Enio Squeff está diante de mim, conversando e, de repente, sem parar de falar, se levanta para acrescentar um pouco de azul numa tela que ainda está com a tinta fresca, uma mulher, meio adolescente, deitada seminua num sofá, lembrando aquelas garotas endormies de Balthus. Squeff sempre enfatiza o aspecto de "paráfrase" em sua obra: o aprendizado dos mestres está em toda parte. Me lembro de El Greco, Redon, Goya, Gustave Moreau, Iberê Camargo, "e dos cordéis", não me deixa esquecer. Ao mesmo tempo, seu desenho é muito peculiar, e quem vir um Squeff o reconhecerá na próxima vez.

Na entrevista-depoimento que segue, gentilmente concedida a mim em seu ateliê em Pinheiros (acompanhado dos amigos Randáu Marques e Luís Nogueira), o pintor gaúcho — mas radicado há trinta anos em São Paulo — expõe suas opiniões, fala sobre Santidades, a exposição que esteve na Caixa Econômica Federal, sobre sua vida, sua pintura, sua obra de ilustrador e o painel de 120 metros quadrados que prepara para os 450 anos da cidade de São Paulo. Começamos localizando no tempo a abertura de seu ateliê.

 

 
 
 
 

Quando você estava preparando aquela exposição no Rio de Janeiro?

 

         Enio Squeff. Então... acho que foi em 2000.

 

         2000?

 

Enio Squeff. Foi em 2000. Eu já tinha aqui o ateliê, você se lembra.

 

         Mas era o começo.

 

  ..... Enio Squeff. Era o começo do começo. A rigor, comecei o meu primeiro ateliê aqui na Teodoro Sampaio, porque me impus o seguinte: "se eu vou começar, eu vou começar do zero". E não tem essa história de que eu tenho que ter condições ideais para pintar, se tiver que pintar dentro de um bueiro, vou pintar dentro desse bueiro. Então uma amiga me emprestou uma espécie de apartamento — eu alugava, não me lembro mais por quanto— e,  depois que uma professora da USP deixava a tese dela de lado — ela usava o apartamento durante o dia—, eu ia lá à noite e começava a pintar. Pintava até meia-noite, uma hora, nesse pequeno apartamento que ficava lá no alto da Teodoro Sampaio.

Depois, por um desses milagres da natureza, conversando com uma amiga, que é a Dina, jornalista também, ela me disse: "mas tem um amigo na Vila Madalena que tem uma garagem, e eu acho que essa garagem pode servir de ateliê para você". Fui lá e era pura e simplesmente a casa do Javan, que já tinha ouvido falar de mim, lido minhas críticas e que, como todo mundo, ficou muito surpreso de saber que eu estava pintando (risos). Eu me lembro, na época ele cobrava algo como R$ 800,00, uma coisa assim, que era relativamente pouco, tendo em vista primeiro o tamanho da garagem, depois o espaço que eu ocupava, o telefone que ele me emprestava, essa coisa toda. E ali sim, comecei realmente a pintar. Primeiro, estava na Vila Madalena, um lugar muito especial e logo tive contato com todo o pessoal ali da baixa Vila Madalena, ali perto da Natingui. A casa dele ficava na Turi; daí, comecei a ter contato com o povo mesmo do lugar, ou seja, aquele pessoal pobre da Vila, tanto que o livro que escrevi anos mais tarde tem a ver com esse meu contato com o pessoal mais pobre da Vila.

E a Vila, nessa época — enfim, estou falando de coisa de dez anos atrás —, ainda tinha aqueles laivos de lugar boêmio, com alguns intelectuais e com pessoas com as quais eu estava convivendo naquele momento. Eu diria que foi a minha "lua-de-mel" com a pintura: me levantava de manhã cedíssimo, ia para o ateliê e pintava até às oito e meia, nove horas; de lá eu ia para a CETESB e voltava às cinco horas da tarde, e ficava [pintando] até uma da manhã.

Agora, uma das coisas com que eu me preocupava muito era pintar o tempo inteiro, ou desenhar se não pudesse pintar. Foi quando comecei a trabalhar com aquarela, e foi o meu primeiro contato com a cor. Eu diria que a coisa, no começo, foi meio mambembe, no sentido de que eu saía para a rua, ficava debaixo dos bicos de luz e pintava. Tudo isso foi antecedido por uma viagem minha à Alemanha — Alemanha ainda Oriental —, em 1989, seis meses antes da queda do Muro. Fui lá e fiz uns desenhos muito bons que ficaram na Alemanha Oriental e eu nunca mais recuperei (risos).

 

Confiscados atrás da Cortina de Ferro.

 

(risos) Enio Squeff. É, porque essas pinturas a revista Die Brücke, que era uma revista oficial da Alemanha, "A Ponte", queria fazer uma exposição, e chegou a fazer uma exposição com os desenhos que fiz em Weimar. Me lembro que estava 6o C e eu ficava lá desenhando com bico-de-pena. Nessa época eu só tinha coragem de desenhar com bico-de-pena, até que, num dia em que estava fazendo uma palestra sobre música, justamente aqui na Associação Bertolt Brecht — que era o correspondente a Goethe na Alemanha Ocidental —, quebrou o aparelho de som e eu convidei as pessoas para irem à minha casa na Morato Coelho, porque ia continuar fazendo a palestra, quando o João Rossi viu uns desenhos meus e disse: "de quem são esses desenhos?", e eu digo, "são meus", "mas você desenha muito bem" — nessa época eu já estava começando a desenhar para a Folha [de São Paulo], porque o Frias já tinha me pedido para desenhar na página três — e ele disse, "mas você desenha muito bem", e eu sabia que aquele infernozinho, aquele bicho já tinha reentrado em mim, e aquilo era uma aventura muito séria.

 

Na página três da Folha você desenhava o quê exatamente?

 

Enio Squeff. Ilustrava os artigos do Newton Rodrigues, comentarista político, naquela época trabalhando na Folha, e eu era editorialista do jornal. O Frias me viu desenhando — isso na época em que eu ainda trabalhava lá, depois saí e foi então que realmente comecei a me dedicar de corpo e alma, praticamente em tempo integral, tirante a CETESB, em que trabalhava durante certo tempo.

Enfim, tudo isso para contar como entrei na cor, porque ele [João Rossi] me perguntou "por que você não desenha a cor?" e eu disse, "porque tenho medo", "medo do quê?", "eu tenho medo de não parar mais", "então, vou te ensinar a fabricar aquarela; desenho eu não preciso te ensinar, porque você já é um desenhista". Me lembro dele ter dito isso, "apenas vou te fazer fabricar aquarela e daí você vai pintar". Aquilo foi realmente um inferno; quando me chegou a cor eu disse: "porra, agora eu não posso mais parar". O que eu fazia? Ia para o sul nas férias, para uma praia chamada Atlântida, e todos os dias saía pro campo pra pintar. Acho que esse foi, talvez, um dos momentos mais felizes da minha vida, porque pintava o dia inteiro — estava de férias (risos) —, à noite me encontrava com os amigos, com os vagabundos, ficava fumando e enchendo a cara de vinho, e no outro dia, de manhã, começava tudo de novo (risos). Então, eu digo...

 

"Perfeito".

 

Enio Squeff. Que outra vida posso pedir? Não existe. Só que, na medida em que fazia isso e me sentia muito feliz, começava a estender para os meus fins de semana, e depois não só nos fins de semana, até o dia em que resolvi montar o ateliê, como eu disse para o meu pai, que ainda era vivo: "Olha, agora eu vou montar o meu ateliê", e ele, para a minha surpresa —  médico, que tinha até uma outra visão do mundo —, me disse: "pois é, meu filho, foi o que sempre quiseste fazer, né? Faz. Se precisar do teu velho pai, eu estou aqui". Foi uma coisa muito boa para mim aquele momento, porque ele não disse: "não, não faça isso! O que é que tu tá fazendo, tá louco, tá ficando maluco?!" — o que também não adiantaria, por outro lado.

 

E poderia até ser um estímulo.

 

Enio Squeff. É, exatamente. Mas eu, já um homem de certa idade, digo: "bom, vou levar o leitinho para as crianças, mas vou pintar".

 

Mas foi bom, de qualquer forma, ter o incentivo.

 

Enio Squeff. Ter o incentivo desse  homem de setenta, quase oitenta anos. Eu sempre pensei o seguinte: não sou muito místico, não sou nada místico; apesar das Santidades eu abandonei essa idéia de misticismo, mas tem umas coisas que você...

 

Eu acho que você não abandonou totalmente esse negócio de misticismo.

 

Enio Squeff. Talvez não. Um amigo me escreveu ontem, "você continua um cristão?", e eu disse, "olha, cristão eu acho que não". Sou culturalmente cristão, que não posso ser outra coisa, mas, realmente, o meu afastamento da Igreja — até disse outro dia numa entrevista — é total, porque há muitos anos sou um agnóstico. E essa Igreja que está aí, Deus me livre; é também uma Igreja culpada e já me bastam as minhas culpas, não quero agregar mais algo em que não acredito.

Mas não posso deixar de considerar um fato: o de que realmente fui arrebatado pelo destino que quis escamotear durante muitos anos tentando ser músico, jornalista, essas coisas. Me lembro que eu passava de ônibus, via aquelas paisagens e pensava: "que coisa interessante pintar paisagem. Mas o que eu vou pintar? Depois do Cézanne, o que mais se vai fazer?". Enfim, depois de um tempo, eis-me diante de paisagens, pintando que nem um maluco.

 

E o óleo?

 

Enio Squeff. O óleo veio depois, porque também me impus uma outra coisa: eu tenho que aprender tudo. Já que comecei do começo, já que deixei vinte anos de fazer, eu agora vou ter de aprender a fazer a tela, a tinta.

 

Você aprendeu até a fazer a tela?

 

Enio Squeff. Tudo. Tudo. Desde as telas às tintas. Ganhei vários pigmentos de um amigo meu, o Luizinho — que está vindo aí, e naquela época trabalhava com tintas —; e comecei a trabalhar com eles e a fazer tinta a óleo; comecei a jogar óleo, ou seja, linhaça, no meio da coisa. Alguns quadros que estão lá tenho impressão até de que são ainda remanescentes desse período em que eu fabricava o meu óleo.

 

Como na Renascença.

 

Randáu Marques. Eu me lembro disso.

 

Enio Squeff. (risos) Como na Renascença. Resolvi ser o pintor completo. Eu me lembro que uma vez estava com o Renato Pompeu, moendo tinta, e ele disse assim: "Enio, eu estou aqui há duas horas e você ainda não parou de amassar tinta". (risos)

 

Daí você disse: "é que nem cozinhar".

 

Enio Squeff. É isso mesmo, é que nem cozinhar. Então aquilo tudo me jogou nesse outro mundo do artesanato, para mim, uma espécie de aventura em que eu me joguei, lembrando sempre daquela coisa do [Heitor] Villa-Lobos, que dizia: "escrevi cartas à posteridade sem esperar resposta". É um lance de efeito, mas todo artista faz isso, no fundo; porque o artista não faz as coisas para ter recompensa. Eu não sei o que o move para ser artista, principalmente num mundo de Bush, de misérias, de desgraças, eu não sei por que as pessoas persistem e acreditam na arte.

 

Talvez pelo espírito de contradição.

 

Enio Squeff. Quem sabe? Mas, de qualquer maneira, há essa reminiscência, essa busca da verdade, essa busca de algo mais em que talvez, aí sim, eu seja místico, e talvez nesse sentido eu acredite no transcendente, porque de fato me joguei nessa coisa sem esperar resposta.

 

Uma coisa eu queria te perguntar: fui à exposição e a primeira coisa que me ocorreu foi justamente o impacto da cor, porque o desenho eu já conhecia das ilustrações que você fez — aliás, o primeiro contato que tive com a sua obra. Daí surgiram alguns nomes. Pensei, por exemplo, no [Odilon] Redon.  E os pintores?

 

Enio Squeff. Eu acho que todo pintor tem uma paternidade, que vem não se sabe de onde, porque sou um intelectual, não posso negar; não posso negar na minha visão de mundo toda a herança, todo o legado que trago de ser pura e simplesmente um espectador de quadros, de sempre ter folheado obras e ter ido a exposições, ainda que não com o mesmo fanatismo com que fui a concertos, por exemplo.

Mas sempre tive idéia de que sabia desenhar, sabia pintar — e não era uma coisa arrogante da minha parte, eu olhava e dizia: "isso eu sei fazer". Sempre me lembro de uma coisa do Mozart, de que quando um camarada perguntou pra ele: "é difícil compor?", ele disse, "muito difícil"; "mas o senhor compõe desde os oito, nove anos de idade", e ele, "só que eu nunca perguntei se era difícil". (risos).

Na verdade, nunca perguntei se era difícil pintar: eu pintei, comecei a pintar e me joguei naquilo. Comecei a desenhar muito e notava, por exemplo, que o grande momento da minha semana era quando saía da Folha e ia direto para a Pinacoteca fazer modelo vivo, que tinha um curso de modelo vivo naquela época. Aquilo para mim era o Céu: eu saía dali completamente enlevado. Nada substituía a minha ida à Pinacoteca para desenhar.

E outra coisa — de novo, sem nenhuma arrogância —, eu via que era muito bom em comparação com os outros; eu via que estava no caminho. Sentia que era coisa de um cara que está vocacionado para isso. Tanto que olhava, surpreendido, e pensava: "fui eu mesmo que fiz isso?". Mas tem um processo esquizofrênico dessa coisa, porque quando você faz, as pessoas perguntam: "qual é a sensação que você tem quando termina um quadro?". Em primeiro lugar, tenho a sensação de que o quadro já não mais sou eu; ele é uma coisa objetiva, viva, ele tem uma vida própria independente de mim. Tanto tem uma vida própria que, quando eu pinto, não sou eu que está pintando, é ele que se pinta.

É por isso que sou exigente em relação aos quadros: é o quadro que me pede para pintar de uma determinada maneira; eu não tenho mais volição e não é uma arbitrariedade. Qual é o escritor — e isso vale para todos os artistas, vale para o poeta, vale para o pintor — que consegue determinar o que seu personagem vai fazer depois de determinado momento? Nenhum. Eu fico imaginando que o [Joseph] Conrad, quando fez o Lord Jim, não queria matá-lo no final. Mas não tinha jeito, ele tinha que morrer no final. Tinha que morrer. Eu me lembro (faz muitos anos, eu era ainda garoto) de uma entrevista do Érico Veríssimo em que ele dizia exatamente isso: "olha, o terrível é que chega um momento que você já não é mais dono dos seus personagens. Você já não faz mais um personagem segundo a sua imagem e semelhança, segundo a sua cabeça, porque o personagem saiu". Pronto. Assim num quadro: de repente ele começa a se exigir, a se construir, é o quadro que se constrói. É um pouco daquela coisa de São Paulo: "eu já não falo por mim, Cristo é que fala em mim". É o quadro quem me diz, "vai fazer isso e aquilo".

 

E o que o Willy Corrêa [de Oliveira] falou, a história de que um quadro só é um Squeff quando você começa a...

 

Enio Squeff. A estragá-lo.

 

Isso.

 

Enio Squeff. Pelo seguinte, vou te dar um exemplo muito claro: uma modelo muito bonita. Existem modelos que são muito bonitas, e eu fico preso a elas, não consigo me libertar da boniteza delas e, portanto, não consigo fazer uma coisa que seja livre delas e de mim, entende? Que seja independente delas e de mim. Ora, isso acontece muitas vezes quando estou pintando. Isso que o Willy estava falando é que tinha uma árvore copada, bonita, e eu digo o seguinte: "Peraí, essa árvore copada e bonita, isso aí qualquer um faz; agora, esse quadro não está pedindo uma árvore copada e bonita, porque nada desse quadro é bonito, nada desse quadro está atrás de virtuosismos".

Uma vez o Willy — eu e ele temos uma identidade muito grande em relação a certas coisas: brigamos o tempo inteiro, mas temos uma identidade muito grande — ficou aqui no ateliê olhando para cima e disse assim: "Enio, por que nós fazemos coisas tão feias?" (risos), e eu disse, "é uma boa pergunta".

 

Tem aquela coisa engraçada que você diz de não querer que o quadro vá parar na parede de um boçal endinheirado...

 

Enio Squeff. De um endinheirado que quer combinar com a...

 

Randáu Marques. O ton sur ton.

 

Enio Squeff. É, com o ton sur ton da sala de visitas (risos). Mas o grande negócio da sensação esquizofrênica é quando você faz um auto-retrato, porque é você e não é você. Quem fez esse auto-retrato? Quem se juntou a você pra fazer esse auto-retrato? Aí vem uma coisa esquizofrênica: você sente a ruptura entre você e o quadro, entre o que fez e o que o quadro efetivamente é. Eu acho que essa é uma sensação que só o artista tem; só o artista que tem a real visão do que está fazendo chega a esse patamar, esse limite, em que sente que não é ele mais a se fazer, mas é a arte, é o quadro que se faz nele. Há uma autonomia do quadro em relação a ele, entende? Isso você sente nos grandes artistas.

E há um determinado momento no qual o quadro passa a pedir para ser enfeiado, nesse sentido convencional da palavra, no qual você põe uma cor muito bonita, muito bonitinha, muito isso e muito aquilo, e que no fundo, no fundo, fica falso, não é a coisa que você deveria fazer, ele não está mais se pedindo, você está traindo o quadro. Há um determinado momento em que você trai o quadro. E aí é um deus-nos-acuda, e aí é o grande momento da crise do quadro. Eu estava dizendo agora há pouco em relação a esse painel que estou fazendo no sesc itaquera, vai ter um momento em que eu vou odiar aquele painel, vou ter vontade de... bom, destruir um painel é meio difícil (risos).

 

Vai dar muito mais trabalho.

 

Enio Squeff. 120 metros quadrados. Haverá um momento em que ele vai entrar em crise, eu sei, eu me conheço, sei que vou dizer: "mas que bela merda eu tô fazendo". Porque a outra sensação também o tempo inteiro é que você, terminado o quadro, vai dizer: "ah, ufa, terminei"; mas, bem pelo contrário, é a angústia do outro, é a ansiedade do outro:"putz, o outro vai ter que ser feito, e agora, como é que vai ser?"

 Tenho uma entrevista muito bonita do [João] Guimarães Rosa, em que ele diz: "bom, eu termino um livro e, de repente, os personagens começam a surgir dentro de mim; daí eu começo a desenhá-los, fico pensando e então começa o inferno". Entendeu? Então começa o inferno; que, por outro lado, é um inferno de puro gozo, é um inferno do qual você não consegue se afastar, porque sabe que aquilo você tem que fazer, e sente que sua vida está naquilo. Agora, se esse é o mistério da arte, não sei, para mim essa é a sensação que eu tenho.

Já para mim é uma dificuldade, pra você ter uma idéia, agüentar um vernissage: normalmente, em 90% dos casos, eu saio do vernissage completamente exaurido, porque eu acho que o artista não tinha de ser obrigado a ir em vernissage. Acho isso um martírio, uma coisa muito dolorosa, porque você tem que ficar ali rindo pras pessoas quando, na verdade, podia estar em casa pintando.

 

Randáu Marques. E explicando o inexplicável.

 

Enio Squeff. E explicando o quê? Eu estava em Cuba e chegaram os prefeitos — 450 e poucos anos de Havana e eu fui convidado para expor em Cuba; e aí chegaram os prefeitos de outras cidades, daquelas cidades ali do Caribe que estavam visitando Cuba, e alguns deles disseram, "maestro, o que você pensa sobre isso?" e eu digo: "olha, eu penso...", era difícil.

Por outro lado, você também não pode olhar e tratar com desprezo as pessoas, dizer "isso não interessa", você não pode ficar nessa postura. Sou filho de médico e me lembro da raiva que sentia quando ia perguntar para um médico qual era o tipo de doença e ele dizia: "não, isso interessa pra você, como eu sou o supremo sacerdote, sei das coisas e você não precisa saber". Há! e não é nada disso, você tem realmente que tentar explicar alguma coisa, mas é explicar o inexplicável, porque você vai dizer o quê? Eu quis tal coisa? Eu não quis tal coisa, o quadro que se quis, assim ou assado. Então essa é a questão de você chegar num vernissage e ser colocado de novo em confronto com a idéia do que você quis com aquilo. E por outro lado também é muito fácil você ver as Santidades e dizer: "bom, você é um místico". Não, não sou um místico.

 

E isso você deixou claro no texto que foi para a exposição.

 

Enio Squeff. Eu pus lá: "olha, eu tô fazendo isso porque faz parte do repertório da iconografia e, portanto, está na minha cabeça".

 

Baseado nisso eu queria fazer uma pergunta; aliás, são duas perguntas. Uma é: o que você pensa de curadoria em geral — a curadoria que a gente tem visto no Brasil — e da curadoria específica da sua exposição?

 

Enio Squeff. Eu acho que a Ronie [Prado] fez uma curadoria muito boa, mas aí também sou um pouco suspeito pra falar, porque ela é minha namorada, nós trabalhamos juntos e a gente sempre discute.

Vou dizer uma coisa pra você: acho que o curador tem autonomia em relação ao artista, porque faz a própria leitura. Eu me lembro que uma vez, quando o Gilberto [Habib de Oliveira] fez a curadoria da minha exposição em Pelotas, ele fez uma leitura que é a dele. A partir dos meus quadros ele fez uma leitura que, por outro lado, não posso discutir, porque há o olhar do espectador e eu tenho que respeitar; e, quando se trata de uma pessoa que precisa organizar minha exposição, dificilmente vou brigar com ela pela leitura que fez. Se acho que é coerente, pode ter uma linha conduzindo a um tipo de texto com o qual não preciso necessariamente concordar, mas que é dele.

É claro, você é questionado em determinados momentos, as pessoas perguntam o que eu acho e então eu digo. Você pode gostar muito de um quadro que eu não gosto. Acontece. "Ah! esse quadro é maravilhoso", eu digo, "bom". Essa é uma opinião que não posso discutir, assim como não posso discutir quando o cara diz assim: "Olha, esse quadro tá uma merda". Se eu expus, se eu deixei pra expor, se eu sou um pintor, logo, recebamos as batatas. Estamos aí ao léu. Você pinta um quadro, você submete à crítica ao olhar do outro.  Então, sob esse ponto de vista, o curador tem todo o direito de olhar para a sua obra como bem entender. O meu grande problema é ter sido crítico musical muito conhecido, muito respeitado — até certo ponto, tinha gente que queria me matar (risos) — e tinha um nome como jornalista, o Randáu está aqui, fomos colegas no Estadão [O Estado de São Paulo], e eu era um jornalista normal, um dos bons jornalistas, diga-se de passagem, mas, enfim, um jornalista como outro qualquer: e eis que tal sujeito depois de ser crítico musical agora passa a ser pintor? Olha, é muito difícil as pessoas aceitarem esse tipo de coisa. Ué, onde é que esse cara vai chegar?

Ontem, eu acho que foi essa moça que me ligou — como é o nome dela?

 

Ana Carolina.

 

Enio Squeff. Ana, isso mesmo, foi ela que me ligou e disse assim: "nossa, Enio, fui ver o seu nome na internet e aí você já fez tudo!" (risos). Isso é um pouco difícil, porque quem faz tudo, faz nada também (risos), essa é a outra questão. Também não vou me obliterar, como fiz durante muitos anos, porque eu não podia fazer tudo que achava que podia fazer. Então, se posso fazer tudo, vou fazer tudo: estou atrás da minha suma. Tanto que me deixaram fazer o livro sobre os topônimos [Squeff, Enio e Helder Ferreira. A Origem dos Nomes dos Municípios Paulistas, São Paulo, Imprensa Oficial do Estado, 2004. 312 pp.], eu fiz e desenhei o livro; me deixaram escrever sobre a Vila Madalena [Squeff, Enio. Vila Madalena— Crônica Histórica e Sentimental, São Paulo, Boitempo, 208 pp.] e tudo bem.

 

Outra coisa: foram para a exposição várias imagens judaico-cristãs, teve também a presença do candomblé, por que não foi o fauno grego?

 

Enio Squeff. Porque eu me esqueci (risos). Não me ocorreu. Poderia ter ido o fauno, poderia ter ido a Dânae, aí [aponta um quadro na parede], sendo devidamente...

 

"Cortejada".

 

Enio Squeff. É, cortejada ... a palavra não é bem essa, porque o Júpiter está bem explícito ali (risos). Ela foi muito baseada num dos quadros que talvez eu mais admire, aquele do Rembrandt [van Rijn], aquela Dânae que está no Hermitage [museu em São Petersburgo]. O meu sonho é viajar para a Rússia, ir ao Hermitage, só pra ver aquele quadro. Um dos quadros mais admiráveis da história da arte.

 

Então, você tem esse modo de mirar em outros pintores.

 

Enio Squeff. Sem dúvida. Isso aqui (apontando para um quadro na parede representando uma mulher reclinada) não é uma idéia da Maja [La Maja Vestida/ La Maja Desnuda, de Francisco José de Goya y Lucientes]? Não é uma paráfrase? Claro, tanto que eu chamo esse quadro de paráfrase, explicitamente.

 

Mas você considera isso técnica ou genericamente?

 

Enio Squeff. Genericamente.

 

Digo, o gênero da coisa ou a técnica? Você faz transposição da técnica, por exemplo, "tal cara fazia assim e eu faço, etc."?

 

Enio Squeff. Não, não. Isso eu não faço, porque aí seria meramente cópia e eu não sou nenhum [Edouard] Manet pra ter esse tipo de referencial e ir para uma outra coisa de uma forma até, muitas vezes, explícita. O 24 de maio, que ele põe lá o fuzilamento do Maximiliano [A Execução de Maximiliano]...

 

Na verdade, eu estava pensando em como, por exemplo, os impressionistas consideravam [Diego] Velázquez; quer dizer, observam um detalhe da técnica para trazer aquilo para o quadro.

 

Enio Squeff. Ah, sim, claro que eu tenho isso. Imagina se eu vou deixar de olhar para o [Henri] Matisse com o respeito que ele merece, na medida daquele despojamento que alcança — que provocava a admiração suprema do [Pablo] Picasso.

O próprio Picasso, essa exposição que a gente viu agora [2004, retrospectiva vinda do Musée Picasso para a Oca, no Parque do Ibirapuera], o que me deixou absolutamente estarrecido é o despojamento dele. É do homem dizer: "eu não sei pintar", para retomar a questão da pintura. Isso eu faço muito. Acho que a questão da pintura deve ser retomada a cada momento, e foi por isso que eu comecei a pintar a própria moldura, porque me incomodava muito essa questão, era sempre "que moldura pôr?". Bom, então, vamos fazer o seguinte: vamos pôr qualquer moldura, só que eu vou invadi-la, até para dizer que a moldura não deve ser o limite do quadro. Aliás, o quadro não deve ter limites, a idéia é a de que você pode ter um quadro que se espalhe pela parede.

 

E a moldura, no caso das suas pinturas, tem várias funções: a que confere uma transparência daquela imagem que vai se esfumando e aos poucos desaparece — como se continuasse virtualmente pra sempre —, aquela que cumpre um sentido ornamental...

 

Enio Squeff. Sem dúvida: e elas reincidem na idéia de ser pintura.

 

Isso.

 

Enio Squeff. Você calca, você reitera a moldura, até como forma de discuti-la. E é isso que muitos críticos não olham nos meus quadros, a idéia não exatamente da expansão da pintura, que é uma coisa mais ou menos óbvia, mas a reiteração de que aquilo é uma pintura e de uma forma, eu acho, até bastante original — não que pintura de moldura seja algo original.

 

O [Gustav] Klimt, por exemplo, fazia isso.

 

Enio Squeff. É, o Klimt fazia isso. Mas aí já dentro daquela idéia art nouveau.

 

Pintando as referências na moldura: se a temática era grega, havia motivos gregos na moldura, que é uma maneira diferente de se relacionar com ela.

 

Enio Squeff. Agora, evidentemente, voltando para a história de técnica, você tem a técnica dos grandes mestres. Eu me lembro que o Iberê Camargo — eu tenho a carta dele aí — me escreveu assim, quando já estava morrendo, ele me escreveu: "pinte os mestres". Porque quando ele teve aula com o [Giorgio] De Chirico, o De Chirico fez essa recomendação, ele foi para o Louvre e pintou. E o De Chirico viu as pinturas dele e disse: "o senhor pinta os mestres como um mestre".

 

E esse era um nome em que eu estava pensando também quando redigi aquela nota, Iberê Camargo. Grande pintor.

 

Enio Squeff. Ah, sim, grande pintor, pintor soberbo e um homem — e isso é que é fundamental na consideração do Iberê — de uma integridade artística a toda prova. Sempre levando aquela integridade às últimas conseqüências. Sem dúvida: Iberê.

 

Por isso fico pensando: cogitamos uns três, quatro nomes, o [Carlos] Bracher, o [Arnaldo] Vieira. Por que existe essa situação da pintura no Brasil, de ninguém saber o que eles [os pintores] fazem?

 

Enio Squeff. Eu acho o seguinte: primeiro, não existe um meio econômico muito... cultivado. Você não tem uma burguesia, um mecenato em cima disso. Você não tem uma burguesia inteligente: o Brasil já teve uma burguesia que se preocupou com arte. Você hoje tem umas mentes muito colonizadas, e de pessoas que vão comprar em Nova York, ou que vão ver qual é a última moda em Nova York. Eu andei vendo um pintor brasileiro que virou moda em Nova York, e que portanto virou moda aqui: uma merda de pintor, mas enfim.

 

É, mas a Madonna comprou um quadro dele.

 

Enio Squeff. (risos) Pois é, a Madonna comprou um quadro dele. Então, quem faz o artista é quem o compra e não o juízo que você possa ter ou um consenso em torno do artista. Veja, o Iberê Camargo — um camarada outro dia estava me explicando — o Iberê Camargo viveu a vida inteira lecionando, e só foi ter o seu lugar ao sol no fim da vida ...

 

Exatamente.

 

Enio Squeff ...quando construiu a casa dele lá em Porto Alegre, conforme ele queria que a casa fosse. E sendo ele o pintor que é. O [Alberto da Veiga] Guignard, não se fala, morreu quase na miséria. O [Emiliano] Di Cavalcanti, e assim muitos outros.

 

E não só pintores, por exemplo, artistas com uma obra em gravura, como a do [Marcelo] Grassmann.

 

Enio Squeff. Nossa, e o Grassmann!? Você está falando do Grassmann: e o Grassmann, que está ignorado? Que está tentando vender as suas gravuras e é um dos maiores gravuristas do mundo?

 

Sem dúvida.

 

Enio Squeff. Esse homem simplesmente está jogado no esquecimento. Onde é que está essa crítica de merda?

 

Aí é que está: não são só as pessoas com, vamos dizer, poder econômico, que poderiam legitimar esses artistas, mas existe um papel da crítica que não está sendo cumprido.

 

Enio Squeff. Que não está sendo cumprido. Mesmo porque, qual é o espaço que a crítica de artes plásticas tem nos jornais hoje? É o que têm algumas das jovens que estão escrevendo e são obrigadas a falar sobre déjà-vu, dizer pela undécima vez que Iberê Camargo é um pintor. É claro, vamos fazer uma matéria sobre a pintura do Iberê Camargo, que merece sempre ser louvada. E muitas vezes elas chegam para o editor e dizem: "olha, descobri um pintor novo que é muito interessante". O editor olha pra ela dizendo: "mas ele é consagrado? Então, qual é a importância que ele tem?".

Isso é um problema que me toca muito de perto porque sou jornalista também. Eu estava hoje com o Randáu  — e com outro amigo — sobre isso, porque há uma crítica muito pertinente de um jornalista americano, dizendo que hoje as pessoas não se preocupam com que o jornal melhore de qualidade, mas com que ele corte seus custos para que a lucratividade dele seja maior. Ou seja: o objetivo não é de que os jornais sejam diferentes uns dos outros — tanto que você tem fotografias do Estadão e da Folha que são exatamente a mesma coisa.

No fundo, os jornais hoje se preocupam com o marketing, ou seja, com o enfeite da notícia, e não com a notícia em si.

 

Tinha até uma brincadeira que eu fazia uns tempos atrás: eu e uns colegas fazíamos uns lançamentos de livros de poesia em que chegavam a ir 400 pessoas, e nem uma linha nos jornais. Aí eu dizia: mas o que acontece? Não é mais o jornalista que vai atrás da notícia, mas a notícia que precisa ir atrás do jornalista.

 

Enio Squeff. É isso mesmo. O sujeito não sai mais da Redação.

 

Randáu Marques. Contenção de custos (risos).

 

Enio Squeff. A questão passa a ser o táxi que o camarada vai gastar para conversar com o sujeito do outro lado da cidade.

 

Randáu Marques. Acaba sendo obrigado a entrevistar um artista plástico por telefone.

 

Enio Squeff. E é o que muitos deles fazem.

Agora, pra gente voltar para a vaca fria, a questão da arte brasileira: não há dúvida nenhuma de que nós nos perdemos, mas o Brasil se perdeu. Quando você ouve Villa-Lobos, você se pergunta: "mas que Brasil era esse?". É o Brasil que não existe mais. O Brasil se afastou de Villa-Lobos porque não era mais o Brasil que Villa-Lobos construiu. Outro dia ouvi um comentarista idiota dizendo: "ah, ele construiu um Brasil que não existe". Todo artista constrói um país que não existe, toda arte é uma construção. Agora, você tem que olhar pra essa arte pensando, que Alemanha, que Áustria o [Ludwig van] Beethoven construiu? É aquela real? Era, em parte, sim. Mas por outro lado era uma outra Áustria, um outro momento do pensamento musical.

Não há dúvida de que nos afastamos das nossas raízes. Muitos professores começaram a olhar para a questão do nacional como uma questão conspurcadora, de pecado capital; você não podia ser nacionalista, porque isso levaria necessariamente ao nazismo, como se as raízes nazistas estivessem num [Franz] Liszt, ou num Béla Bartók, por exemplo, que tiveram o olhar para a produção do povo, para a produção coletiva, por assim dizer. É por isso que a minha pintura se remete também à pintura do cordel. Ela tem a deformação do cordel. É aí que eu vou buscar de novo a pintura.

Mas você acha que um crítico desses, que está todo dia arrotando uísque nos grandes vernissages, vai ter um olhar para esse tipo de produção iconográfica?

Aliás, li hoje uma frase que achei notável: "ser contra é a melhor maneira de ser medíocre o tempo inteiro". O grande problema é você ser favorável, porque quando você diz sim, o sim é uma volição que implica todas as críticas possíveis que você possa sofrer. Quando você diz, "eu gosto de determinado artista" — seja ele músico, poeta, pintor, romancista, etc.  —, você está submetendo o seu juízo ao juízo público. E nada mais normal do que dizer: "esse sujeito gosta desse artista porque ele não entende nada; porque não é possível que ele possa gostar dessa coisa" (risos). É claro.

O problema todo é o da covardia da crítica. Mas há muitos críticos que se jogam na coisa e dizem: "eu gosto".

 

Randáu Marques. Como no caso da Semana de Arte Moderna.

 

Enio Squeff. De que alguns críticos disseram, "isso está certo, isso é assim mesmo". Claro.

 

Então eu te pergunto: como você, artista,  resolve essas oposições entre mundo e trabalho intelectual?

 

Enio Squeff. Eu me dei conta de que não existe homem ignorante. Existe o homem letrado, que não é necessariamente o mais indicado para fazer determinadas coisas. Por isso mesmo nunca me neguei a fazer as coisas, sempre procurei ser um camarada atuante, sempre me cobraram, "ah, você é um intelectual, logo, você é um nefelibata" (risos). Não sou nefelibata. É claro que hoje, se me pedirem para escrever um release, pra escrever uma bobagem qualquer, realmente me sinto muito irritado, porque acho que posso ser aproveitado para outras coisas; mas por outro lado, está bem onde estou hoje. Outro dia um camarada disse, "você está lá, perdido numa biblioteca", e eu disse (sussurrando) "e fica quieto que tá muito bom" (risos). Mesmo porque ficar cercado de livros é uma coisa muito boa para mim.

 

E o que os quadros representam nesse estado de coisas?

 

Enio Squeff. Você não acha — agora eu faço essa pergunta pra você...

 

Faça.

 

Enio Squeff...— que meus quadros são um tapa na cara de muitos desses críticos que estão esperando que eu faça instalações e fique num vanguardismo estéril?

 

Mas foi por isso que eu vim entrevistar você. (risos)

 

Enio Squeff. "Olha, esse cara está pintando, ele está no suporte tradicional, ele não tem mais nada que fazer?". Tem o filho de uma amiga minha, aluno dessa turminha de vanguardeiros lá da USP: ele me olha, me olha, e eu sinto que o olhar dele é de profunda comiseração por esse pobre-coitado que, além de tudo, até sabe desenhar — profunda comiseração —, ao invés de fazer "como os meus professores, que não sabem desenhar, mas em compensação têm grandes idéias, grandes conceitos".

A atitude que tenho para com eles: eu vou vê-los; a atitude que eu tenho para com as Bienais, essas besteiras que se faz nos últimos tempos, e eu vou, o parque temático, o trem-fantasma, eu vou. E algumas coisas são interessantes e boas; mas o contrário não ocorre. No fundo, as artes plásticas estão atrasadas. Acho que eu e mais um bom número de bons artistas estamos respondendo a este momento através de uma atitude que uma vez um sujeito definiu dizendo assim: "pois é, Enio, você sempre botou a cara pra bater". Botei. Acho que esse é o meu último momento de botar a cara pra bater.

 

Randáu Marques. E continua incomodando: o silêncio diz tudo.

 

Enio Squeff. É, o silêncio diz tudo. Tanto que fizeram matérias sobre o livro [A Origem dos Nomes dos Municípios Paulistas], elogiaram as ilustrações — o livro cujo lançamento casualmente coincidiu com a abertura exposição [Santidades] —, mas há um mutismo absoluto por parte da imprensa em relação à exposição.

Essa vanguarda, com esse instalacionismo — o "instalacionismo dominante", até escrevi sobre isso —, ela está buscando ainda, de novo, aquele efeito fácil de jogar a lata de tinta na cabeça das pessoas como se isso fosse a coisa mais interessante. Eu até aconselhei alguns deles: "querem emoções fortes? vão pro Jardim Ângela, subam a Rocinha" (risos). Vamos parar de brincar de espantar o burguês.

 

Quando o [Marcel]Duchamp fazia isso tinha um sentido, quando os dadaístas faziam isso tinha um sentido, mas era evidente que você não daria dois tiros com a mesma arma.

 

Enio Squeff. Claro, contar a piada dez vezes... depois de certo momento fica ridículo, vira um lugar-comum. Passa a ser a forma pela qual você elimina a possibilidade de se dar uma gargalhada. O cara dá um tiro, bum! "Ah, que interessante", todo mundo leva um susto e pronto. Não se dão conta de que isso já era, entende?

Eu me lembro do Restany, Pierre Restany, quando ele veio aqui, em plena ditadura, ele saiu com uma placa em branco ali pelo Viaduto do Chá. Foi preso — claro, porque se prendiam até placas em branco na época da ditadura. Um amigo francês, do Le Monde, um jornalista que acompanhou o caso de quando ele foi preso, disse o seguinte: "esse cretino, por que ele não escreveu abaixo a ditadura naquele cartaz, por que ele deixou em branco? Covarde" (risos). É esse tipo de atitude que essa gente tem, "oh, estou fazendo uma arte revolucionária".

Eu prefiro deixar que eles tenham o impacto da minha pintura lá numa exposição bem-feita como foi essa da Caixa Econômica. Se as pessoas não ficam indiferentes, acho isso muito bom, mas não é o fundamental, porque eu podia dar um tiro, peidar, sei lá, fazer qualquer outra coisa.

 

Mas as pessoas estão começando a ficar indiferentes a isso, também (risos).

 

Enio Squeff. Agora, à pintura, não. Curioso, isso.

 

Gostaria de te fazer uma outra pergunta. Agora há pouco estávamos vendo suas ilustrações para o Dom Quixote [de Miguel de Cervantes Saavedra]: e a sua obra de ilustrador, como você vê?

 

Enio Squeff. A primeira vez em que fui solicitado como ilustrador eu sabia que seria um caminho inevitável para a pintura. No fundo, toda pintura é ilustrativa. Se você olhar para a Capela Sistina [no Vaticano], ela é uma grande ilustração, uma leitura da Bíblia, uma forma pela qual você divisa o Juízo Final, etc. Não deixa de ter um caráter eminentemente ilustrativo. Toda arte figurativa é eminentemente ilustrativa; é claro que é uma ilustração funcional, no sentido de que parte de um livro, você tem um texto e você coteja essa ilustração com o texto, sem dúvida.

Eu acho que a ilustração para mim foi essa porta pela qual eu entrei na pintura. A pintura não necessariamente ilustrativa, ou que dependesse de um texto ao lado para que dissesse alguma coisa; e ainda assim permaneço um ilustrador na minha pintura, no sentido de que, ao me referir a determinados gêneros, não deixo de fazer uma ilustração da ilustração, quer dizer, uma ilustração da própria história da arte.

Outro dia me ligou um sujeito de Brasília — que me pediu pra fazer a edição artesanal de Os Ratos, do Dionélio Machado — e me disse: "você é considerado um dos maiores ilustradores desse país". Pessoalmente não me considero tudo isso que ele achava e que disse que eu era; me considero um bom ilustrador. E a questão também é essa, há grandes ilustradores que não fazem aquela coisa espetaculosa que você vê nos livros, porque também há um viés de espetáculo nas publicações de hoje em dia.

 

O que você chama de "espetaculoso", exatamente?

 

Enio Squeff. Há uma série de artifícios gráficos para impor um tipo de ilustração que, no fundo, é medíocre; mas que justamente através desses artifícios meramente gráficos esplendem. Eu me lembro de que quando fui, durante muitos anos — quer dizer, nem tantos, menos do que eu gostaria —, representante da União Brasileira de Escritores para o julgamento do prêmio Jabuti de ilustração, e isso, é claro, até o momento em que também concorri, e me lembro de ficar surpreendido porque havia ilustradores artesanais que faziam coisas fantásticas: me lembro até de um livro que era uma coisa de [Cândido] Portinari para as crianças, que foi pintado pelo Rubens Matuck, e que ele fazia uma paráfrase em cima do Portinari muito bem feita, e até insisti, mas nenhum dos camaradas em que votei foi jamais premiado. Não porque a Câmara Brasileira do Livro não fosse acolher, mas porque os outros jurados estavam realmente atrás daquele tipo de ilustração, meramente de computador, do artifício do computador e os juízes — não tinha contato com nenhum deles, cada fazia um juízo independentemente do outro — ficavam muito atraídos pelo artifício.

É claro que se volta constantemente para a ilustração artesanal. Hoje há todo um caminho de parte de editores de buscar esse tipo de ilustração — e quando me chamam, é para fazer isso. Agora, não há dúvida de que há esse sentido de modismo, quase inescapável.

Acho que como ilustrador até que inovei em alguns sentidos. Aquele livro, Com palmos medida [Terra, trabalho e conflito na Literatura Brasileira, organização: Flávio Aguiar; Prefácio: Antonio Candido; Ilustrações: Enio Squeff, São Paulo, Boitempo, 415 pp.], é uma inovação em matéria de ilustração de textos literários. Você não conhece?

 

Não [Enio Squeff pega um exemplar e me dá]. Eles imprimiram a coisa, te deram e você desenhou em cima, foi isso?

 

Enio Squeff. É... não chegou a ser feito assim, tive de fazer com o computador, mas eu primeiro desenhei em todo o livro para saber como iria fazer. Fica com esse aí.

 

Tem certeza? Muito obrigado.

 

Enio Squeff. Você vai ver. O livro é contra esse ilustrativismo maquinal, sem nenhuma preocupação artesanal, entendeu? Resolvi aproveitar essa chance. Você sabe que não houve nenhum comentário na imprensa? Ouvi dizer que olharam, e o comentário: "coisa de barbudo, coisa do MST". Você vê que é todo um viés político por trás disso.

 

(rindo) "Coisa de barbudo". Isso é realmente engraçado.

 

Enio Squeff. Quer dizer, independente de ser bom ou ruim, já ajuízam a coisa a partir de um ponto de vista político.

 

As pessoas têm esse bom hábito de olhar para as coisas com um ponto de vista cuidadosamente formado.

 

Enio Squeff. Claro.

 

Mas não é o que costuma acontecer nos períodos em que a arte está se expandindo, ou funcionando.

 

Enio Squeff. Exatamente. Mas eu não tenho dúvida de que, mais cedo ou mais tarde, a arte que eu e mais essa meia-dúzia estamos fazendo, será considerada um grande momento da arte brasileira; agora, não tenho dúvida, também, que pra que isso aconteça talvez a gente tenha de ir para a cova antes.

Mas o fato de você estar me entrevistando já é um primeiro momento em que algumas pessoas estão dizendo "olha...".

 

Mas eu sou um independente (risos), orgulhosamente, mas um independente (risos).

 

Enio Squeff. Mas é por isso mesmo. Isso que é importante. Vem um crítico, que é um poeta, que está de fora e diz: "eu vou assinar embaixo". Alguém tem que começar a romper essa camisa-de-força.

É claro, tenho muitos amigos na imprensa. Agora deve sair uma matéria, acredito que vai ser uma matéria interessante, na Gazeta Mercantil. Mas aí é porque a gente também tem amigos. Tem uma frase de um escritor americano que diz assim: "artistas que vivem até certa idade" — ele evidentemente está falando de bons artistas — "acabam se impondo porque os amigos que eles têm assumem o poder" (risos). É claro, os amigos que eles têm assumem o poder.

Você sabe que o [Eugène] Delacroix era filho do [Charles Maurice] Talleyrand [-Périgord], não sabe? É, Delacroix era filho natural do Talleyrand, que foi ministro, primeiro do Napoleão, depois dos Bourbons. Nunca faltou emprego pro Delacroix: havia momentos em que ele estava numa banana tremenda e, de repente, vinha uma encomenda lá da prefeitura de uma cidade no interior da França, que era o velho Talleyrand, dizendo: "olha, dá um emprego pra esse guri, é o meu filho" (risos). Quer dizer, um acidente histórico beneficiou um dos grandes gênios da história da pintura. Graças a Deus, que bom, que maravilha.

Mas a conclusão daquele escritor norte-americano — é o que escreveu Olympia, morreu há pouco tempo, e fez um grande panorama da arte do Impressionismo, desde Manet até o final; fez um panorama da sociedade da época, porque queria escrever sobre os pintores, mas recolheu tanto documento que acabou fazendo esse panorama — era a da que então haveria encomenda de obras. Esse lugar ao sol que eu tenho lá em Itaquera para fazer aquele grande painel, não há dúvida de que tem a ver com contatos de gente que me conhece e têm a possibilidade de decidir e dizer: "vamos encomendar essa coisa pro Enio Squeff".

 

É, eu espero que as coisas realmente mudem e fiquem assim: todos os que têm qualidade terão sua vez, e enquanto estão fazendo suas obras.

 

Enio Squeff. Enquanto estão fazendo, claro!

 

Randáu Marques. Como o tempo, sem dúvida.

 

Enio Squeff. É, mas... como é aquela música? "Se vão fazer alguma coisa por mim, que façam agora". Acho que é do Nelson Cavaquinho. Não há dúvida. Como eu espero não morrer daqui há uns três ou quatro anos, provavelmente minhas coisa vão ser valorizadas. Um arquiteto outro dia me ligou entusiasmadíssimo com o que viu, querendo saber os preços das obras, etc. Nada mal. Mas se eu dependesse disso aqui... a cartilha continua. Esses babacas da vangarda ocupam todos os espaços possíveis. Quando o dono de uma instituição põe uma obra de vanguarda não há um crítico que vá dizer que aquilo é uma merda.

 

Acho que você é muito generoso chamando certas coisas de vanguarda.

 

Enio Squeff. É verdade, vanguarda usando a expressão que eles mesmos... usando ironicamente essa expressão. Na verdade, de vanguarda eles não têm nada, são uns repetidores, são acadêmicos. É muito interessante que hoje a vanguarda esteja instalada na universidade, ela apenas defina o seu papel hoje, de é ser acadêmica.

 

Muito bem. Agradeço a gentileza da entrevista e agora, parafraseando o [Antônio] Abujamra naquele programa dele [Provocações] diga livremente o que você quiser dizer para encerrar essa história toda.

 

Enio Squeff. Hei de vencer (risos).

 

 

 

 

Dirceu Villa, Poeta e Mestre em Letras, pela Universidade de S. Paulo. Autor de MCMXCVIII (S. Paulo: Badaró, 1998) e de Descort (S. Paulo: Hedra, 2003), tradutor do livro de poemas Lustra (1916), de Ezra Pound. Editor, com o poeta e fotógrafo Cídio Martins, da revista de arte Gargântua (S. Paulo: Humanitas, 1999). Mais em  PoemasUm Inferno de Puro GozoA Vida InclassificávelA Pornografia e o Erotismo.