Sísifo



A noite cai no dia.

Cai em si.

É dia.


O dia sai da noite.

Sai de si.

É noite.







Depois da interpretação



Olhar de novo o céu

tantas e tantas vezes

incompreensível.


E então cobri-lo de nuvens

mais incompreensíveis ainda.







Desaparição



(aqui ainda existe

o lugar)


você salta indo / além do salto / e de você







Encantamento



Nem teus passos.

Nem teu peso.

Ou o hálito

como novelo. Ou

a pele feito correnteza.

E um roçar de braços.

Com a prumada do peito.

E já o rosto inteiro.

Não. Nenhuma palavra.







Mas



talvez o que

pudesse acontecer ao

menos uma vez

seria o

desmonte do horizonte

como que um adiante não

mais distante

ou algum ensejo sem desejo

e

suspensa a moenda

a contração do atropelo

o rendimento do bloqueio

somente o presente se erguesse

(como se ergue uma parede)

já então com alívio

sem perspectiva alguma







No verdadeiro caminho



Voar sem trilhos.

Apalpar através dos véus, dos vidros.

Prender-se à superfície do mundo

desprovido de dedos, dentes, cabelos.

Andar até não conseguir chegar.

Construir um abrigo em labirinto.


Insistir no método difícil da ignorância.







Um Deus



dê-me um minuto

um cajado

um rosto

rotinas para retinas já

então fustigadas

uma cama um dorso

dê-me uma foice

o último terremoto

um touro

o protonauta de neverland

dê-me um sopro







A alegria



Chão.

Nada acima.

Ou abaixo.

E não há nenhum outro lugar.

Outro clima.

Abraço.







Fusão



Quando meu cão sai com o carro

comigo se vamos

passear por

aí (estamos

fora de temporada)

e seguimos

acelerando

sempre em frente,

em linha reta,

então para cima, o vento

cada vez mais rápido

nas orelhas, a ponta

gelada do

nariz.







Um sonho



Certa manhã, K acordou imergindo no sono.







Perspectivas



Nômades. Não há outros. O desalinho dos caminhos. Os barulhos. Os cenários de chamas. O acantoado. O que passa voando e se espatifa. O solidificado com chumbo. Algo que se arrasta talvez. Os cães já não acompanham ninguém. Vinte e quatro horas e suas explosões. Um abismo. O labirinto sem recantos. Asas recortadas. A amplidão entre muralhas.







À toda



Ainda enquanto se constrói o desmonte. A peripécia suspensa na linha de chegada do sonho. Sob o peso do corpo do fantasma da máquina. Para um desfiladeiro. Nuvens de gases de efeito. Um tridente. O estatuto da caça. O toque que esboroa o perfil. O túnel que conserva o rato. O lançamento programado de um artefato. Um blackout.

 

                  

 

 

 

 

 

 

 

 


Ronald Polito (Juiz de Fora, 1961) é poeta e tradutor. Publicou os livros de poemas Solo, Vaga, Objeto, Intervalos, De passagem, Pelo corpo (com Donizete Galvão), Terminal, Ao abrigo e Rinoceronte, e o infantojuvenil A galinha e outros bichos inteligentes, com poemas visuais de Guto Lacaz. Em prosa, publicou os livros Cenas japonesas: crônicas de um brasileiro em Tóquio e Os viajantes e outras narrações breves. Traduziu escritores catalães como Joan Brossa, Salvat-Papasseit, J. V. Foix, Narcís Comadira, Carles Camps Mundó, Quim Monzó e Maria Mercè-Marçal, e de língua castelhana como José Juan Tablada, Julio Torri, Antonio Machado, Jose Kozer, Luis Cernuda, Roberto Echavarren, Mario Arteca e Jorge Tamargo. Fez o estabelecimento de textos de Tomás Antônio Gonzaga, Santa Rita Durão, Silva Alvarenga, Joaquim Manuel de Macedo, Eça de Queirós, Machado de Assis, Carlos Drummond de Andrade, entre outros. Pelo selo independente Espectro Editorial publicou 60 plaquetes com poesia, tradução e prosa. Nos últimos dez anos passou a trabalhar mais intensamente com artes plásticas realizando a exposição individual Minimundos no Museu de Arte Murilo Mendes (Juiz de Fora, março a agosto de 2019) e na Biblioteca Pública Estadual de Minas Gerais (Belo Horizonte, novembro de 2019 a janeiro de 2020), participando de coletivas de artes plásticas e ilustrando capas de livros e plaquetes de poesia.