No texto para a quarta capa, Tereza Yamashita aponta algumas possíveis chaves para a leitura deste Algum lugar em parte alguma, de Nelson de Oliveira, dentre elas o território nebuloso e por vezes inexplicável do sonho, onde a triste existência da causalidade não é a lei.

        

Escadas sem início nem fim, como passagens secretas para dimensões paralelas ilustram o volume, alertando mais uma vez o leitor que não se trata de um trabalho linear, um conjunto de textos que sigam o ditame de Aristóteles, em sua Poética, de que o texto narrativo deve ter a seqüência  quase mântrica do início, meio e fim.

        

No conto Os antepassados, os porcos, uma frase chama a atenção: "Debaixo de nossos pés a terra deve conter uma infinidade de túneis, Menininha me diz. Isso não te preocupa?" Todo o texto de Nelson é como este esboço subterrâneo: infinitos túneis que levam a infinitos caminhos. É como se o autor ressaltasse: nem tudo é aquilo que parece ser, sob a camada tênue de pó que cobre a superfície, há diversas possibilidades de se entender o que se nos apresenta.

        

Em Senhora aos domingos, relato vertiginoso que por motivos também subterrâneos levou-me a dois contos de Clarice Lispector, Miss Algrave e A bela e a fera, há indícios mais explícitos desta aparência que ludibria o olhar e, na verdade, é a fonte da polissemia do autor, demonstrada ao longo de seu trabalho ficcional: "De repente, o mais velho deles se volta pra ela e, talvez com o intuito de demonstrar uma difícil equação filosófica, ele diz, o rústico porque é ignorante vê que o céu  é azul mas o pensador porque é sábio e distingue o verdadeiro do aparente vê que aquilo que parece céu azul nem é azul nem é céu."

        

Por vezes, o universo do onírico é assombrado por arroubos de concretude. No conto Marli, o texto que se desenvolve turvado, como um labirinto no qual somos colocados já no meio, sem entrada e muito menos perspectiva de saída, deságua na seguinte clareira: "Aquele quarto e toda esta casa, da mesma maneira que Marli por onde quer que passasse, cheirava a sexo. Mas não o tipo de sexo mais elaborado e sublime, fantasioso, de corpos em contato com alguma coisa acima da trepada mais trivial, não o tipo de gozo estético muito próximo de uma religiosidade informe, áspera, misturado com uma essência incrivelmente sutil. O cheiro era, na verdade um sabor. Algo a princípio difícil de ser identificado. O sabor de uma refeição depravada. Uma refeição que se come quente mas nem por isso satisfaz o corpo e afasta a fome, porque na primeira mordida o gosto de sebo e suor que acompanha cada roçar de pernas, cada movimento passível de ser envolvido pela boca, cada textura que a língua é obrigada a reconhecer, intoxica os sentidos e anula a vontade, forçando os corpos a um novo entrelaçamento".

 

Em Pobre patinho Frank, cheio de si e de vento, lê-se: "Uma movimentação totalmente fora de hora.Não passa das cinco. No entanto, uma movimentação repleta de sentido." Trata-se de um menino de quatro, cinco anos, que acorda em meio à madrugada e passa a prestar atenção nos ruídos ensurdecedores que os feirantes fazem ao montar suas barracas, entre quatro e cinco horas da manhã, como se fosse meio-dia. Os moradores, provavelmente já haviam se habituado, mas o menino acorda assustado. Toda a narrativa, do ponto de vista da fantasia da criança, é engenhosamente construída, esbarrando no onírico e no impensável, sim, mas através do universo da imaginação infantil, mundo que presenciamos nos gestos de crianças que nos cercam ou que vivemos nós mesmos, num passado atemporal. O texto de Nelson de Oliveira, no conjunto do livro, é como a movimentação fervilhante dos feirantes, alta madrugada: um texto às vezes fora de lugar, por outras fora de hora, mas repleto de sentido. Num determinado instante da história, é descrita assim a percepção do menino: "Aos poucos ia agrupando fragmentos do futuro e do passado numa única lembrança ao mesmo tempo sonora e silenciosa, artificial e palpável."

 

Anatol Rosenfeld, no texto Reflexões sobre o romance moderno, traça o panorama da narrativa do século XX, nascida nos séculos anteriores e transformada radicalmente com as vanguardas francesas, principalmente. Fala também da importância de Pirandelo e da quebra da perspectiva do teatro tradicional, citando também pintura, literatura, música. Nelson de Oliveira experimenta, como estimulou da maneira mais escancarada Mario de Andrade: o Modernismo é o direito permanente à pesquisa estética. Passando por Breton, que na literatura foi responsável pela estética surrealista, Nelson atravessa os tempos e continua a experimentar, em detrimento do nariz torcido da crítica mais conservadora. Em um dos contos há ares dos porcos mandões de Orwell, pitadas da erudição do autor que passam incólumes diante de alguns olhares menos atentos.

 

O texto que dá nome ao livro, talvez o mais denso, resvala no principal problema da sociedade contemporânea: o homem feito coisa pelo rolo compressor do capitalismo. Também aborda a sanidade levada ao limite pela perda do ente afetivamente relevante. A mistura é nitroglicerina: espalha uma crítica social severa, aponta e deixa esvair-se por entre atos, às vezes desconexos, a indignação pelo dia-a-dia sem sentido que muitos vivem sem perceber. Há imagens que reiteram a reificação: "a silhueta de uma criatura dilacerada, metade bicho,metade pó, afasta-se da luz do sol, aprofundando-se cada vez mais no interior dessa selva árida, retorcida, procurando as sombras."

 

Atentando para o breve comentário do autor, em Todos por um, percebe-se que Alguma coisa em parte alguma tem também uma importância arqueológica: é a parte faltante da estréia completa de Nelson de Oliveira, livro que teria 500 páginas e foi desmembrado em Naquela época tínhamos um gato, Os saltitantes seres da lua, Treze e agora este volume com 15 anos de história. Para quem conhece a narrativa notável de contos como Os olhos da gata, da lavra mais recente do autor, terá a oportunidade de compreender um momento de sua obra que agora vem a público integralmente. Está completo o rol de mosqueteiros.

 

 

 

 

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Nelson de Oliveira. Algum lugar em parte alguma. Rio de Janeiro: Record, 2006

 

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agosto, 2006

 

 

 

 

 

 

 

 

Nelson de Oliveira nasceu em 1966, em Guaíra, SP. Escritor e mestre em Letras pela USP, publicou, entre outros,  Naquela época tínhamos um gato (São Paulo: Companhia das Letras, 1998), contos; Subsolo infinito (São Paulo: Companhia das Letras, 2000), romance; O filho do Crucificado (São Paulo: Ateliê, 2001), contos, também lançado no México; A maldição do macho (São Paulo: Record, 2002), romance,  publicado também em Portugal; Verdades provisórias (São Paulo: Escrituras, 2003), ensaios; e Algum lugar em parte alguma (Rio de Janeiro: Editora Record, 2006). Em 2001, organizou a antologia Geração 90: manuscritos de computador (São Paulo: Boitempo) e, em 2003, Geração 90: os transgressores (São Paulo: Boitempo),  com os melhores prosadores brasileiros surgidos no final do século XX. Ainda em 2003, editou com Marcelino Freire o número único da revista PS:SP. Foi um dos curadores dos Encontros de Interrogação, realizados no Instituto Itaú Cultural em 2004, e é um dos criadores da coleção Risco: Ruído, da editora DBA. Dos prêmios que recebeu destacam-se o Casa de las Américas (1995), o da Fundação Cultural da Bahia (1996) e duas vezes o da APCA (2001 e 2003). Atualmente, coordena, em várias instituições, oficinas de criação literária para escritores com obra ainda em formação.

 

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Moacyr Godoy Moreira, nascido em São Paulo em 1972, é médico e escritor. Conclui, em 2006,  Mestrado em Literatura Brasileira pela USP/SP. Autor dos livros Lâmina do tempo, contos (São Paulo, Ateliê Editorial, 2002) e República das Bicicletas, crônicas (São Paulo, Ateliê Editorial, 2003). Organizou, em 2004, o livro Ponto de Fuga, de Jorge Coli, para a editora Perspectiva. Publica resenhas nos jornais Zero Hora (Porto Alegre), Rascunho (Curitiba) e Jornal do Brasil (Rio de Janeiro), e nos sítios Agencia Carta Maior e Cronópios. Em 2006, lança seu terceiro livro, Ruídos Urbanos, com ilustrações do artista plástico Enio Squeff, também pela Ateliê. Atualmente, atua como mediador dos debates do Território Nacional, eventos mensais com escritores brasileiros contemporâneos, na  Rato de Livraria.