Epopeia in nuce

 

 

Quem me dera Nereida ou Nixe

silenciosa Sereia ou Beatriz,

quisera numa só palavra

do único verso,

Sherazade.

 

 

 

 

 

 

Espectro lírico

 

 

Procura-se palavra para dizer a cor daquele instante

em que o amor foi eterno e a morte

cansada

pediu-lhe trégua. Procura-se tal

 

palavra pra apagar vestígios

do tempo nos corpos dos amantes

traçar arcos na íris dos relógios

e fazer próximo o que está distante.

 

Procura-se uma palavra bem nuvem:

que ela seja pássaro, ideia e centauro

que seja única e múltipla, vaivém.

 

Procuro, na sintaxe, esse seu avesso

e em preto e branco enfim (quase) restauro

o espectro colorido do soneto.

 

 

 

 

 

 

Arca de Babel

 

 

Era uma vez duas histórias:

a cidade em construção

era este barco à deriva.

 

Nele, as línguas, enroscadas,

pares híbridos e férteis,

cresciam e multiplicavam-se.

 

Um abarcar, muitas arcas:

esta cidade à deriva

é balbúrdia e tradução.

 

 

 

 

 

 

Heimat

 

 

abolibi belo

nanani nanã

balbô olodum capibaribe

to be tupã tupi

haicai bye bye

 

Balbucio

o cio

e a hybris

da palavra:

Babel.

 

E retorno ainda à mátria

à amada,

à idolatrada,

solo e sangue da pura língua:

a primeira e única, que era toda minha,

e queria ser de todo mundo.

 

Mas nesta viagem marítima

naufrago entre muitas Ítacas

longe de qualquer Pasárgada

numa longa estrada de Sintra.

 

 

 

 

 

 

Poética em retalhos

 

 

Escrevo com restos e ruínas

(e nisso essa primeira pessoa

nem é muito singular).

 

Coleciono metáforas antigas,

faço mitologias micrológicas,

reciclo toponímias usadas,

e falo disto para dizer aquilo

e digo aquilo para falar disto.

 

Assim vou passando de uma coisa-coisa

a outra e outra coisa

mais rarefeita e sempre dupla

que fica me olhando de volta

quando olho para ela.

 

Tenho naufragado muitas vezes

e já estou de novo embarcada.

 

Fazendo meus, versos alheios

fazendo meus versos, alheios

vou recolhendo destroços

de outros tantos naufrágios.

 

 

 

 

 

 

§

 

"As aves, que aqui gorjeiam

Não gorjeiam como lá".

 

Heimat é esse lá

exilado

em qualquer

aqui.

 

 

 

 

 

 

Palavra estrangeira

 

 

Entre palavras e coisas,

há sempre alguma distância:

na palavra, a coisa é outra

na coisa, a palavra nem é.

Mas essa coisa sonora,

que a palavra é também,

é uma forma de armadilha

pra pegar uma outra coisa.

 

Presa em palavra estrangeira,

uma coisa é ainda mais outra

menos diversa dela mesma

que do meu próprio silêncio.

 

Mas a palavra estrangeira

que tardiamente apreendi

em prévia palavra estrangeira

torna-se coisa ainda mais diversa

prendendo-me assim à primeira.

 

Coisa apreendida no tempo,

toda palavra é armadilha

onde eu, ela ou isto

(a coisa pensante = X)

capturada, captura-se:

toda palavra é estrangeira.

 

 

 

 

 

 

Traduzida

 

 

A língua do tradutor invade a minha boca

e lúbrica aliso a plástica muscular

de suas vogais macias

e essa reta ligeiramente ascendente

de cada frase sua

penetra

o elástico rítmico das minhas sílabas

em duplo silêncio

gozo

o eco nessa outra voz

langueur monotone

dentro.

 

 

 

 

 

 

A língua, em flor

 

 

Na rosa ainda virgem da língua

escorre, líquida, entre dentes e dedos

o agora-outrora de uma palavra:

aquela que não se diz.

 

Primeira flor lasciva, inculta e bela!

 

A origem obscena da canção

é você, falso Ulisses, náufrago de piscina, quem escuta

e indiferente ao esquema nascente do poema

retorna

duro em mim.

 

Bruta flor da língua, bárbara e nossa!

 

Origem e ocaso, a ocasião

e o acaso

do poema.

 

 

 

 

 

 

Diálogo

 

 

Senti teu olhar endurecer

entre as minhas

palavras:

intumescência imediata

naquela fenda

obscura

entre o corpo e o discurso.

 

 

 

 

 

 

Cantiga de amiga

 

 

Não não há, meu amor,

uma gota de sangue em cada poema

nas veias do poeta corre um fluido azul

de caneta-bic.

 

Não não há, meu amor,

uma gota de esperma em cada poema

o gozo do poeta, puro e líquido,

é negro nanquim.

 

Não não há, meu amor,

uma gota de tinta em cada poema

da pluma do poeta pinga, incolor,

um pensamento:

 

esse

aqui.

 

 

 

 

 

 

Voz

 

 

Projetando distâncias reflexivas,

essa voz é eco e ruína:

espelha-se

arcaica

em terceira pessoa;

de fora pra dentro

minha.

 

 

[Do livro Bye bye Babel. Rio de Janeiro: 7Letras, 2018]

 

                  

 

 

 

 

 

 

 

 


Patrícia Lavelle é professora do Departamento de Letras da PUC-Rio. Doutora em filosofia pela EHESS de Paris, onde morou entre 1999 e 2014, tem ensaios publicados na França e no Brasil. Como poeta, publicou Migalhas metacríticas (7Letras, Megamíni, 2017), Bye bye Babel (7Letras, 2018, primeira menção honrosa no Prêmio Cidade de Belo Horizonte de 2016) e organizou com Paulo Henriques Britto O Nervo do poema. Antologia para Orides Fontela (Relicário, 2018), coletânea para a qual também contribuiu com poemas novos. Publicou poesia em diversas revistas, jornais e blogues, entre os quais Escamandro, Gueto e o Jornal Rascunho.