[poema e foto do autor ao lado de um grafite de marielle franco, na rua do catete/rj]

 

 

 

 
 

 

 

 

ERGO



não desapego

desse chamego

de voo cego


chego cedo

seco em segredo

desassossego


apelo aos elos

não peço arrego

— cruz credo! —


revelo a esmo

meu desmantelo

& ao sê-lo

ergo







PARIDELA



ativar a consciência da construção do poema

captar as sinalizações

escolher suas bases de sustentação

válvulas de escape abertas

indignar-se da alma ao ventre

espinha ereta

conexões com as ancestralidades ativadas

sal a gosto

o prazer de abrir um bom dicionário

garimpar palavras luminosas que caibam no corte do alfaiate

deixar de molho por 3 dias mesmo que tenha nascido de 9 meses

cortar o cordão umbilical com a inspiração

limpar nos detalhes o líquido amniótico para deixá-lo chorar

pendurar no varal tendo o cuidado de não despoluí-lo por completo

salpicar um pouco de sangue quente para o axé

soltá-lo ao vento com 3 pedras portuguesas em cada bolso

tirar a venda de seus olhos

...

se sobreviver, poderá (até) tornar-se um bom poema







LÍNGUA À BRASILEIRA



Ó órgão vernacular alongado

Hábil áspero ponteado

Móvel Nobel ágil tátil

Amálgama lusa malvada

Degusta deglute deflora

Mas qual flora antropofágica

Salva a pátria mal amada


Língua-de-trapo Língua solta

Língua ferina Língua douta

Língua cheia de saliva

Saravá Língua-de-fogo e fósforo

Viva & declinativa

Língua fônica apócrifa

Lusófona & arcaica

Crioula iorubáica

Língua-de-sogra Língua provecta

Língua morta & ressurreta

Língua tonal e viperina

Palmo de neolatina

Poema em linha reta

Lusíadas no fim do túnel

Caetano não fica mudo

Nem "Seo" Manoel lá da esquina


Por ti Guesa errante, afro-gueixa

O mar se abre o sol se deita

Por Mários de Sagarana

Por magos de Saramago

Viva os lábios!

Viva os livros!

Dos Rosas Campos & Netos

Os léxicos, Andrades, os êxtases

Toda a síntese da sintaxe

Dos erros milionários

Desses malandros otários

Descartáveis, de gorjetas.


Língua afiada a Machado

Afinal, cabeça afeita

Desafinada índia-preta

Por cruzas mil linguageiras

A coisa mais Língua que existe

É o beijo da impureza

Desta Língua que adeja

Toda a brisa brasileira

Por mim,

Tupi,

Por tu Guesa



[Do livro Inocentes Eróticos. Artesanal, 30 exemplares
em papel reciclado, 2016]




SUSTENTA BILIDADE (4 atos)



1- o pior cego é aquele que não quer VERDE



2- lágrima na floresta

testemunha sexo selvagem

entre a motosserra e a árvore



3- sou selva una

querem-me toras

se viva, verde

se morta, dólar


4- ou a gente se Raoni

ou a gente se Sting

uma metade passa fome

outra metade faz regime




[praia da barra/salvador]




QUEM MANDOU MATAR MARIELLE?!



há um dono

pra cada pedaço

de calçada


um gerente

só pra controlar

quarteirão


são fronteiras

barreiras

valem nada


condomínios

na barra

casarões


galeras

e hordas

em guerrilhas


são tropas

comandos

são quadrilhas


são milícias

polícias

sem treliças


são mandantes

estão de

fuzil na mão


de que lado

fico

isso vai dar merda


mas me

cabe perguntar

quem me responde?


o juiz o ministro

pastora o bispo

quero saber?


quem mandou matar Marielle

quem mandou matar Marielle


não tem cara

não tem corpo

não tem osso

nem tem pele?


quem escraviza

a favela

quem apagou

Marighela?


não se renda

não se esconda

não se encubra

nem se fira


não tem cana

nem xadrez

não tem vez

nem tem cela


quem mandou matar Marielle

quem mandou matar Marielle


não fui eu

mas sou ela

fomos nós

sou uma delas


onde está

o Amarildo?

quem fuzilou

Marielle?


quem engendrou este asco

quem é o mandante do carrasco?





[poema da quarentena/pandemia 2020]




EXERCÍCIO PARA ENGOLIR SOL



(viva viva viva o Sol)

o SOL a SOL no sal

na cara em cara

a mais linda pura

prima joia rara usina

das mais cósmicas

energias a quem devoro

o santo devoto o dia

antropofagicamente

SOL me sacia

com o apetite de

um iogue tropical

rendo-me a ti aos

teus ó deus das crias

rei dos sem-fins

estrela alto astral

em tua aura de ondas

lavas explosivas

aquecem matam surtam

& a tudo livra


(viva viva viva… o Sol)


humilde seja sente

— se silente e nua

erga teus braços

à luz rumo da rua

embaralhe ó raios

dedos em harpas

feixes de luz escapam

passam no ar e fluem

é hora de abrir &

arreganhar tua sanha

língua pra fora ti-

po "rolling and drones"

bola de fogo a in-

vadir feitiço insone

louco tecendo teias

de raios nas veias

chamas em flor salivas

amígdalas até o gigante

acomodar calor por

entre as sílabas


(viva viva viva… o Sol)


na ternura da tua

profundíssima garganta

boca em alerta — árg!—

espreita a presa

o SOL penetra todo e

a ocupa inteira

mastigue-o lentamente

em seu real sentido

o fósforo o faro o

fogo fátuo em queima

sinta suas explosões

rumo ao esôfago

deixe-o rolar goela abaixo

e bem frouxo surfar pelos

pulmões o timo pulsa

coração até chegar ao

fígado abrasar o estômago

o astro segue em busca

do seu estrato-fônico



[Veja/ouça esse poema aqui]



NO ALVO



os dados

da roleta rolam

no sentido inverso

da lógica anti-horário


há uma idiossincrasia

no vulto dessa engenharia

de ressignificações


embaralham-se as cartas

entre ágeis trapaças:

o feitiço enfeitiça o feiticeiro


não há punhos nem cartolas

a desafiar a matemática

deste cassino de signos


sinais do caos no tao do cosmos

uma catastrófica manhã

de sangue respingado

no linho do terno extremado 


façam seus jogos, senhores,

a aposta posta à prova

o mestre de cerimônia

com sua gravata de fuzis

será alvejado na testa


o jogo é suicida

o tiro, certeiro


[20/06/2020]




[do livro Desacontecimentos. 7Letras, 2020]




ATENTO



tento ter medo e não tenho medo

tento ter depressão, mas não consigo

tento sentir culpa e culpa não há

tento me desentender da realidade

que pulsa me atentando sem parar


tento tento tento tento 

e nada nada nada: fico atentado

tento sentir o sangue pulsar nas veias

tento entender que o hoje veio do ontem

e o amanhã será outro tempo nesse

jogo do pêndulo da história de tentativas


parece que leio meu país radiograficamente

(mas não choro, meu segredo é que sou

um poeta esforçado)

eles tentam ser honestos e não conseguem

cometeram um atentado nas minhas esperanças

agora tentam morder o próprio rabo com a língua

parece que já convivo com fantasmas faz tempo

mesmo assim eu tento e não dá tempo

só uma coisa tenho e vou em frente

viver é o nosso maior templo

por isso tento

enquanto há tempo de continuar tentando

 

                  

 

 

 

 

 

 

 

 


Luis Turiba é poeta e cuiqueiro da Velha Guarda. Tem a idade do Maracanã e no movimento estudantil de 68 estava com 18 anos. Em 1985 — depois de publicar poemas tolos em livretos na onda da poesia marginal no Rio — fundou em Brasília a revista experimental Bric-a-Brac, que durou por seis edições anuais com poemas, grafismos, fotos, ensaios e entrevistas, que marcaram época com personas da área cultural e poética brasileira: Augusto de Campos, Manoel de Barros, o bibliófilo José Mindlin, Paulinho da Viola, Nise da Silveira, o fotógrafo-antropólogo Pierre Verger e Caetano Veloso. Como jornalista, Turiba ganhou dois prêmios Esso regionais; entrevistou, em Buenos Aires, o poeta argentino Jorge Luís Borges, em 1985, por ocasião de visita do presidente Tancredo Neves ao país vizinho. No entanto, considera que a entrevista foi um fracasso. Tem os seguintes livros de poesia publicados: Desacontecimentos, (7Letras, 2020), Inocentes Eróticos (Rio de Janeiro: Livro-de-arte, edição artesanal, 2016), Qtais, (7Letras, 2014), Meiaoito (Brasília: Coleção Oipoema, 2010) Bala (Salvador: P555, 2005), Cadê? (Brasília: Paralelo 15, 1998), Luminares (Brasília: independente, 1982), Clube do Ócio (Brasília: independente, 1980), Kiprokó (Rio de Janeiro: independente, 1977). Toca cuíca na bateria da escola de samba São Clemente e é diretor de comunicação, compositor de sambas e ritmista do bloco "Mistura de Santa", que sai no carnaval pelo bairro de Santa Teresa/RJ.