©diane arbus
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 

namoradas

 

 

ah, seus seios

esse susto que guardam

dois pássaros se debatendo

na gaiola do vestido

 

céu azul, geada na certa

os biquinhos duros

se abrem pedindo comida

chupo um, deposito o mel

o outro chora de inveja

 

minhas mãos correm embaixo das saias

pronto! pronto! mamãe está aqui

o corpo incendeia de brilho

e da garganta vem um canto bonito

 

 

 

 

 

 

duplo

 

 

um centauro dorme no jardim

e sonha com joelhos humanos

na extensão de duas pernas

sua boca colada a folhas

exala um odor que se forma

do pelo de sua garupa

dos cascos de suas patas

na altura do ventre

dois rios de sangue se misturam

a parte gente invade o lado cavalo

nesse instante, o moço esguio

a caminhar pelo jardim

avista um centauro dormindo

o dorso relaxado de um homem

preso ao potente volume animal

pegadas fundas cavadas na terra

bosta secando perto de flores

o arco e a flecha largados

o moço não pensa, apenas recolhe-os

retesa o arco

ajusta a mira e lança a seta

num susto de abismo, o centauro ressona,

abre e fecha lentamente os olhos

na fina tela da retina registra-se a imagem de um rosto,

gêmeo do seu, cabeça pendente e arma em punhos

 

faz-se a primeira tarde da eternidade

 

 

 

 

 

 

paralisia

 

 

ontem mesmo eu fui

olhei, como quem, já com fome,

espera um ônibus

que demora a vir

sabendo que, se desistisse

podia ser bem pior

e então ele chega

eu embarco

sento-me junto à janela

e acomodo os olhos

nulos de desejo

pra a reprise da paisagem

a correr dentro dos teus olhos

 

e seguimos o curso da vida

silenciosos e resignados

como esses passageiros

que se mantêm juntos

pela coincidência de estarem os dois

indo sempre para o mesmo lugar

 

 

 

 

 

 

depois da última faixa

 

 

eram quase cinco da manhã

ele estava embriagado e quieto

oscilando como um pêndulo

diante do mistério da porta fechada do elevador

virou-se para mim, que o observava do túnel do corredor

e com aquele olhar de crocodilo triste (porque há também os crocodilos felizes)

desferiu em voz atrasada esta sentença:

"prefira os poetas pobres

aos filósofos ricos"

oh, dia miserável de inverno

— este em que tomamos um bêbado por conselheiro

mas podia ser pior

podia eu estar sentada em um café

com hora e dia marcados

achando perfeitas as palavras

de um sujeito que ganha pra me emocionar

"que os mortos me emocionem — eu aceito.

que as invenções dos mortos me emocionem — é a norma.

não me venham burocratizar a poesia

e fazer dela música para acalmar camundongos",

ainda tive que ouvir essa

antes de ele ser engolido pelo elevador

então entrei em casa, chaveei a porta

e depois de esvaziar cinzeiros e recolher copos

e ainda pensando no que ele disse

olhei pela janela e vi o mundo desabar suavemente

enquanto o disco insistia

naquele ruído silencioso

depois da última faixa

 

 

 

 

 

 

romance

 

 

o espaço

dentro do teu abraço

é infinito

silêncio depois do salto

nu lago

cabelos flutuam

feito algas

meus olhos abertos

dentro d'água

espantados de tanto

encanto

sem me dar conta

de que é preciso voltar

para a solidão do corpo

emoldurado de ar

 

 

 

 

 

 

grampo

 

 

sim, está tudo bem

não, ela não respondeu

a foto está muito melhor que a outra

o dia está menos pior que ontem

roupas no varal me acalmam

se tiver vento,

gatos saltando,

crianças correndo

tua voz

tento interpretar tua voz

enquanto desenho com bic

um relógio na pele do pulso

o tempo tipo um novelo

desenrolo todo

vejo a cor do fio

cara pálida na janela

o céu muda mil vezes por dia

tenho amado minha mãe

como se ela fosse minha filha

e meu pai segue encantado

com uma nova invenção

((joga insanidade demais nos relacionamentos

((o filme é bom até aquela parte em que a moça chora

((hoje usei a única blusa que você deixou

((não vou, porque eu gosto dessa foto

((é linda, eu adoro

 

fim da gravação

 

 

 

 

 

 

criptonita

 

 

pura maldade, as ilusões do cinema

eu tinha apenas oito anos

entrei naquela matinê

nem sabia que estava prestes

a conhecer meu primeiro amor

o corpo um tanto bambo

pelo apertado do sapato

meu pai nem estava ali

distraída, sentei-me, estrelinha

entre a via láctea de assentos

(na cidade, só o cinema e o cemitério

eram maiores que a igreja)

lábios sugando no canudinho

as últimas gotas de refri

meus olhos vesgos se ergueram

quando a música estourou

lá pelas tantas, eu meio tonta

dividida entre o herói e o ator,

um pouso leve e o corpo estátua

braços cruzados frente a mim

e aquele "pega rapaz" que fazia bem assim...

o safado, imagine!, cravou-me os olhos

e deu aquele sorrisim

ai, super homem, vem nimim

mãos suadas, coração acelerado

— Será que alguém filmou o meu sobressalto?

eu não era mais uma menina no cinema

era toda eu uma mulher com seu amante

 

 

 

 

 

 

psycho

 

 

mamãe, eu conheci uma moça

ela é tão diferente, mamãe

não fique zangada comigo

é só uma nova amiga

uma amiga especial, mamãe

mas nem tão especial

quanto eu pra você

nem um pouco especial

quanto você é pra mim

mamãe, nós temos essa ligação

serei seu garotinho sem restrições

deito minha cabeça em seu colo

sinto o cheiro que sai de suas entranhas

mamãe, você está menstruada?

esse cheiro de sangue

me alivia o coração

posso adormecer de tão relaxado

e no sonho ainda estaremos juntos

prendo o olho naquele buraco na parede

aquele que dá pro teu banheiro

vejo você despir-se da anágua

e demais peças íntimas uma por uma

íntimas demais antes de entrar na água

e o sangue corre num delicado filete

do meio de suas pernas pro buraco da minha mente

minha boca seca e minhas calças estouram

se a moça pensa que me fará te esquecer

ela que desista dessa ideia insana

prendo o olho no buraco na parede

aquele que dá pro banheiro da moça

agora ela se despe da anágua

e demais peças íntimas uma por uma

íntimas demais antes de entrar na água

essa visão engole meus pensamentos

minha boca seca e minhas calças estouram

a moça está completamente enganada

se pensa que pode me afastar de mamãe

ela tem uma boca bonita quando grita

não pode! não pode! não pode! não pode!

o sangue espirra do corpo pro meu rosto

mas o sangue de mamãe é bem mais intenso

o sangue de mamãe me adormece e acalma

me traz sonhos felizes e contentamento

as mães são as melhores amigas de um garoto

 

 

 

 

 

 

diante do corpo

 

 

é explorada

depois fica aí se fazendo de coitada

 

é assediada

depois fica aí se fazendo de coitada

 

é estuprada

depois fica aí se fazendo de coitada

 

é assassinada

depois fica aí se fazendo de coitada

 

 

 

 

 

 

boca do inferno

 

 

não lembro se foi naquele banheiro de aeroporto na antuérpia que as duas se conheceram

— ou se no brasil,

naquela madrugada de uma quarta-feira de cinzas

o cenário, uma padaria no leblon

nausicaa, com saída de banho à grega, deixava entrever um biquininho rosa-bebê,

ainda cheia de gás pra comandar o abre-alas do carro cavalo de troia

enquanto ofélia, com seu vestido inflado de saias com apliques de sutis miosótis,

postava uma foto gótica atrás da outra na página do instagram

o certo é que as duas estavam arrasadas com seus homens

o viajante era cheio da lábia

a cada encontro prometia que tomaria coragem e largaria a esposa

e que o casamento ia de mal a pior

e que o filho não parava em casa

e que a esposa cada vez mais se enchia de tarefas intermináveis

já o noivinho da ofélia

naquela relação difícil com a mãe

andando com uma gente estranha

jogando indiretas no grupo de whatsapp da família

e atormentando todo mundo com sua mania de perseguição

digamos que tenha sido num banheiro de aeroporto na antuérpia

isso pouca importância tem

naquela hora de retocar o batom,  frente ao espelho

os olhares se cruzaram

e depois disso seguiu-se uma confusão de bocas

um embaraço de pernas

uma união de barrigas etc., etc.

até hoje os best-sellers não falam em outro assunto

 

 

 

 

 

 

mito

 

 

a verdadeira história

de frida khalo é frida khalo

nenhuma fotografia

nenhuma frase bordada num lenço

nenhuma tela

impregnada de tinta, formas e texturas

podem dizer

a verdadeira história

de frida khalo

somente frida khalo

sua carne, seus ossos

sua voz, seu sangue

 

 

 

 

 

 

confissão

 

 

fui eu que estuprei a menina

as sessenta e seis mãos que a agarraram

eram minhas

os trinta e três paus vergados

que atravessaram a sua carne

eram todos meus

os insultos em volta do corpo ultrajado

vociferando e gritando e babando

saíram da minha boca

a porra que banhou a pele indefesa

as manchas roxas entre suas pernas

os dentes cravados em seu pescoço

o close da câmera durante o ato

o riso sarcástico

a parceria dos curradores

fui eu que deixei isso acontecer

quando mantive o casamento

a par com aquele caso

sem que ninguém fosse avisado

quando contei aquela piada

quando paguei um salário de merda

pra mulher que assumiu o cargo

quando cedi o ouvido

às confissões do bandido

quando achei o corpo da mocinha

passível de ser comido

aquele dia em que viajei por horas

com as pernas arreganhadas

oprimindo a moça ao lado

na festa em que achei ridículo

o riso ousado da travesti

na punheta no meio do expediente

pra gostosa recém-contratada

quando quis matar a namorada

só porque ela não me amava

quando chamei fulana de puta

e considerei o feminismo

assunto de mal comida

quando dormi tranquilo

depois de ouvir estatísticas

dos crimes e abusos

cometidos contra mulheres

ali estou eu, em meio ao bando

incentivando com a minha apatia

toda a barbárie de todos os dias

as provas são infindáveis

me prendam, me levem

me lavem, me livrem de mim

 

 

 

 

 

 

olho por olho

 

 

em solidariedade

aos que se abstêm de beijar em público

por medo de ser banidos

humilhados

insultados

espancados

assassinados

decretaremos um dia sem beijos escancarados

um dia sem abraços apertados

nos aeroportos

nos terminais rodoviários

nas filas dos metrôs

um dia inteiro sem encoxadas de adolescentes apaixonados nos pontos de ônibus

24horas intermináveis sem carinhos públicos

nenhuma expressão explícita de amor

nos pátios das escolas

nenhum chupão no pescoço

na despedida da festa em frente ao prédio, sob o olhar do porteiro

nada de beijos rápidos e fortes

no amarelo do sinal

sem declarações de amor gritadas

no meio da rua, nas praças, nos parques

nenhum aperto de mãos nos leitos de hospitais

abraços nos cinemas: interditados pelo prazo de um dia

agarrar aquelas pernas no sofá da sala

na presença de toda a família

também está proibido pelo eterno, solitário e frio

tempo que perdurar esse decreto

depois de encerrado o dia

os hipócritas sentirão

uma sede infinita de amor

e se houver sobreviventes

beijar escondido

será a máxima conquista

de crianças curiosas

e amantes incendiários

 

 

 

junho, 2016

 

 

 

Assionara Souza. Escritora, nascida em Caicó/RN, em 14/10/1969, viveu em Curitiba/PR desde os 11 anos de idade. Formada em Estudos Literários pela Universidade Federal do Paraná, foi pesquisadora da obra de Osman Lins (1924-1978). Autora dos volumes de contos Cecília não é um cachimbo(2005), Amanhã. Com sorvete! (2010), Os hábitos e os monges (2011), Na rua: a caminho do circo (2014) — contemplado com a Bolsa Petrobras, 2014; e Alquimista na chuva (poesia, 2017). Sua obra tem sido publicada no México pela editora Calygramma. Idealizou e coordenou o projeto "Translações: literatura em trânsito" [antologia de autores paranaenses: www.literaturaemtransito.com]. Estreou na dramaturgia escrevendo a peça Das mulheres de antes (2016), para a Inominável Companhia de Teatro. Morreu em Curitiba/PR, em 21/05/2018.

 

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