Estátua de sal no Mar Morto | Foto de M. Disdero, 2007 
 
 
 
 
 
 
 

Anna Akhmátova

A Mulher de Lot



"A mulher de Lot, que o seguia, olhou

para trás e transformou-se numa estátua de sal"

Gênesis



E o homem justo seguiu o enviado de Deus,

alto e brilhante, pelas negras montanhas.


Mas a angústia falava bem alto à sua mulher:


"Ainda não é tarde demais; ainda dá tempo de olhar

as rubras torres da tua Sodoma natal,

a praça onde cantavas, o pátio onde fiavas,

as janelas vazias da casa elevada

onde destes filhos ao homem amado".


Ela olhou e — paralisada pela dor mortal —,

seus olhos nada mais puderam ver.


E converte-se o corpo em transparente sal

e os ágeis pés no chão enraizaram-se.


Quem há de chorar por essa mulher?

Não é insignificante demais para que a lamentem?


E, no entanto, meu coração nunca esquecerá

quem deu a própria vida por um único olhar.



[Trad. Lauro Machado Coelho]







Wislawa Szymborska

A Mulher de Lot



Dizem que olhei para trás de curiosa.

Mas quem sabe eu também tinha outras razões.


Olhei para trás de pena pela tigela de prata.

Por distração — amarrando a tira da sandália.


Para não olhar mais para a nuca virtuosa

do meu marido Lot.


Pela súbita certeza de que se eu morresse

ele nem diminuiria o passo.


Pela desobediência dos mansos.

Alerta à perseguição.


Afetada pelo silêncio,

na esperança de Deus ter mudado de ideia.


Nossas duas filhas já sumiam lá no cimo do morro.

Senti em mim a velhice. O afastamento.

A futilidade da errância. Sonolência.


Olhei para trás enquanto punha a trouxa no chão.

Olhei para trás por receio de onde pisar.


No meu caminho surgiram serpentes,

aranhas, ratos silvestres e filhotes de abutres.


Já não eram bons nem maus — simplesmente tudo que vivia

serpenteava ou pulava em pânico consorte.


Olhei para trás de solidão.

De vergonha de fugir às escondidas.

De vontade de gritar, de voltar.


Ou quem sabe foi só um vento que bateu,

despenteou meu cabelo e levantou meu vestido.


Tive a impressão de que me viam dos muros de Sodoma

e caíam na risada, uma e outra vez.


Olhei para trás de raiva.

Para me saciar de sua enorme ruína.


Olhei para trás por todas as razões mencionadas acima.

Olhei para trás sem querer.


Foi somente uma rocha que virou, roncando sob meus pés.

Foi uma fenda que de súbito me podou o passo.


Na beira trotava um hamster apoiado nas duas patas.

E foi então que ambos olhamos para trás.


Não, não. Eu continuava correndo,

me arrastava e levantava,

enquanto a escuridão não caiu do céu

e com ela o cascalho ardente e as aves mortas.


Sem poder respirar, rodopiei várias vezes.


Se alguém me visse, por certo acharia que eu dançava.


É concebível que meus olhos estivessem abertos.

É possível que ao cair meu rosto fitasse a cidade.



[Trad. Regina Przybycien]







Assionara Souza

A mulher de Lot



Um passo atrás

Enquanto a cidade desaba

Todos correndo

Um tumulto dos diabos

O filho, a filha, o marido

A vizinha da frente — com quem o infeliz tem fornicado

Há mais de cinco anos embaixo de seu nariz

Como se ela não soubesse

Como se ela não tivesse visto de tudo nessa vida

Ele perguntando se a camisa vermelha

— Aquela com um só bolso no lado direito?

— Sim. Essa mesma.

Se a camisa vermelha não estava limpa e bem passada

E o filho indo no mesmo caminho

Tratando-a feito lixo

— A mãe não sabe pronunciar a palavra "estultícia". Tenta, mãe!

Estúpidos todos

Até a filha, que ela tanto ensinou

Agora andava com um centurião

Um centurião!

Maior desgosto para uma mãe

E depois dessa correria toda

Quando arrumassem pouso

Adivinhem quem prepararia o jantar?

Não teve a menor dúvida

Mirou a cidade em chamas

Uma sensação incrível

Deixar de ser uma mulher de pedra

Seu corpo inteiro puro sal rebrilhando ao sol



Assionara Souza

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Silvana Guimarães

Sodoma



Corria. O pensamento sem fôlego tentava registrar todos os seus abandonos. Corria. O que era mais desespero deixar para longe: B., um pé de figo, lua cadente, vestido carmim, B., uma esquina, uma escada — corria — B., um terço de caroços de azeitona, anel de pedra falsa, colônia barata, xícara sem asa, algumas roupas de baixo, B., três ou quatro retratos — corria — discos, livros, assombros, B., avencas ao vento, musgos, um jardim, B., uma janela. Corria ao lado de A. Pensava em B. Aquelas tardes de cores lentas sussurros incendiando o silêncio risadas lambuzadas a sua língua a minha língua nunca mais as suas mãos. Onde a vertigem? Corria. Relâmpagos matam mais do que vulcões, furacões e terremotos. Corria com A. Correria com A. pelo resto da vida. Qual vida qual vida qual vida qual? Para sempre, tão iguais como o são uma saracura e um ramo de alecrim. Corria. Os dias monótonos medíocres — suava — os discursos insossos as noites inapetentes. Entre a sombra e a sombra, para sempre. Qual vida? Qual? Voava. Num repente, a valentia, última chance: olhou para trás.


Agora estátua de sal. E a sede.



Silvana Guimarães

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Adriane Garcia

O método da mulher de Lot



Quem olhasse para trás se tornaria

Uma estátua de sal

Foi o dito e

Todos sabiam


Como qualquer um sabe

Que cortar o pulso


Como qualquer um sabe

Que tomar veneno


Como qualquer um sabe

Que se enforcar na corda


Como qualquer um sabe

Que pular de um penhasco


Mas me tornar uma estátua de sal

(perdoem-me por não aguentar mais, minhas filhas)

Me pareceu mais rápido

Menos doloroso

Do que acompanhar aquele homem

Vendo o que eu via

Todos os dias

Dentro da minha casa.



Adriane Garcia

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julho, 2020