Ouro sob água

 

Só me lembro que atrás de nós havia um morro,

a mata

No centro, a música, o violão.

Fazia frio e nuvens

se aqueciam pelo som.

 

Havia, entre outros,

uma água

um menino cortando cabelo na beira da casa

as tangerinas no pé.

 

Do grupo, um homem

me perguntava

sobre a melhor forma

de começar um banho

sem reparar no profundo da questão.

 

—  Entro devagar

ou de uma vez por todas? perguntou.

 

—  Por todas, respondi

Não há céu ou inferno

que comece devagar. 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Momento

 

Santos

todos os mistérios da casa.

 

Entre a chuva e o resto de feijão

na vasilha

escrevo um verso.

 

No minuto a seguir tem o emprego

a cidade, seus ritos,

tem mais:

uma vontade danada de ficar por aqui.

 

O escritório é uma bateria

de burocracias:

Tem o escriba sério

de capa e guarda-chuva

mais um milhão de livros.

 

...Só que estou interessada

em outras coisas:

acertar o ponto do arroz,

por exemplo

 

e nem uma biblioteca inteira vai me dizer como é. 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Composição

 

Meu riso econômico

atravessa a rua estreita das casas.

 

Vem bater nas samambaias

de suas saias pende

 

Vai chocar-se contra as pedras

seus musgos

um sol de veludo

 

E se enrosca em lençóis

naftalina, rimas

 

Meu riso

adiante dessas coisas

 

Não sorri. 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Clip 

 

Cabras desciam o morro.

A árvore não dava frutos

dava louros,

Mas a vontade de dizer pro moço

que a gagueira dele emocionava

(e ele podia me levar dali com ela)

era maior que as surpresas da paisagem.

 

(um olho nos bichos

outro nas palavras

dançando sobre mim)

 

O rapaz era magro

quase feio,

nunca adivinharia:

queria impressionar falando sobre carros,

política,

 

E eu ali,

ouvido fixo no discurso tropeçante

que ajeitava camisa

e arrumava cabelo

 

Mas o centro mesmo,

afora o canto dos louros e a vertigem das cabras,

eram os poucos pedaços de sua voz. 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

The New York Company - downtown 

 

Nem um poema sai

sobre esses prédios

sobre essas nuvens

cúmplices do cimento

e o espírito gelado desses homens

 

Nas tubulações a fumaça

não aquece nem disfarça

o mergulho raso nesses dias

à beira do Hudson

do World Trade Center

dos sanduíches no Sacks

e as comidas empacotadas com a alma

 

A ilusão esvoaça

nessa Babel de rostos:

chineses

japoneses

mexicanos

alemães

(americanos)

—  em princípio reunidos — 

não se vêem,

são peças de um cenário

dividido

no leitmotiv da pressa

no que não mastigam da existência

sempre "later", "in a hurry"

e a máscara da ordem

"don’t worry"

 

Polícias, buildings, papers,

removables notes,

Wall Street na mão

24 horas à disposição dos chefes

em qualquer cordial setor

das agências de banco

nos cafés onde o amor

é o último a chegar

e permanente

— ferida em aberto — 

para o fim da vida.

 

Também em Nova Yorque

queremos ser felizes pelo avesso

Mas felicidade a esse preço

eu agradeço. 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Monumento às fontes 

 

Suspensa

 

Pássaro a engolir uma serpente,

eriges teus sinais em bronze vivo.

 

Sereias, sacerdotes,

há algum tempo

o mundo te contempla.

Mija ou não,

na cabeça de teus anjos.

 

Mescla de esperma e de gelo,

me espreitas sempre que eu quiser

te olhar.

 

O teu único crime

é perpetuar a flecha,

cravada em antigo coração.

 

E tua história

escrita em cada um

com um punhal

 

Juntará o que rasteja

ao que voa 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Estátuas 

 

Teses de estética e

vestidos justos na noite calígola.

 

A América em minissaias

mais revela que esconde suas

 

colunas romanas. Existe um mapa:

é preciso ser paciente até

 

que algum desavisado

nos descubra

 

ALÉM das coxas. 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Ortopédica 

 

Nada como não ter pés

para valorizar sapatos.

 

Já sei que não é novo:

o provérbio é mais ou menos 

chinês,

e mais ou menos

meu 

Descobri caminhando

 

 

 

 

Urbana II 

 

Que sentimento me empurra

por janeiro e o ano inteiro?

Que cavalos, que forças indizíveis

me lançam para a frente e para a frente?

 

De tão apressada engulo,

não mastigo minha sorte.

Não sei se é sede de vida

ou avidez pela morte. 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Confissão 

 

Odiei minha mãe a vida inteira.

 

E ela percebia isso,

Ah, se percebia,

 

(Olhos atentos

ao desapego da filha,

buscaram sempre outros sóis,

outras paragens,

voz de comando evitavam)

 

Eu

bem contrária à brandura preservada

quebrava copos,

repetia quase sempre

o ano nas escolas,

Se pudesse,

meu braço descuidava no encontrão

 

Sonhava crimes incríveis

e entre facas,

uma vez o assassinato aconteceu.

 

Ela, que percebia minha ira,

não vai entender os versos

que lhe escrevo agora — 

a raiva duplicada — 

 

Porque o ódio

se aproxima e muito

da paixão:

Agredi-la no crepúsculo

ou na aurora

ainda é meu único modo

                                       de tocá-la. 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Libélula-Móvel 

 

As meninas dançando

Parece que estão dormindo?

 

Ou as meninas dormindo

Parece que estão dançando?

 

Capta este momento

em que uma lança

atravessa seus dedos

e teus olhos

 

Ambas em posição de estátua — 

móvel

             pela dança,

E pela guerra que se esconde

                      em célula

 

Também as palavras

                   são libélulas. 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Inscrição 

 

Conheço um lugar

e dele procuro as raízes

Melancolicamente, às vezes

                               com raiva

 

Cortava minha paisagem

a locomotiva,

os dias de sol,

o inverno tardio,

uma árvore que, de tão alta,

                      se inclinava até o solo.

 

Quanto mais cresço

mais dobro

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Quase decálogo do amor

 

O amor é vermelho e tem medo de perder.

e se preocupa com cartas não respondidas

com o silêncio do telefone,

e a falta da palavra meuamor

O amor é feito de ausências e dependências

de encontros desmarcados e  acertos

de memória e corpo

 

Se está longe, o amor deseja estar perto

se está perto, não sabe o que fazer com as mãos

nem com as palavras

Em geral, o amor perde tempo na repetição de tudo:

do verbo ao toque

E porque sabe que é feito de finais

o amor nunca começa

ou se perde no momento em que  inicia

 

O amor vicia. 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Legado

 

Aos amantes é dado o dom

de cozinhar futuros

e de tombar passados

 

Deu-lhes a vida que os alimenta

o sonho e nada mais

 

Aos outros deu a esperança

objetivos,

o silêncio luminoso das estátuas

 

Aos amantes

o gesto, o movimento,

a cor às vezes possível de encontrar

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Bilhete

 

Meus olhos não expressam teu abismo,

têm um brilho

e não se chama afinidade.

 

Olho-te como quem

vê um gafanhoto enorme

a se abrigar

no pára-brisa do carro:

um homem elegante e de olhos verdes

com a barba ideal para  noites de inverno

nesse frio de cristal

onde o bicho repousa

 

Inclino-me

e evito  acelerar

para que ele não voe

e pouse

suas pernas finas

suas breves mãos

nesse meu corpo

 

num lugar onde o vento

faça a curva.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Suzana Vargas é gaúcha, de Alegrete. Poeta, autora de Literatura Infantil  e ensaísta com vários títulos publicados. É Mestre em Teoria Literária pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, onde cursou Letras. Trabalha como pesquisadora na Fundação Biblioteca Nacional e é coordenadora de cursos na Casa da Leitura. Ministra oficinas de Poesia e Leitura em universidades e entidades culturais em todo Brasil. Idealizou e coordena o Projeto Rodas de Leitura e o espaço Estação das Letras, oficinas de leitura e escrita. Tem poemas traduzidos na Itália, nos Estados Unidos, Argentina, Espanha e na Alemanha.

 

Possui, entre poesia, literatura infantil e ensaio, 15 livros publicados:

 

Poesia: Por um pouco mais (Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1979); Sem recreio (Rio de Janeiro: Achiamé, 1983); Sempre-noiva. (Rio de Janeiro. Achiamé, 1984); Sombras chinesas. (São Paulo: Massao Ohno, 1990); Caderno de Outono e outros poemas (Rio Grande do Sul: Edunise, 1997); O Amor é vermelho (Rio de Janeiro: Garamond. 2005).

 

Literatura Infantil: Será sonho, Frederico? (Rio de Janeiro: Orientação Cultural, 1987); Doce de casa. 2ª edição (Rio de Janeiro: Record,1988); De olho no piolho (Rio de Janeiro: Orientação Cultural, 1990); Cochicho. 4ª edição (Rio de Janeiro: José Olympio, 1995); O mistério de nina (Rio de Janeiro: Imago, 1993); Doce de casa. 2ª edição (Rio de Janeiro: José Olympio, 1995); O livro dos quase-amores (São Paulo: FTD/Quinteto, 1995); Porta a porta — correspondência (São Paulo: Saraiva, 1998).

 

Ensaio: Leitura: uma aprendizagem de prazer. 3ª edição (Rio de Janeiro: José Olympio, 1997).

 

Saiba mais na  Agência Literária BMSR (Autores/ Suzana Vargas) e na Estação das Letras.

 

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