aurora simultânea sobre santa maría de onetti e grodek

 

 

"ouçam falar o vento/ esse é o paraíso"

 

trakl, trakl!

 

o enamorado do vento levou-me

ao alto dos penhascos

 

estou aqui

tão negra

tão pura

 

trakl, trakl!

ele está em meus olhos

meus olhos estão

atrás dos seus olhos

 

trakl, trakl!

os dentes tão brancos

os olhos tão negros

e somos tão sujos

e tudo é tão poderoso

 

trakl, trakl!

ó flauta milagrosa

no alto dos penhascos

com o vento

amolecida e bocada

ao enamorado

 

 

 

 

 

 

casida a árbol de díana

 

 

coração das 22h

 

água morna em profundo

a noite no espelho regresso

 

alguma coisa em lentidão

busca o sensível

 

inalcançável

 

 

 

 

 

 

outra casida a árbol de díana

 

 

uma voz no silêncio da negra noite se insinua

silêncio presença que se embosca em minha letra-lembrança.

 

a duração de seu corpo, pássaro que se debate em fuga.

 

 

 

 

 

 

casida para federico

 

 

minhas mãos buscam o que a rosa declina

a aurora, a sombra, carne e sonho da rosa

 

o verdevermelho agônico, absoluto

todo sangre que fere.

 

eu não quero mais que uma mão com uma rosa

sete palmos de pétalas sob o perpétuo e triste vento.

 

 

 

 

 

 

otra casida a federico

 

 

escondida entre o cabelo e olvido

descobri a rosa, significado da rosa

 

o que odiava desde o fim e até agora?

efemeridade, impermanência, humanidade?

 

o rio sem margens, poesia-coisa.

cuidado com a rosa.

 

 

 

 

 

 

mots sur la page

 

 

[para um poema de Lambert Schlechter]

 

 

Foi num doismilidoze que o mundo acabou

eu também morri.

 

Mas amanhã, eu viverei novamente

meu coração batendo ao ritmo do seu nome

 

o nome-mundo que habita

quando te crio verdade, poema.

 

 

 

 

 

 

O candomblé de Flora

 

 

Como ser verdade, representação? Gania

através o véu — um filho e o peso da crucificação.

 

Antes, girou para o mundo, ayè

ancestral de si.

 

A mulher enlouquecia

e nunca nada, nunca foi tão óbvio

 

Claro, claríssima despedida.

 

 

 

 

 

 

ceciliana

 

 

escorre o óleo do mundo — lima

de rícino, refino

 

mínima grama ou toda

canteiro, fecundo

 

a poesia é de quem

precisa, disse o carteiro

 

lhe ria. além a lama

ternas de exílio e poda

 

te revisito, o mundo — olha

entre as pernas.

 

 

 

 

canção às proletárias de guerra

 

 

caem línguas e ouvidos mortos
sob o céu vazio e cinzento

devia dizer uma velha cantiga 
judaico-germânica

marina c., aqui vai tudo na mesma
nas esquinas, porões, grades

dentro da concha, o mar
na semente, uma floresta

as asas dos insetos se debatem
em palmas ao sem-fim

nós, em meio aos escombros e afetos
pegamos vassouras, vasilhas, tetos

nos habitam lídices, drésdens
do caos, imensas catedrais.

 

 

 

 

 

 

 

zona proibida do ser

 

 

"Esse est percipi" - Berkeley

 

 

Um punhado de extratos pra se comer das mãos

 

— Olha, minha vida bela como coisa acumulada!

— Olha, minhas palavras forjadas por bem menos que a carpintaria!

 

... Eu existo.

 

Mas basta um espelho para escarnecer o mundo-dentro.

Pequeno-mundo, a verdade se deita ao monstro do nada.

 

Debaixo do nome

A jaula e o silêncio.

 

 

 

 

 

 

escrita aos ímpares

 

 

Desce. Desce mais ainda.

 

Aqui ou em Tsárskoie Seló ou East Coker

É sempre escuro depois da zero hora

Escuridão de chão e muros e pedras.

(Não conhece ainda a escuridão das águas e o vento

E nunca existe o Bom-Selvagem se um dia pisou e viu

O chão, muros e pedras)

 

Desce. Desce mais ainda.

 

O frio já invém e cada pedaço de lugar

É comido pelo tempo, triste lugar.

Pedra ontem, pedra hoje e nunca

A mesma diante do olhar variegado e tua descida.

 

Desce. Desce mais ainda.

 

Que importa se o agasalho mal te cobre

E todo olhar variegado é igual?

Passam os seres com suas desumanidades e doenças

Tantas, como as tuas. O normal é que os desaproxima

E faz bochicho, chacota, ou nem isso e nem nada

Como a lua nova na calada madrugada

 

Desce. Desce mais ainda.

 

Até que não haja um só dente na escuridão.

Reles, vil, faz-te de cada cimento e aço

Dos lugares que não o-são

Transubstancia-te de tudo o que fizeram

A Grande Civilização e Cultura, te alastra

De todo o Tempo e a palavra

Costume, hoje é mais um dia.

 

Desce. Desce mais ainda.

 

Ácido, pérfido, até que descalce

Todo milagre — o falar, o ranger dos ossos

Qualquer lágrima como lâmina fria

O calor de uma e outra mão.

 

Desce. Desce mais ainda.

 

Conversa com a Treva, os desclassificados das calçadas

Aquele que agoniza numa casa em chamas, Escória e Só.

Conte aos amontoados de pele e ossos

E a carne-necrose dos segredos menores —

O ínfimo, o invisível, esses séculos de História, Pó.

 

Desce. Desce mais ainda.

 

Com a lata, as cinzas, o isqueiro e a colher

Os lábios queimados e o sangue exposto

Sê mínimo, agudo, cidade-baixa.

 

Então te levanta.

 

É Gente.

De frio e escuro e solidão. Abissal.

E pode ser Grande. 

 

 

[Poemas do livro A duração do deserto, inédito]

 

 
 
 

pra não sentir (auto) piedade

 

 

quero uma tarde de vento. ventania. um tornado. leve. que me leve ao chão.

quero machucar o joelho. joelhos. terra carne sangue vento. minhas compras ao chão a encontrar novos livros.

quero o cuidado de mãos estrangeiras. desconhecidas. um apartamento num prédio antigo. quem sabe um café de esquina.

quero uma poesia arrancada. como um souvenir. aulas de cerâmica. algo que eu fizesse por mim mesma. um festival de filmes asiáticos.

quero a alegria. o toque da descoberta. a primeira noite.

a sensibilidade dos infiéis. a coragem dos suicidas.

 

 

 

 

 

 

luxo e halitose

 

 

hoje a rua me ofereceu seu bafo quente. um bafo que não vinha do chão, do céu ou do ar. era intrínseco, como se sempre estivesse estado ali, e eu, por pura inércia, não o tivesse sentido a subir pelas minhas pernas, percorrer a espinha e adentrar todos meus poros e entranhas. hoje a rua estava lá.

não choveu. a temperatura estava alta e minhas contrações se seguiam ininterruptas como os gritos daquela criança que corria descalça pela estação sem se fazer entender. e quanto mais sua mãe lhe espalmava, mais ela reagia. em histeria.

eu gostava do pai.

— não benzinho, deixe que hoje eu dou um corretivo pra essa birra.

e então se trancava com ela no quarto, tirava o cinto das calças e batia nas paredes.

— você tem que chorar, senão ela descobre nosso segredo.

foi assim que aprendi a fingir. dissimular dores na infância e gozo quando pensavam que eu era mulher. me fiz atriz por pura sobrevivência, como um sobrinho a se fazer de doido pra fugir do imperador louco.

eu sobrevivi. no meio do mar, quase a chegar na praia e ver aquele enorme, hediondo de tão enorme transatlântico. oponente. ostensivo. ele passou por mim cheios dos cristais e velas que nunca terei. eu cheguei à praia. nua. não viva, sobrevivente.

passei pela rua imunda como passeia por um boulevard da quase-pólis-pós-moderna. mais umas baforadas e cheguei à estação. vi algumas locomotivas chegarem e partirem. quis deixar de ser os trilhos a suportar tantos vagões e sua gente requintada. miserável. eu quis ser como aquelas grades que separavam os destinos. uma grade. uma grade apenas. que apesar de forjada em ferro maciço, era oca. norte e sul.

o varredor das ruas passou. ninguém o notou. ele varreu os tocos de cigarros que estavam em meus pés e que eu não havia fumado. talvez as pessoas devam mesmo jogar o lixo nas ruas e assim garantir um prato de fome pra sujeitos como ele. ele varreu meus pés e não me notou. eu era como ele. mesmo que de barriga cheia. de gente, não do mundo.

e então o meu trem chegou

 

[imagens ©patty carroll | mulheres anônimas]
 
 

Nina Rizzi (Campinas/SP, 1983). Historiadora, tradutora e poeta, vive atualmente em Fortaleza/CE. Tem poemas, textos e traduções publicados em diversas revistas, jornais, suplementos e antologias. Autora de tambores pra n'zinga (poesia, Orpheu/Multifoco, 2012), caderno-goiabada (prosa ensaística, Edições Ellenismos, 2013), Susana Thénon: Habitante do Nada (tradução, Edições Ellenismos, 2013), A Duração do Deserto (poesia, Patuá, 2014), Romério Rômulo: ¡Ah, si yo fuera Maradona! (versão em espanhol), geografia dos ossos (poesia, Douda Correria, Portugal).