atos falhos

 

 

sequer os ensaio.

 

mas os meus atos

falhos

encenam-se assim:

 

eles já no palco

e eu ainda

no camarim.

 

 

 

 

 

 

as cigarras

 

 

são guitarras trágicas.

 

plugam-se/se/se/se

nas árvores

em dós sustenidos.

 

kipling recitam a plenos pulmões.

 

gargarejam

vidros

moídos.

 

o cristal dos verões.

 

 

 

 

 

 

sobre o medo

 

 

o medo

se aloja na medula

como um cubo

de gelo.

 

o medo

se infiltra no tinteiro

e o congela.

 

o medo

se instala na palavra

e a enregela.

 

com o medo

aprendi o ofício

de armazenar as palavras

como num frigorífico.

 

com o medo conservo:

dez mil palavras

abaixo de zero.

 

 

 

 

 

 

camões/lampião

 

 

                            A Gilberto Mendonça Teles e Temístocles Linhares

 

 

camões ao habitar-se

no olho cego

sentia-se íntimo,

mais interno,

que o habitar-se

no olho aberto.

 

lampião ao habitar-se

nos dois olhos

a eles dividia:

o olho aberto matava

e o outro se arrependia.

 

camões ao habitar-se

no olho cego

polia as palavras

e usava-as absorto

como se apalpasse

e possuísse o próprio corpo.

 

lampião ao habitar-se

no olho cego

chorava os morto

do seu interno,

mas o olho aberto

era casto

e via no matar

um gesto beato.

 

camões ao habitar-se

no olho aberto

via-se todo ao inverso

(pelo lado de fora)

mas rápido se devolvia

e fechava o olho aberto

pra ser total a miopia.

 

lampião ao habitar-se

no olho murcho

via o olho aberto

estrábico e rústico

e compreendia

o olho aberto

mais murcho

que o olho cego.

 

camões ao habitar-se

no olho murcho

via o mundo claro

dentro do escuro

e o olho aberto

era inútil

ao habitar-se

no olho murcho.

 

lampião

atrás dos óculos

sentia-se acrescido, somado,

e era mais lampião

naqueles óculos de aro.

 

os óculos

lhe eram binóculos

íntimos sobre a miopia

e quando os óculos tirava

lampião se decrescia:

o olho cego somava

e o aberto diminuía.

 

camões molhava a pena

como se no tinteiro

molhasse o olho cego

e tateando, cuidadoso,

saía do seu interno.

 

(no tinteiro as palavras

em forma líquida

juntam-se uma a uma

à retina, à pupila).

 

camões

escrevia com o olho cego

por senti-lo mais seu

do que o olho aberto

e por poder o olho cego

infiltrar-se, ir mais dentro

e externar o seu inverso.

 

 

 

 

 

 

GARRINCHA (II)

 

 

se não driblas, o alambrado

é a tela de um viveiro

onde te fazes prisioneiro.

 

 

se driblas, és um mágico

a liberar os muitos pássaros

do teu nome

 

 

enquanto os cartolas dão tratos à bola

 

e te fintam fora do gramado.

 

 

hoje, onde o pássaro que foste?

 

 

no ar entre aéreo e sonado

com que desfilas as tuas penas

na alegoria de um carro?

 

 

 

 

 

 

geração 60

 

 

                            A Carlos Aranha e Walter Galvão

 

 

a carta branca do montilla

não era de alforria.

 

o papagaio era calado.

 

o cuba-libre nos prendia.

 

e em barris de carvalho

o tempo envilecia.

 

 

 

 

 

 

jogo frugal

 

 

sapoti! sapoti! sapoti!

morcego! morcego! morcego!

amor cego por ti!

amor cego por ti!

amor cego por ti!

 

não escrevi à faca

o teu nome

no tronco do sapotizeiro,

mas na raiz.

 

na mais profunda raiz de mim mesmo.

 

 

 

 

 

 

esta lua

 

 

                            A Iris e João Santos Coelho.

                            Ao escritor Gonzaga Rodrigues,

                            ao artista plástico John Monteiro,

                            ao poeta Felipe d'Castro, a

                            Wilma Mendonça, Ivan e Salete Alencar.

 

 

esta lua turca cai feito uma luva

na praia da urca, na pedra da gávea.

esta lua cheia é um túrgido ubre

espargindo leite sobre a madrugada.

pálida e sem luz esta lua minguante

é leite com água, chama dos amantes.

 

candeeiro de luz bruxuleante,

hóstia andante de uma irmã de caridade,

esta lua é o branco marfim de um elefante

perfurando do céu o toldo estrelado,

mastodonte manso, pacificado,

urinando gotas de luar no gozo

dos amantes tristes e extenuados.

 

esta lua é o osso adamantino dos cachorros

que a farejam como detetives loucos,

noite e dia, dia e noite, a toda hora,

lambendo os dedos róseos da aurora.

 

lua trânsfuga, doudivanas, tresloucada,

dos bêbados, das putas, dos pederastas.

lua tremeluzindo, estrela espatifada,

nas pupilas aquosas dos vira-latas.

 

lua dos haicais, amassada pelas águas.

lua que flagra o súbito peixe-espada

esgrimindo no ar a lâmina prateada.

 

esta lua ilumina a copa dos cajueiros

onde os ventos alíferos, ligeiros,

com dedos de hábil carpinteiro,

envernizam as castanhas, rolimãs

que giram, enluarados seixos,

castanholas que estalam, tatalam,

batendo de frio o impaludado queixo.

 

lua que se banha numa poça de piche,

nada há que a tisne, seja o azeviche

ou a lama, continua lua-alvaiade,

lua-cisne, lua-argêntea, lua-porcelana.

 

louça louçã esta lua já entornou a via láctea

nos olhos abertos dos que hoje dormem

(sob mil pálpebras) o sono de pedra das estátuas.

 

lua-amazona, que com a roseta das estrelas

esporeia o negro ventre da poldra desvairada,

que relincha, resfolega, bate os cascos inquieta,

luzindo uma branca lua de pelos sobre a testa.

 

luas espetadas, roletes de cana, de néctar.

redondas, feéricos buquês das namoradas.

 

lua das canoas do parque, transatlânticos

singrando as águas da infância, indo

muito além da taprobana e de pasárgada.

 

 

esta lua é a gambiarra da ponta do seixas,

ribalta em que as espumas das ondas

são brancas lãs de ovelhas tosquiadas,

balindo, balindo mansas, na beira da praia.

 

raios de lua extraviados são filhos enfurecidos,

proscritos, exilados, raios que ribombam —

ventríloquos — pela garganta do trovão.

nos céus do inverno, relâmpagos espionam,

emissários do verão.

 

 

 

 

 

 

aspirador

 

 

                   À Andrea Kahmann

 

 

tamanduá do lar

que aspira os meus dias

convertidos em pó

 

dias enfileirados

um a um tombados

pedras de dominó

 

 

 

 

 

 

o gato e o poeta

 

 

o gato faz do poeta

gato e sapato:

foge do poema

para o telhado.

 

paciente, o poeta

atrai o gato

com o novelo

dos vocábulos.

 

puxa-o pelo rabo

bem devagarzinho...

e o que era rabo

vira focinho.

 

o poeta, satisfeito,

dá algumas voltas

numa chave de ouro

e o aprisiona

dentro do soneto.

 

mas o astuto gato

não lhe ensinou

o pulo do gato

e de novo foge

do poema pro telhado.

 

pena que, nessa fuga,

os faróis de um fusca

acendem e ofuscam

os olhos do gato

que foscos se apagam

na escuridão do asfalto.

 

ah, insensato gato,

não estarias melhor

prisioneiro do poema

do que sem as sete vidas

que fogem, uma a uma,

no leito da avenida?

 

é quando, com um fio de miado

— mas sem perder o da meada —,

o gato lavra o seu protesto:

"valeu a pena, poeta,

fazer do seu poema

o meu cemitério?

por que não, poeta,

um poema-telhado,

cheio de vida e de gatos?"

 

e nada mais disse nem lhe foi perguntado.

 

 

 

 

 

 

urbano

 

 

ah estes cães vira-latas

que andam determinados

pelas ruas da cidade

e as conhecem palmo a palmo

na palma das patas

nas antenas do faro

na ponta da língua

que dobra e desdobra

as esquinas

de cor e salteado.

 

ah estes vira-latas tão orientados

nada sabem do meu coração

que vive aos sobressaltos

e bate na contramão

no colapso do tráfego

adernando

                 adernando

cargueiro encalhado

 

 

 

 

 

 

 

a zebra

 

 

                            A Manoel Jaime Xavier Filho e Silvino Espínola

 

 

a zebra

é a edição

extra

 

de um cavalo

que virou

notícia

 

 

 

 

 

 

noturnos

 

 

nas fronhas da infância

ensaquei meus sonhos.

 

hoje, ensaco pesadelos.

 

e a cada noite

— mais do que a cabeça —

pesa-me o travesseiro.

 

 

                  

 

 

 

 

 

 

 

 


Sérgio de Castro Pinto nasceu em João Pessoa, Paraíba, no ano de 1947. É poeta, jornalista e professor titular aposentado da Universidade Federal da Paraíba, onde lecionou Teoria da Literatura e Literatura Brasileira. Tem vários livros de poesia publicados, o mais recente deles é Folha corrida — poemas escolhidos (São Paulo: Escrituras, 2017). É autor de alguns livros de ensaios, entre eles, A casa e seus arredores e O leitor que eu sou.