A vizinha é louca, claro que é. Pipoca com batida de fruta. Leite condensado, vodka, a fruta e muito gelo. Não deve ser bom, não pode ser bom. Banho com o Freddie Mercury, exceto às quintas. Aí é banho com uma mulher que não sei quem, que fala muito e pelo nariz. A vizinha é louca, claro que é. Ela odeia o chefe, mas só depois que desliga o telefone. Tem um aspirador de nome Júnior. Quem é o pai desse robô? Aos domingos tem o esporte. Corrida de Rinocerontes não é baralho, pode enfiar a carta mais alta no meio do seu cu. Ela jura pra mãe que tá respeitando as distâncias, mas outro dia convidou o moço da pizza pra entrar. Moedas caíram no chão. Você já escutou o barulho de dezessete moedas caindo ao mesmo tempo no mesmo chão? Ela sente saudade de três pessoas diferentes. Parou de pintar os cabelos. A máquina de lavar vai pifar a qualquer momento. Ela é louca, claro que é. Deus abençoe as paredes finas. E que ninguém se esqueça do cobogó.
— Dá-me a tua mão, pequenina. Vem escutar a palavra de Deus.
J.M., 9 anos incompletos, está desaparecida há 9 meses e 6 dias. Na padaria em que trabalha, sua mãe chora enquanto confeita um bolo: J.M. faz aniversário semana que vem.
"Si tudo mudávamos em nós, uma coisa esquecemos de mudar: a atitude interessada diante da vida contemporânea. [...] Deveríamos ter inundado a caducidade utilitária de nosso discurso, de maior angústia do tempo, de maior revolta contra a vida como está. Em vez: fomos quebrar vidros de janelas, discutir modas de passeio, ou cutucar os valores eternos, ou saciar nossa curiosidade na cultura. E si agora percorro a minha obra já numerosa e que representa uma vida trabalhada, não me vejo uma só vez pegar a máscara do tempo e esbofeteá-la como ela merece. Quando muito lhe fiz de longe umas caretas. Mas isto, a mim, não me satisfaz".
Mário de Andrade, no discurso sobre a Semana de Arte Moderna, em 1942.
AS CARTAS QUE você me mandou chegaram
muitos anos depois, Mário, e de modo
intermitente, extraviadas em volumes
náufragos, às vezes plantados
pelo Acaso como pistas falsas na posta-restante
de algum sebo, como se você não as tivesse escrito
pra mim e estivessem ao alcance de qualquer
mão Confesso que, por isso mesmo, e talvez
por uma vingança calculada, não quis saber
logo todas as coisas que você tentava
me contar, e enfiei as cartas entre outros
livros nas estantes, mas sempre me precavendo
de que estivessem ali, pacientemente
me esperando, e as carreguei comigo em todas
as três ou quatro vezes que mudei
de endereço Quando finalmente comecei
a ler, Mário, foi impossível impedir
um sorriso cúmplice ao ver que você
havia cifrado todas as mensagens como se elas
fossem para outras pessoas — Carlos,
Manoel, Henriqueta, Tarsila, Afonso,
Sérgio etc. —, e embaralhado tudo tão
meticulosamente que destilar entre
as linhas aquilo que me cabia deu
trabalho, mas qualquer irritação
se diluiu quando pensei no amor
com que você teceu esse fio, noites
adentro e sem qualquer garantia
de que essas cartas me chegariam Sei
o pesado tributo que você pagou por
ser moderno, por querer ser
moderno, sua cabeça de duas faces, uma
olhando o passado, a outra não sei, duvido
um pouco que cismasse com o dia em que
os homens se amariam livremente, seu corpo
já estava enjaulado, você, mulato a certas alturas
da avenida ainda não completamente cheia
de fuligem e burgueses iludidos, penso
enquanto o BRT me impede a visão da estátua
da Liberdade feita em resina do outro lado
da rua neste trópico triste, com seu
urbanismo edulcorado entre letreiros, na barra
pesada dos dias Veja, Mário, aqui o burguês piorou
muito, você nem imagina o disparate, o des
propósito, as casas agora são filets ressecados
de miami, calvicies de los ángeles, gritinhos
histéricos de um deslocamento nunca
deliberado de tempo e de lugar, nada parecido
com os dias da Villa Kyrial, meu caro, e era
sobre isso que talvez eu mais quisesse
falar com você, com seu espírito inquieto que ama
e ama, pouco odeia, armado contra os gumes obtusos
do acerto absoluto, contra as viúvas
do parnasianismo, contra o desprezo pelo que vem
da gente simples, mas nem assim imune à ilusão
de poder reger a direção dos dias, colado
ao burguês-burguês, aquele do cauteloso
pouco a pouco que, meticulosamente, fez de você,
Mário, o purée de batatas arlequinal depois
do qual ainda lambeu os beiços enquanto seu coração