©fernando lucchesi
 

 

 

 
 

 

 

 

Tortuosa

 

 

Nunca fui planejada. Partilho esquinas com rampas inclementes. Que se pergunte ao forasteiro rosto desfigurado pelo frio e o pavor de meus silêncios. Bom caminho não sou. Em passos infinitos, levo a becos homicidas.

 

Sempre esqueço os canteiros, embora pontuem-me e esparsos, confundindo pétalas e bocas. Assim como a praça, e os anjos dançantes na catedral, e as folhas que o vento revolve no outono.

 

Quando vem a noite, e balbuciam as luzes, quando sou semáforo e lufadas de garoa, sublinho meu aclive e mudo de nome, viro avenida.

 

 

 

 

 

 

Artesã

 

 

Foi a última a chegar. E trouxe a fauna e as coisas da primavera.

 

Mais do que anéis. No canto da toalha, mostrava-me o lago. E o lago ladrava um queixume de escamas, tudo lhe contavam os peixinhos. Mostrou-me a rota do vaga-lume, duelo de abelha e sol, répteis da chuva foragidos é que havia um arco-íris.

 

Na outra banca, o brâmane entoa a canção da serpente. Fumo de incenso. Draga mais um século.

 

 

 

 

 

 

Diário do dia

 

 

O dia chega aos trancos, nas presas da serra elétrica. Com negra gordura vela o semáforo, britadeiras latejam no chão difícil. Detém-se no arranha-céu. E empilha suas dentaduras de prata.

 

Chega estridente. E vocifera, e machuca a manhã de tímpanos frágeis. Na chaminé desabafa, mistura gel e fumaça penacho de pressa nos cafés expressos.

O dia saliva nas filas. No comedouro do meio-dia e meia, onde o sangue esfria; e se requenta em banho-maria.

 

E desaba. E pisoteia letreiros, esquinas desencantadas. E se enrodilha nas placas como fio embaraçado. E se estica, e se espicha e esgarça meu coração aos soluços.

 

Enfim o rapto da noite ascende em bicicletas e pombos recolhidos — na praça dos meus lagos, onde enterro o céu no chão.

 

 

 

 

 

 

Informação

 

 

Você vai pela outra calçada. Há uma placa de funilaria, ranço de alfazema na porta das farmácias.

 

O relógio faliu e você segue, sumido em meadas de pó, você se perde nos ossos das igrejas delicadas.

 

Ao longo da quadra, leviatãs e loterias, convulsão de penas em avícolas. Você adentra galerias, correntezas — asas invisíveis de cavalo alado. No fim da rua, cigarros avulsos, búzios e bíblias.

 

A próxima curva é a Rua Felicidade.

 

 

 

 

 

 

7239 ─ Largo de Pinheiros

 

 

A manhã seguinte, demasiado clara, fazia lembrar, éramos gente simples. As marginais, dilúvio de paciência e retrovisores, odor de abatedouro e jornal vencido. O cheiro de morte vingava, vingava no ar.

 

Verde ou vermelha a camisa de Orlando. Do que teria sido o próprio Orlando, em fúria castanha, o cabelo. Dos olhos não me lembro. Nada que remetesse a violetas encharcadas mais bonito o meu amigo. E muito mais amado do que teria sido o próprio Orlando.

 

A manhã seguinte, cinérea, derrubando pilha de classificados. Verde ou vermelha a camisa de Orlando. As marginais, corredeira de embreagens, faziam lembrar, éramos gente humana ___________.

 

Na bolsa arraigada tralhas e balas, grampo melado. Mas a pedra de jade pus em sua mão, fechei sob a palma do destino, devo ter dito: vai, Orlando, seja o rei de Londres! Porque ele foi, nunca mais vi.

 

 

 

 

 

 

Cerimônia do chá

 

 

Em uma dessas vitrines, dubiamente iluminadas pela hora mágica, pode ser visto o tatame. O braseiro rivaliza o pôr do sol. Fumega o incenso, fumega sem fim.

 

A caligrafia da chuva já foi removida. Rente à parede, nasce o ikebana da nova estação. Podem-se ver convidados, três ou quatro. E o gestual do anfitrião lá fora assoviam sacis, arrepio no crânio das cerejeiras.

 

O vaso, a cumbuca, utensílios de nome poético foram retirados do recinto, de entrada tão pequena que o samurai aí se agacha, espadas do lado de fora.

 

O chá lembra o vulcão adormecido: por um tremor derrama o perigo, e queima, e dói, não é? Há também a estampa dos quimonos, cuja flor é tão perfeita que a natureza não soube imitar.

 

 

 

 

 

 

Cabeleireiros de A a Z

 

 

No colo da rua, contei um milhão de cabeleireiros. Onde a novidade química atiça a guerrilha, define franjas rivais.

 

Contei pomares da ruividão: tons de açaí, e flamingos, fogueiras do inferno nas omoplatas da rua seguinte, outros cabeleireiros outras caixas de alumínio com tesouras, tesouras como relâmpagos, presilha e pássaro de spray.

 

Pisei alamedas de grampos fazendo frases, fazendo festa, ferida, fazendo toda a tua vida.

 

 

 

 

 

 

Fórmulas manipuladas

 

 

Incenso de alfazema à venda na farmácia aceso, abre veredas. Pavios de cravo e canela, canteiros de patchouli. Na prateleira deliram as ervas, atrás do balcão coração de venenos. Pétalas evitam colapso, floreiras exorcizam. Girassol sofreguidão. Passiflora frigidez. Madressilva a ira. Jasmim o vício. Canção de clareiras no subsolo: florestas revolvem-se em tubos de. Caldeirões pretéritos, caldo de bruxas eternas.

 

 

 

 

 

 

Hora extra

 

 

Há dez mil horas do ocaso. A luminária é o diamante da escuridão. Relevo nenhum de telhado, nenhuma brisa que enerve o plantão da calçada sem passos. A bola de papel jogada ao chão não ousa perturbar o mundo — a treva pinta bocas de platina pela rua anestesiada, engole mãos, talheres e teclados, mortos que parecem vivos.

 

                  

 

 

 

 

 

 

 

 


Rosana Piccolo. Publicitária e poeta paulistana, atualmente, em Curitiba. Autora dos livros Ruelas profanas (Nankin, 1999), Meio-fio (Iluminuras, 2003), Sopro de vitrines (Alameda, 2010), Refrão da fuligem (Patuá, 2013), Bocas de lobo (Patuá, 2015), Alla Prima (Patuá, 2019), além da plaquete O pão (Lumme, 2017). Organizadora da antologia MedioCridade (Laranja Original), ao lado do poeta Rubens Jardim. Participação em diversas antologias e revistas de literatura no Brasil, Portugal, Espanha e Moçambique.