PRIMEIRO

 

 

O toque mesmo nas coisas

para lembrar as mãos da

arquitetura limpa daquilo

que o mundo gestou.

 

A mão limpa, cartesiana, reta

pelas coisas

para tirar o pó sobre os nomes

 

sol, xícara, casca, ladrilho, pêssego, miséria

 

e tocar outra vez

como no Dia Primeiro

algo dos nomes

que vibre.

 

 

 

 

 

 

CANTO DE DISSOLUÇÃO

 

 

Sepultadas no tempo

deitam-se as coisas todas,

que já nem coisas são,

mas memória de coisas.

 

Sepultados no tempo

afundam-se os rostos

todos, ou quase todos,

e as datas, risos, gostos.

 

Sepultadas no tempo

jazem as nossas vidas,

num tempo em que não são

nem gozo nem ferida.

 

Sepultados, enfim,

no tempo, todos nós.

 

Onde não há nem feito,

nem pessoa, nem voz.

 

 

 

 

 

 

MANHÃ

 

 

a –

 

Notícias da manhã

informam que o tempo, de

fato, passou,

e que a noite foi só uma

de fato.

 

 

b –

 

O dorso arrebentado do sol,

surge o dia.

 

 

c –

 

A manhã ruge

nos dentes das árvores.

 

 

 

 

 

 

POEMA DO AMADO PARA SEU AMADO

 

 

                   "Penteei-me para o rei

                   Mas foi ao escravo que dei as tranças do meu cabelo"

                   – Ana Paula Tavares, Manual para amantes desesperados, 2007.

 

 

a)

 

os dentes

teus amanhecem quando me veem

e compreendo

o inerte ofício das pedras

— plenas completas alegres.

 

 

b)

 

a voz amanhece na tua boca

ilumina: da garganta

ruminando o que não fora dito,

inaudito, e o que se ficou por dizer

 

pois

 

a voz amanhece na tua boca

e o contorno do sol posto

fica pregado

fica pregado

nas pálpebras

 

fechadas de pôr do sol

 

 

c)

 

e tua boca anoitece

quando o silêncio pousa e faz ninho nos teus lábios

 

até que

então nasce outra vez

o sol

da tua garganta áspera

raia outra vez, já à espera paciente

da hora de se pôr

 

flor

que anoitece

 

— e o eclipse do corpo meu

é violento

 

 

 

 

 

 

POEMA AMARELO

 

 

a faca tem de ser eloquente

e falar sabendo o porquê

 

e falar o discurso de chaga

ferida

na carne que a faca lê

 

 

 

 

 

 

POEMA EXTREMO

 

 

Pega na mão a pedra

pega na mão a cadeira

pega na mão o pão

mesa escada copo d'água

pega

puxa pro lado

e descobre ali

 

a poesia.

 

 

 

 

 

 

O NULO POETA/EMA

 

 

quando hutus exterminaram tutsis

quando hutus exterminaram tutsis

quando hutus exterminaram tutsis

quando hutus exterminaram tutsis

 

.

 

e quando o poeta escreve

[quando tutsis exterminaram tutsis

pecado

pecado

pelo pecado pelo pec-

ado

peca/do

pecado de não saber o que são tutsis

tutsis o que são

o que são tutsis

quem são

hutus

o que

exterminaram

tutsis

e procura onde fica Ruanda

Ruanda¿

e chora de não saber onde fica

onde fica

exterminaram tutsis

Ruanda

 

— a maioria a golpes de facão.

 

 

 

 

 

INÚTIL

 

Inútil

inútil o gesto o plexo o beijo

inútil o desejo e o não-desejo

[igualmente

Inútil inútil o salto e a pausa

Inútil a mão no ombro alheio

[e próprio

 

Inútil soberanamente inútil

o gesto o plexo o beijo

nas campinas afiadas de verde

nas geometrias escuras da mente

 

e essa vontade de amar. 

 

 

 

 

O LÁPIS DESCANSADO

 

 

O lápis a descansar

no colo da mesa branca.

Que arquiteturas, que riscos,

que abismos, que céu se tranca

 

ao longo do lápis longo

parado, imóvel, preto?

O anúncio de qualquer coisa

entre a mente e o peito.

 

Que coisas já guarda o lápis?

Guarda o que vem-lhe através?

Só guarda o suave das mãos,

ou o áspero dos pés?

 

O pé guarda acaso as linhas

das geografias e mapas?

Guarda. E, em as guardando todas:

o que és, de ti não escapa.

 

Sabe o que o lápis encerra

em si, na madeira morta?

Sabe, e mais sabe o lápis

aquilo que o homem ignora.

 

O que é que o lápis contém

do que ainda nem foi feito?

O anúncio de qualquer coisa

entre a mente e o peito.

 

 

 

 

 

 

UMA ARQUITETURA DA CONCHA

"Para aquele que deu a concha"

 

 

1.

Que esta concha entre os dedos recolha

e decante em silêncios a voz

agitada em trovões — mar o crânio —,

que a decante e que a anule depois.

 

2.

Que recolha entre os vórtices secos

todo o eco dos mares confusos,

que o recolha e decante em silêncios

e apascente o traçado dos fusos.

 

3.

Que esta concha entre os dedos anule

o que dentro de alguém é loucura.

Que ela guarde, meu Deus, da loucura,

que é o que acha quem muito procura.

 

4.

Que estas conchas recolham do fundo

já sem fundo das curvas do mar

o olhar tão cansado do homem

 

— e o devolvam depois, pra guiar.

 

 

[Do livro A máquina de carregar nadas. 7Letras, 2017]

 

                  

 

 

 

 

 

 

 

 


Matheus Guménin Barreto (1992) é um poeta e tradutor brasileiro. Nascido em Cuiabá, é doutorando da USP. Estudou também na Universität Heidelberg. Traduziu Bertolt Brecht e Ingeborg Bachmann. É autor dos livros de poemas A máquina de carregar nadas(2017, 7Letras) e Poemas em torno do chão & Primeiros poemas (2018, Carlini & Caniato). Foi publicado no Brasil e em Portugal (Escamandro, plaquete do "Vozes, Versos", Enfermaria 6, Revista Escriva e Diário de Cuiabá, entre outros). É um dos editores do site cultural mato-grossense Ruído Manifesto e integrou o Printemps Littéraire Brésilien 2018 na França e na Bélgica a convite da Universidade Sorbonne.