilas
que talvez jamais
reflitam o Pai
mas ora veem o pai
eu
mesmo pedaço
de carne
com dois olhos
peço perdão
em silêncio
pois sequer posso
dizer que não
mais há tempo
e mesmo assim
e porém
e no entanto
e contudo
pelo medo adversativo
de talvez abalar
uma sistema rudimentar
de alicerces
sob a casa
sob o quarto
sob esta cama
de hospital
emprestada
escolho
uma vez mais
o silêncio
Ricardo Domeneck
Na Germina
> Poesia
Rodrigo de Souza Leão
O Ciclone
1
o ciclone nasceu sopro
branco. o lago tremeu no
calafrio das margens.
venta. dentro de uma
concha (eu) debuxava,
entalhava o poema.
tatuagem rupestre. pontes
se abrindo, pernas, olhos,
boca e tudo mais que se
abre meio enquanto folha,
estrela, pórtico, ponte,
átrio, portal.
2
aqui o vento faz a curva e
volta cardume: vida, vinda
em linhas e puçás. silêncio
e terror: sêmen. tudo ciclo,
fogo-fátuo, rictus. doses de
aiperon. vitral. torpedos.
chamas. cavalos de crinas
brancas. mucamas.
caubóis. comboios. joios.
joias e círculos. pulseiras e
fitas do senhor de bom
fim, em cada início e meio.
o ciclone ejaculou por
todos os lugares. no futuro,
veria que os filhos do
ciclone eram todos homens
castrados por ele.
prometeu acorrentado.
3
riscar no vento, esculpir na
mobilidade. preencher a
inexistência com o nada.
buraco negro. num átimo o
grito agônico. como se o
ciclone varresse a
primavera. vivia comendo
bisnagas de frio e bebendo
café-petróleo do futuro.
parece que tudo aconteceu
enquanto eu penteava o
cabelo. enquanto isso, o
mar cheio de surfistas e
poetas que se beijavam
conspirava contra a
violência espúria dos
hipócritas.
4
será que um dia o silêncio
será ouvido, e cravarei um
punhal no peito da morte?
então, poderei dizer das
pegadas do fantasma
chamado pai. ainda
existem folhas poluindo as
palavras com figuras de
linguagem. tudo poderia
ser etéreo. tenho feridas
ciclônicas, agora que
acabei de conter o ciclone
dentro de uma garrafa e o
mandei para um instituto
meteorológico. mandei
junto (em attach) uma outra
mensagem feita de nuvens
coloridas e algodão
amargo e pó-de-mico e
bicho-do-pé. que se cocem
em falésias alcantiladas.
5
vejo um ciclope cego e
alguns anjos correndo em
esteiras ergométricas. a
branca de neve anda de
mãos dadas com o
curupira. a emília dá um
chupão no mickey mouse.
fazem amor hércules e o
pintinho frajola. enquanto
isso, zé carioca beija o
capitão marvel. contam-me
histórias que não sei se
vivi. escarro para o alto
porque sou um chafariz,
chafurdo.
6
fogo amarelando o
horizonte. sombras são
mulheres de preto ou
garças de luto. a mendiga,
cheia de latas, figas e
espelhos que refletem
imagens. a tarde invade o
sol, o mar e a eternidade
(soldados de chumbo,
presentes da infância. as
bonecas eram apenas
mulheres do falcon.) ouvi
uivos dos castelos, areias
em minhas mãos.
7
tudo já feito, tudo por
fazer. toda minha família
estava no circo. os
palhaços comiam manga,
engoliam o caroço e
ficavam entalados, voos de
acrobatas. (quando
acordei, com pterodátilos,
nova visão do mundo.)
soltei-me, e minha família
tinha ido toda embora.
tudo já dito, tudo por dizer.
7a
ciclone clona clones e a
vela vela a velha e ovelhas
aquecem os lobos e o
cosmos come buracos e
haicai: amordaçaram/o
silêncio/ecoou.
8
ciclone, disco em alta
rotação. o vinil virou
cinzeiro, o ciclone é em
sensurround cospe mantras
em dolby estéreo.
Rodrigo de Souza Leão
Na Germina
> Poesia
Rogério Barbosa da Silva
Revisitações
(ou flashes a partir do modernismo)
I
Salta-me de uma página
a energia rítmica de um
Cyclone
a miss
devorou no jantar
a caralhada
de bad boys
da revolução
ela
a rainha do covil
a frisson nouveau
a antropófaga
II
Num país primitivo
e quase sem tradição
o poeta comia amendoim
Era a volta no ponteiro
dos desastres fatais
amassados na saliva
quente e melada;
seiva acalentada
em ritmos dissonantes
de braços venturosos
O poeta intuía
sob o céu
dos desconcertos
um país outro
*.*
Neste agora,
sob os mesmos trópicos
vivemos cada um
o próprio exílio
diverso e excludente
singular e coletivo
massivo e seleto
ao gosto e às ordens
do freguês
porque há muitas formas
de despaisar-se
ou ser posto
fora
Negro, homem
e mulher
mulato, gay
ou branco pobre
jovem sem futuro
velho pé na cova
criança abandonada
curvados todos
à desumana pátria
para poucos
a do lucro acima de todos
do contrassenso e mais valia
"um litro de gasolina
por cem gramas de feijão"
reza a letra do samba
e tem o moralismo vertido
em roupa diária
a civilidade não mora aqui
O Brasil só tem canibal
disse um outro cético
sonho, mas é estranho
haverá mesmo um país
sob os escombros
desse sol diário?
III
"Quem disse que não vivo satisfeito?
Eu danço", falou Mário de Andrade.
E eu queria mesmo
é desfazer no mar
da ubiquidade
o meu amor
sem elevador
sem telefone
telepresença
telegrama ou e-mail
só o sentimento tátil
quente e vibrátil
que faz dançar
num mesmo ritmo
sem distância
sem mesmo um laivo
que seja de bronca
IV
Novas balas de estalo
A vida é louca
e muitos anseiam por um meteoro
tudo pode acabar num instante
história de polícia e ladrão
e tiros na calçada
ou alcançados pela fúria
veloz do conversível
numa bela manhã
da próxima esquina
as cidades todos os dias
são tiro porrada e bomba
nos jornais não há mais poesia
nem se o destino funesto
embrulha em suas folhas
a jovem bela
em seu vestido azul
*.*
praticantes de MMA
topam
um jovem
cozinheiro
estudante
negro?
(podia, todo excluído está à margem)
eo
amigo gay
palavrões socos e pontapés
ainda hoje o sangue corre pela calçada
a rua poderia ser em Roma, Paris, Nova York
São Paulo, Rio de Janeiro ou Belo Horizonte
não importa.
as ruas são zonas de caça.
V
Lírica, ah o lirismo
Subi no Pico do Amor
com Drummond
Lá o amor não está
Mas há sol à beça aqui
Chupa chupa chupão
Os peitinhos de dona Sarah
Oswald freudiano
Amar uma mulher casada, Mário?
Logo Maria, uma santa moderna
que maxixa e fala inglês…
Ou será Luzia?
Luz na janela
à la bandeira
Mas também ela
tem os peitos chatos
Penso em Antonieta
que não cuidou de mim
eu prefiro Jandira
em cujos seios o mundo
começava para Murilo
No amor orbital
de Cassiano
olhos azuis
como satélites
orbitam
o amor
Amor
Porra, poesia
Humor
Ave, alvíssaras
Ávila
bica bica
Gavião
Viola
vibra o vibrão.
Rogério Barbosa da Silva
Na web
poemaps
Romério Rômulo
A máquina do mundo (pós-Drummond), 2
E como eu não coubesse na montanha
de tanto entardecer aqui no alto
que sobra em reticências de navio
E como eu não soubesse de um braço
que no desvio da vida me coubesse
em tão mortais canções sem voz e pátria
Romério Rômulo
Na Germina
> Poesia
Ronald Polito
Sem título
Ronaldo Werneck
Na Germina
> Poesia
Rosana Piccolo
Café Poético
há também usinas de neblina
operam no poste, copos americanos
trincos emperrados
de névoa, bailarinas
― parece a alma da costureirinha
pernas inúteis,
o vento é um pierrô
tão triste que não sei sorrir
(pedra de gelo à ponta do lápis
pantufas em dez mil milhões de pés)
na cidade onde moro
usinas de silêncio
nem a rajada de motos
no eixo da madrugada
consegue fechá-las
Rosana Piccolo
Na Germina
> Poesia
Rubens Jardim
ÊNFASE
"As coisas. Que tristes são as coisas consideradas sem ênfase"
Carlos Drummond de Andrade
Sem ênfase
As coisas permanecem
sendo coisas.
O avião não levanta voo
E o gesto não sai do corpo
Se não houver ênfase.
É a ênfase que arruma
A louça na cristaleira
E o lenço bordado na gaveta.
Sem ênfase
Ninguém salva as Flores
Do Mal. Nem a Cinza
Das Horas.
Rubens Jardim
Na Germina
> Poesia
Sabrinna Alento Mourão
that's why they called you baby when you were a child
você relincha no meio da manada
e depois finge que não foi nada
e depois finge que estava do outro lado
e finge que estava cantando com os pássaros
você é um porco em duas patas
na entrada da sua casa tem uma placa
dizendo que uns animais são mais iguais que os outros
e que os porcos são os mais iguais dos animais
você acha que é médico
quando na verdade só é sádico e gosta de ver gente acidentada
se você precisa de uma loja de roupa pra chamar de sua
se você precisa de um carro pra chamar de seu
se você precisa de um silicone pra chamar de seio
se você precisa de um diploma pra se dizer melhor
se você chama um negro de mala de dia
e à noite vai pra missa
e depois vai no shopping e bebe um chope
e diz pra sua mãe que seu amigo bateu na namorada
e que tudo bem ela é uma vagabunda e eles se merecem
se você acha que eu tenho sempre o suficiente
e você nunca tem o bastante
se você acha acha acha
se você nunca sabe
se você sempre é
você
o seu bafo de merda com colgate plax 12
suas mãos sujas de sangue
as suas dietas de frango e alface da Monsanto
os seus regimes burros
a sua bulimia de verdade
a sua anorexia do mundo
a sua voz estridente que ecoa no crânio vazio
os seus olhos que só enxergam o que é precificado
os seus olhos que se veem no espelho e rechaçam a imagem
a sua cara cheia de reboco caro
o seu nariz encomendado
suas bochechas cortadas por dentro
e atrás desses olhos verdes, nada:
você é só uma porco explorado
que acha que o mundo é sua pocilga
que acha que participa da revolução dos bichos
mas logo vai virar salsicha.
Sabrinna Alento Mourão
Na web
Sabrinna Alento Mourão
Sérgio de Castro Pinto
cine brasil: matinê das moças
(aos companheiros de geração)
abriam-se cortinas,
zíperes e braguilhas.
tinha início a projeção
de mãos
por entre pernas.
tão brasil!
Sérgio de Castro Pinto
Na Germina
> Poesia
Silvana Guimarães
o óbvio lancinante
Tudo é milagre.
Tudo, menos a morte.
Manuel Bandeira, "Preparação para a morte"
a morte é um milagre: ela vem leva um
e outros morrem ao redor de quem foi:
todo morto nunca é um só na sua dor
não existe rota de fuga não há esconderijo
ela chega e acaba com as flores pássaros
espaço consciência memória tempo beleza
descobre códigos senhas mapas da cidade
nada está a salvo: nada segura a sua gula
nenhuma valentia lhe dobra a arrogância
nunca mais eu te amo, te ligo amanhã
nunca mais essa música: olha que triste
nunca mais aquela viagem aquela droga
fica faltando um verso no poema impossível
tudo o que podia ter acontecido e não vai ser
o morto carregando seus mortos que respiram
bendita seja a morte: essa rainha da liberdade
que me faz rastejar nesse escuro dia das mães
[2018]
Silvana Guimarães
Na Germina
> 7 Contos de Réus
Sônia Queiroz
Nas vastidões áridas do deserto
Se te pareço
selvática
mira-me um pouco mais
admira-me
em movimento
deslizante
líquida
serpenteante
Se me supões
sibilante
escuta-me de perto
e vais ouvir
meus graves
inaudíveis
improváveis
vocalises
Se me insinuo
silenciosa
em meandros
onde o teu ouvido
não alcança
me encontre ali
onde talvez encontres
os segredos
Se queres vir
e vens
desde a noite
dos tempos
ela espera
escuta
espreita
em espirais
ela se ergue
sobre a pedra
indagando
Quem vem lá?
Encontrarás
um outro tempo
coleante
a vida em águas
sonolentas
e terras profundas
onde se espraiam os lençóis
de águas límpidas
Encontrarás
o Caos
onde tudo se cria
cores e formas
sons e
aromas
onde as plantas nascem
nas pedras
samambaias.
[abril, 2021]
Sônia Queiroz
No Instagram
@ soniaqueiroz3286
Suzana Vargas
Quase decálogo do amor
O amor é vermelho e tem medo de perder
e se preocupa com cartas não respondidas
com o silêncio do telefone
e a falta da palavra meuamor
O amor é feito de ausências e dependências
de encontros desmarcados e acertos
de memória e corpo
Se está longe
o amor deseja estar perto
Se está perto
não sabe o que fazer com as mãos
nem com as palavras
Em geral o amor perde tempo na repetição de tudo:
do verbo ao toque
E porque sabe que é feito de finais
o amor nunca começa
ou se perde
no momento em que inicia
O amor vicia
Suzana Vargas
Na Germina
> Poesia
Taciana Oliveira
Mil decibéis de uma canção
Talvez você não entenda
a sensação plena do vácuo
a dor que me arrasta como um barco
às três horas da manhã
Talvez você não perceba
o meu desequilíbrio nas linhas
a rigidez do sorriso cínico
a bússola sem magnetismo
o trem desgovernado na estação
Talvez não valha o esforço
de uma canção no teu corpo,
mil decibéis no coração
Quanto te orgulha
esse déjà vu medieval,
o sal, o fogo,
a pedra de cal
o sangue animal
na rede social?
Talvez, você não entenda
nem queira ouvir o bem-te-vi
a desafiar os fios de alta tensão
Tudo isso meu bem nem sei se é um poema
talvez seja uma bomba sem efeito
um corte profundo
em uma sala de cinema
na esquina de um país.
Taciana Oliveira
Na Germina
> Poesia
Tanussi Cardoso
PALAVRAS
A vizinha disse vou me matar!
Eu disse o Sol está lindo lá fora!
A vizinha disse vou me matar!
Eu disse o vaso de girassóis está lindo!
A vizinha disse vou me matar!
Eu disse o seu cãozinho é lindo demais!
A vizinha disse vou me matar!
Eu não lhe disse mais nada:
O sangue no chão era de um vermelho magnífico!
Tanussi Cardoso
Na Germina
> Poesia
Tchello d'Barros
Você não está aqui
Tchello d'Barros
Na Germina
> Poesia
Tida Carvalho
A prova dos nove...
Antropofagia
Palavra clareira
que abre visões outras
Dentro de uma mesma dobra
Desdobra
Indica rumos e montagens
Antropofagia
Agitação das ideias
Desconstrução
Derrida Dadá
Discursos plurais
Tempos transversais
Polifônicas vozes
Metalinguagem
Muitas metas
Forma brasileira
Dialógica dialética
De ser universal
Antes de Derrida
O ex-cêntrico do descentrado
Oswaldindi
Forma brutalista
De desconstrução barrocodélica
Devoração deglutição
Pervivência Oswald
Tanta inversão, tanto longe
E tanta sede de sede!
Fazer quem sorri a rir com gosto
A educação dos cinco mil sentidos
Pervivência Haroldo/Oswald
O que acresce resta nos sentidos
[04/04/2022]
Tida Carvalho
Na web
Poetas del mundo
Vera Casa Nova
AINDA...
Tenho em mim todos os fogos de Mario
com seus "trezentos, trezentos e cinquenta"...
e quantos mais
até mais uma: Eneida Maria de Souza
e mais outra: Telê Ancona
,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,
tenho em mim todos os fogos de Oswald
com seus borbulhantes versos e manifestos de levantes delirantes
,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,
tenho em mim a pincelada de Anita e Tarsila
em momentos de paixão e gestos
,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,
tenho em mim o som mais altissonante de Villa Lobos
em seu púlpito de maestro
,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,
tenho em mim todos os fogos de Bandeira,
na vertigem do insulto ao burguês
,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,
tenho em mim o mais querido Drummond
das Minas que sobrevivem na lama do minério.
Vera Casa Nova
Na Germina
> Poesia
Virgílio de Mattos
MEU PAÍS
Meu país sempre pareceu um puteiro de beira de estrada
a caminho das Índias
com portentos gordos e sacanas, ávidos de lucros
e sifilíticos enlouquecidos estuprando índias jovens
e meninos no caminho
misturados com condenados sem narizes e orelhas
órfãs impúberes e putas do porto
um ou outro grumete queimado em nome de deus.
Meu país sempre foi uma coisa de louco
embora a Inquisição não perdoasse um desvio,
um porco dio ou uma singela puta madonna
já eram o suficiente pra incendiar o infrator.
E nessa putaria de juízes, de dentro e de fora,
de tribunais de relação em relação
desembargadores apalermados e associados
com poderosos latifundiários da monocultura do açúcar
soldados mal equipados e mal pagos e uma armada mercenária
tomavam coça de franceses e holandeses por toda a costa
e, o que sobrava,
soçobrava nas mãos de piratas ingleses a leste de Ilha Bela
no canal de São Sebastião.
Meu país foi o que mais traficou negros d'África,
dizimados os índios antes,
e, na virada do século XIX pro século XX
acordou de querer ser branco.
Ser só branco
como se isso fosse possível.
Meu país perdeu o juízo já no início do século XVI.
E antes da entrada no século XX
sofremos o primeiro golpe militar
marechais decrépitos, positivistas delirantes
e um povo bobo e bom de matar com elixir paregórico
salvo da bronquite pelo rum creosotado
dado a gritar "vivas", fazer politécnicos e cálculos
uns imbecis rematados metidos a sabichões porque sabiam a tabuada.
E fomos nos afundando num mar de merda e lama
como se nadássemos na piscina do country club
contentinhos, sorridentes, fluentes em francês
uma espécie de demência chic.
Escaramuças militares em 1922, 24, 26
Ofuscadas pelo baile da Coluna Invicta
Até Getúlio meter o pé no cupinzeiro em 1930.
Treze anos depois a classe operária conquista
O direito de receber salário e de não morrer de fome
Na verdade, garantiu-se um salário para que não morressem de fome.
Os operários dos grandes centros, sempre mais indóceis
e que procuravam no dicionário a palavra liberdade
(os que sabiam ler, liberdade é uma palavra que já se nasce sem saber
se você é operário ou lavrador, mas vamos lá).
Começam a se organizar e a devolver em greves
a exploração do patrão.
Um povo muito bom, chegado a garrafões de vinho tinto e acordeom.
Meu país é um fanfarrão.
Cheio de pilantras educados em colégio de padres
E suas intrincadas amizades.
A lógica do perdão perdeu para a lógica do patrão.
Troca de favores como quem troca de cuecas
Motores barulhentos e negócios à breca.
Sempre chupando o sangue dos trabalhadores
em troca de centavos que os mantenha vivos.
A antiga e mesma história de sempre.
Que acho que você conhece bem.
Meu país é um puteiro de beira de estrada
Decadente e indecente.
Puteiros nunca foram um mau negócio
pra quem os explora.
E os bisnetos dos bisnetos dos netos dos portentos gordos
misturados com os apalermados juízes e desnarizados e desorelhados
tomaram conta de tudo.
Vulgares e arrogantes, salientes e poderosos como nunca,
transformaram esse país numa aglomeração de histéricos.
O paradoxo sistêmico é que as putas continuam perseguidas
Enquanto seus filhos gerenciam tudo.
Meu país nunca foi meu país.
[Do livro Poemas para tempos sombrios, inédito]
Virgílio de Mattos
Foi professor universitário e advogado criminalista em um passado muito distante e em um outro mundo.
Wanda Monteiro
Oroborus
Ao meio dia um galo branco cantou
em minha janela
nesse instante fiquei a pensar na palavra deus e se ao meu modo creio o mundo é feito de palavras
esse deus pertence a quem o escreve
e a quem lhe inventa o momento primeiro
e lhe dá forma e lhe diz do derradeiro
esse canto ao meio dia desse dia
em que eu assim como o galo
desaprendi a língua dos relógios
me fez lembrar de que eu esqueci o nome dos dias e dos meses
e me fez querer desinventar este ano que termina na palavra vinte
e me fez pensar na palavra deus
e no desejo de caminhar no rastro do começo
lá onde tudo era nu e sem nome
no chão do princípio onde irrompe a luz
na dobra do que nem era tempo
na quebra do silêncio
acordei hoje ao canto desse galo branco
ao meio desse dia de palavra calendária inventada e escrita pelo humano
e fiquei a pensar que tudo que sabemos
é o tudo que lembramos
ou é o tudo que lembraram por nós
assim sabemos quando lembramos do salmo escrito por um ancião que nem nasceu
ou lembramos de um continente que já foi mar ou lembramos da corredeira de um rio que já secou ou lembramos de uma língua que já morreu
um galo branco em minha janela cantou
me acordou e me fez pensar na palavra deus
e na palavra tempo
esse tempo-deus uma palavra
escrita em linhas de sombras
esse deus erguido e fechado em oroborus palavra que vinga — retorna e nos aprisiona no tempo do sem fim
dessa aldeia circunscrita ao verbo
Wanda Monteiro
Na Germina
> Poesia