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A segunda cerimônia, bekliti (abertura), é mais complicada e tem caráter nitidamente xamânico. Depois de uma noite de encantamentos, os velhos manangs conduzem o neófito até um aposento isolado por cortinas. Nesse local, segundo afirmam os antropólogos, cortam-lhe a cabeça e retiram o cérebro, que, depois de lavado, é reposto no lugar, a fim de dar ao candidato inteligência límpida para que possa penetrar os mistérios dos maus espíritos e das doenças. Em seguida introduzem ouro em seus olhos, a fim de lhe dar visão suficientemente penetrante para enxergar a alma onde quer que ela possa encontrar-se perdida, a errar. Depois implantam-lhe ganchos dentados na ponta dos dedos, para torná-lo capaz de capturar as almas errantes e prendê-las com força. Finalmente, varam-lhe o coração com uma flecha, para torná-lo compassivo e cheio de simpatia pelos que estão doentes e pelos que sofrem. Evidentemente essa cerimônia é simbólica: sobre sua cabeça é posto um coco, que é em seguida quebrado, e assim por diante. Trata-se de uma cerimônia que simboliza a morte e a ressurreição do candidato: a substituição das vísceras ocorre de maneira ritualística.

 

Mircea Eliade, O xamanismo

 

 

 

 

 

 

Notas de oficina

 

Oficinas de criação literária são necessárias. São empolgantes. São eficientes.

 

Talento se ensina? É possível ensinar alguém a escrever bem? Acredito que não. Na minha opinião, o talento é inato, ou o diletante já nasce com ele ou jamais conseguirá ultrapassar a condição de aprendiz, de amador, de novato.

 

É possível ensinar alguém a não escrever mal? Pode apostar que sim. Como? Por meio de toques, apontamentos, discussões inflamadas. Por meio da troca de impressões e das mais variadas dicas literárias, musicais, teatrais, cinematográficas. Quem não quiser escrever mal, quem quiser ajudar outros escritores a não escrever mal, deve primeiro evitar a leitura descompromissada. Deve obrigar a intuição a casar com a razão. Deve saber ler e se expressar com critério: como crítico, não como parente, namorado ou amigo de infância. Deve escrever apaixonadamente, ler apaixonadamente, discutir apaixonadamente. Mas sempre de maneira compromissada. Ao ler o trabalho dos colegas, deve apontar os vícios, os exageros, os lugares comuns. Deve tentar espantar o mau gosto, o kitsch, o melodrama. Deve sugerir alternativas, indicar caminhos, recomendar leituras.

 

Quando digo que o talento é algo inato, inerente, natural, congênito, não estou querendo voltar a Descartes, que usava essas palavras para se referir ao conhecimento que se origina na mente (sem qualquer interferência dos fenômenos externos), de natureza diferente do conhecimento adquirido com a experiência. Não acredito na existência de tal conhecimento, pois para mim nada vem de graça. Uso o termo inato com outro sentido, ou seja, para dizer que o talento é irredutível a qualquer análise teórica, a qualquer escrutínio, a qualquer avaliação.

 

Mil forças aleatórias forjam o grande artista, um milhão de detalhes imensuráveis e de ações muitas vezes insignificantes moldam a mente talentosa. Por isso jamais haverá regras ou manuais que ensinem alguém a escrever bem, a pintar bem, a atuar bem. Usando novamente a liberdade poética, é como se esse talento irredutível à análise do pensamento racional fosse exatamente o âmago do indivíduo criativo, sua essência, algo indecifrável que já estava nele desde o útero.

 

 

Que é literatura?

 

Coordeno oficinas de criação literária desde 2002. A primeira coisa que tive que aprender, ao lidar com os freqüentadores mais ansiosos, foi a driblar com tranqüilidade e bom humor a fome de definições que parece torturar a maioria das pessoas que, cedo ou tarde, resolvem se envolver de maneira mais disciplinada com a literatura.

 

Todos querem escrever bem, mas poucos acreditam saber com exatidão o que é escrever bem. Isso mesmo. Pura insegurança: eles sabem, mesmo que de maneira intuitiva, o que é escrever bem, mas não acreditam que sabem. Ou pior: rejeitam o que sabem. A literatura, às vezes, é tão libertina e escatológica, que boa parte dos candidatos a escritor não aceita o comportamento obsceno dessa arte considerada em geral demasiadamente nobre e sagrada.

 

A fome de definições atrapalha bastante a criação. Ela distrai e confunde o autor inexperiente, que, em vez de concentrar toda sua energia na elaboração de algo realmente novo e indefinido, preocupa-se o tempo todo em fazer seu texto caber perfeitamente nas fôrmas preestabelecidas. Mas a fome de definições está sempre aí e não pode ser ignorada. Ela é o estorvo que só sairá de cena depois que receber certa atenção do público.

 

Perder tempo discutindo o sexo dos anjos ou o fim da Atlântida não é comigo. Me interessa a criação. Por isso, em minhas oficinas eu passo em alta velocidade pela fome antediluviana de definições.

 

Existem perguntas traiçoeiras que todo diletante mais atrevido, a fim de testar o coordenador da oficina, jamais deixa de formular logo no primeiro encontro. A pergunta mais antipática de todas, na minha opinião, é: que é literatura?

 

Por que eu considero antipática essa pergunta?

 

Por três motivos.

 

Primeiro: literatura é como o jazz. Quando perguntavam a Louis Armstrong o que é o jazz, sua resposta era fulminante: "Se você não sabe o que é o jazz, então não adianta eu tentar explicar". O mesmo vale para a literatura.

 

Segundo: existem milhares de definições de literatura, desde as mais estúpidas, até as mais líricas, desde as mais edificantes, até as mais controvertidas. Para Ezra Pound literatura é a linguagem carregada de significado, e a grande literatura é a linguagem carregada de significado até o máximo grau possível. Pound também escreveu: literatura é a novidade que permanece sempre novidade. Mas a minha definição predileta é a sugerida por Albert Camus: literatura é o exercício da inteligência a serviço da sensibilidade nostálgica ou revoltada. Esse poderoso enunciado me comove e atiça. Repita-o três vezes em voz alta e sinta toda sua força. Não é difícil perceber que essa definição é do tipo lírico: Camus endereçou-a à literatura, mas, bela e estimulante, ela serve tranqüilamente para todas as artes.

 

Terceiro: a prática (criação) sempre precede a teoria (definição). Os novos talentos do verso e da ficção logo que surgem modificam o panorama literário e redefinem o cânone, obrigando a crítica a reformular seus conceitos.

 

                                 

Definições provisórias

                                          

Definir é determinar a extensão ou os limites de algo. É limitar, demarcar, explicar o significado, dar a conhecer de maneira exata, expor com precisão, indicar o verdadeiro sentido. É enunciar os atributos essenciais e específicos de determinada coisa, de modo que a torne inconfundível com outra. Mas os poetas e os prosadores não trabalham com números ou equações, eles cultivam a ambigüidade e as figuras de linguagem, por isso raramente estão interessados em definir algo da maneira como fazem os matemáticos e os físicos. Exatidão, clareza e precisão não fazem parte do universo da fantasia. Então, quando esse universo invade o da lógica, tudo fica meio impreciso e indefinido.

 

A maioria das definições em arte e literatura é restrita demais, é sectária demais. Contaminadas pela liberdade poética, elas beneficiam apenas a escola artística ou literária que as cunharam e sempre excluem as escolas dissidentes. Quando não são restritas elas são amplas demais, ou seja, são tão abertas que acabam englobando tudo (como a de Camus, que serve muito bem para o cinema, o teatro e a música de qualidade). A melhor definição é a que não exclui nada que não deva ser excluído, é a que dá pouca liberdade para as exceções.

 

Que é prosa? Que é poesia? Que é conto, crônica, novela e romance? Para diminuir a angústia do diletante e estabelecer as coordenadas mínimas e o repertório básico que permitirão que todos falem a mesma língua, eu voltei do monte Sinai com a seguinte tábua de definições:

 

Poesia é a qualidade presente em certos artefatos culturais, capaz de  despertar o sentimento do belo e provocar o encantamento estético.

 

Poema é o texto composto em versos e estrofes.

 

Prosa é o texto composto em orações, períodos e parágrafos.

 

O poema é feito de linhas breves, a prosa é feita de linhas longas.

 

Ponto final.

 

Observem que a definição de poesia me permite buscar essa qualidade em todas as artes. Me permite falar da poesia que há nos bons poemas, nos bons contos, na boa arquitetura, no bom cinema, no bom teatro, na boa escultura…

 

 

Retrato falado do conto

 

Falar sobre a literatura de qualidade é muito mais fácil do que produzir literatura de qualidade. Aliás, parece verdadeira a crença de que é mais fácil discorrer criticamente sobre a boa prosa e o bom poema do que produzir boa prosa e bons poemas (vem daí a famosa provocação que garante que todo crítico é a sublimação mal costurada do escritor frustrado que habita seu corpo). Há também momentos em que falar sobre o conto e sobre a prosa de ficção em geral é a mesmíssima coisa. Não fiquem espantados, isso vai ocorrer bastante nos próximos parágrafos.

 

Na prosa, o modernismo literário, buscando a originalidade e fugindo da tradição, deu à luz mil filosofias diferentes de composição, que por sua vez pariram imensa variedade de contos, novelas e romances. As múltiplas possibilidades técnicas e estruturais que cada gênero narrativo tem a oferecer desmontam todas as definições clássicas (de Aristóteles aos primeiros teóricos do século XX, ainda presos ao passado) e põem à disposição do escritor infinitos caminhos criativos.

 

Dada essa multiplicidade de modos de composição, a definição contemporânea de conto, novela e romance, para não deixar escapar as narrativas mais avessas a definições, tornou-se bastante elástica. É claro que tal flexibilidade não é exclusiva da literatura, ela deriva da superflexibilidade que nos últimos dois séculos encampou todas as áreas do conhecimento humano.

 

Por exemplo: que é o conto? Qual a diferença entre o conto, a crônica, a novela e o romance?

 

Conto vem de contar (do latim computare: fazer conta, calcular, computar), verbo com inúmeros significados, dentre os quais narrar, referir, relatar. Há os que acreditam que todo conto deve apresentar o rigor formal de um teorema dividido em três partes — exposição, desenvolvimento e desenlace — e há os que acreditam que o conto-teorema é apenas uma das formas possíveis do conto. Talvez a menos desejável nos dias atuais.

 

Edgar Allan Poe baseava sua teoria do conto na relação entre a extensão da narrativa e o efeito (inquietação, medo, dúvida, encantamento, excitação, perplexidade ou qualquer outro) que o autor deseja que a fruição da narrativa provoque no leitor. O conto-teorema encontrou em Poe seu melhor teórico e defensor. Para o escritor norte-americano (anos mais tarde Anton Tchekhov também adotará esse princípio) o conto só produzirá esse efeito único e fulminante, essa impressão total, se for apreendido de uma só assentada e mantiver o leitor sempre em suspense. Por isso, para exercer o domínio sobre o leitor, o conto não deve exigir mais do que duas horas de leitura atenta. Poe estendeu também ao poema sua filosofia da composição baseada no perfeito e explosivo casamento da extensão do texto com o efeito literário pretendido.

 

Vladimir Propp, por outro lado, não se preocupava com a extensão da narrativa. Ele alicerçou sua rigorosa definição do conto folclórico russo, intitulada Morfologia do conto maravilhoso (1928), na análise cuidadosa das diferentes ações das personagens. A descrição estruturalista de Propp baseia-se nas trinta e uma ações constantes (ele as chama de funções) que as diferentes categorias de personagens (sete no total) podem executar ao longo da narrativa. Apesar de considerar apenas o conto popular, anedótico, de estrutura simples — manifestação da inventividade do povo —, o sistema de Propp foi posteriormente ampliado pelos seus seguidores europeus para abarcar também o conto literário, muito mais complexo. Porém o altíssimo número de funções nos contos modernos e nos contemporâneos, o desdobramento do caos em tantas ações graúdas e miúdas, em tantas categorias de personagens e de narrador, tudo isso inviabiliza a classificação segundo determinados padrões estruturais.

 

Ricardo Piglia, incrementando a teoria do iceberg de Ernest Hemingway (o contista talentoso é sempre econômico: seu narrador revela muito pouco, deixando os fatos mais importantes apenas subentendidos), nas suas duas teses sobre o conto também mantém o foco no enredo: para ele todo conto sempre narra duas histórias, uma história visível (a ponta do iceberg) e uma secreta (o imenso corpo submerso do iceberg) narrada de forma elíptica e fragmentária. Para Piglia, o talento do contista está em entrelaçar ambas as histórias, de maneira que só no desenlace seja revelada, de modo surpreendente, a história que se construiu abaixo da superfície em que a primeira veio se desenrolando. Ainda estamos no território do conto-teorema, porém outras possibilidades começavam a ser esboçadas a partir desses axiomas.

 

As muitas definições e teorias do conto, amadurecidas por gente como Poe, Tchekhov, Propp, Hemingway, Piglia e tantos outros, por serem detalhistas demais, sempre deixam escapar por entre os dedos bons espécimes. Pouco têm a dizer, por exemplo, sobre o miniconto e o microconto, formas brevíssimas muito praticadas nas últimas décadas. Pouco têm a dizer sobre as novas modalidades de conto, muito distantes de sua forma simples (o conto maravilhoso, transmitido oralmente de geração a geração) e de sua forma modernista (a produção dos contistas citados e também a de Kafka, Cortázar, Guimarães Rosa): o conto em forma de mosaico, feito de recortes de jornal, revistas e livros; o conto minimalista; o conto confessional em espiral, que usa largamente o fluxo de consciência; o conto produzido com os elementos até então só encontrados em poemas, como as assonâncias, as repetições, as rimas internas e os jogos sutis de linguagem.

 

A confusão acontece também com as muitas definições e teorias da crônica (do latim chronica, derivado do grego khronica biblia, os anais), da novela (do francês nouvelle, pelo italiano novella, cuja raiz está no latim novella, adjetivo diminutivo derivado de novus: jovem, novo, recente) e do romance (do provençal romans, pelo advérbio latino romanice, que por sua vez vem de romanicus: de Roma), para ficarmos apenas na prosa. Novamente para diminuir a angústia do diletante e estabelecer as coordenadas mínimas e o repertório básico que permitirão que todos falem a mesma língua, eu voltei do monte Sinai com mais essa tábua de definições:

 

A diferença entre o conto e a crônica é de natureza, não de extensão.

 

A diferença entre o conto, de um lado, e a novela e o romance, de outro, não é de natureza, é de extensão.

 

A diferença entre a novela e o romance não é de extensão, é de natureza.

 

Hoje o que diferencia o conto da crônica é a densidade poética (lembrem-se: poesia é a qualidade presente em certos artefatos culturais, capaz de despertar o sentimento do belo e provocar o encantamento estético).

 

O conto é pesado, a crônica é leve. O conto deve provocar e inquietar, a crônica deve entreter e deleitar. A crônica é a prosa curta, amena e coloquial, com toques de malícia e humor, sobre os fatos políticos da atualidade ou sobre os hábitos e costumes dos diversos segmentos sociais. O conto é todo o resto, é toda prosa curta que não é crônica.

 

Hoje, o que diferencia o conto da novela e do romance é principalmente a extensão: o conto é curto, a novela e o romance são longos. O que diferencia a novela do romance são basicamente o número e a disposição das unidades dramáticas: na novela há a sucessão cronológica, em linha reta, de várias unidades dramáticas, sucessão que pode ser prolongada indefinidamente (grosso modo, é como se a narrativa fosse feita de vários contos ligados pela permanência das mesmas personagens). No romance há menor número de unidades dramáticas e todas estão interligadas, ou seja, as células dramáticas não surgem dispostas lado a lado, em linha reta, mas simultaneamente, como em certos móbiles em que cada esfera está ligada a todas as outras.

 

 

Sete conselhos

 

Nas oficinas, meu método pedagógico baseia-se em parte no método de João Silvério Trevisan, cuja proveitosa oficina eu freqüentei no final dos anos oitenta, e em parte no método pedagógico da própria vida: tentativa e erro, decepção e surpresa, melancolia e epifania. Meu método é estocástico, ele se alimenta da contingência, do imprevisto, do acidente, da coincidência, do acaso, da incerteza, do aleatório. Tenho planejados e anotados todos os encontros de minha oficina, mas quase nunca sigo esse planejamento ou releio as anotações. Geralmente prefiro o improviso.

 

A dinâmica da oficina é muito simples e, talvez por isso, bastante eficiente: durante os encontros todos os participantes tornam-se autores e também críticos da obra alheia. Uma vez que o papel do coordenador não é exatamente o de professor ou juiz, mas de fomentador, cabe ao grupo avaliar a produção do próprio grupo. O coordenador propõe exercícios que devem ser feitos na sala ou em casa, recomenda textos teóricos sobre certos aspectos da literatura e incentiva o debate. Os participantes escrevem e lêem seus textos, que são avaliados pelo coordenador e pelos colegas. E assim vai.

 

Não raro ocorrem choques entre os participantes, ou entre o coordenador e os participantes. Então a experiência passa a ser bastante dolorosa para todos. Nessas horas a briga de foice (sempre no plano simbólico, é bom frisar) se assemelha à cerimônia de iniciação dos futuros manangs, como descrita por Mircea Eliade em seu livro sobre o xamanismo.

 

Literatura é arte, e, sendo arte, é algo que está sempre em busca da liberdade plena (mesmo que a liberdade plena seja apenas ilusão). Quando o assunto é a prosa, a poesia ou a proesia, não há regras, fórmulas ou definições indiscutíveis e definitivas. Não há manual ou catecismo, ficções e poemas não são automóveis ou geladeiras. Na literatura, como na vida, tudo está em perpétua mutação, tudo é permitido. Estas notas sobre a atividade literária não foram gravadas em um disco de diamante que durará milênios, elas foram escritas em papel comum, que em poucos anos estará amarelo e mofado. São notas provisórias (como as de nosso pobre papel-moeda), à espera de algo melhor.

 

Definir, como já foi dito, é determinar a extensão ou os limites de algo. É limitar, demarcar, explicar o significado, dar a conhecer de maneira exata, expor com precisão, indicar o verdadeiro sentido. É enunciar os atributos essenciais e específicos de determinada coisa, de modo que a torne inconfundível com outra. Existem várias definições de conto (a definição clássica, a moderna, a pós-moderna, por exemplo), mas, na minha opinião, a melhor definição é a mais sucinta e abrangente: o conto é a narrativa curta, menor que o romance e a novela. Ponto final. Já a diferença entre o conto e a crônica é de natureza, não de extensão. O conto é pesado, a crônica é leve. O conto deve provocar e inquietar, a crônica deve entreter e deleitar.

        

A diferença estrutural entre o conto e as narrativas mais longas (a novela e o romance) não é de natureza, é de extensão: o conto é sempre sintético (aqui a situação ficcional está superconcentrada, pois o conto trata de um único tema), ao passo que a novela e o romance são sempre analíticos (aqui a situação ficcional é constituída de vários temas e de muitas tramas paralelas). Não importa se o conto é fantástico, filosófico, psicológico, erótico, romântico, policial, de suspense, de ficção científica ou de aventura, ele sempre apresentará cinco categorias básicas, que são as mesmas da novela e do romance: o narrador, as personagens, o tempo, o espaço e o enredo.

 

Essas cinco categorias jamais surgem com a mesma intensidade. No preparo de sua especialidade culinária cada autor pode dosar esses ingredientes como bem entender. A variação na intensidade dos ingredientes é que possibilita os cinco diferentes tipos de conto. Há o conto em que predomina o narrador, há o conto em que predomina a personagem, há o conto em que predomina o tempo, há o conto em que predomina o espaço e há o conto em que predomina o enredo.

 

Estatisticamente existem mais contos de narrador, personagem e enredo do que de tempo e espaço. Os contos de narrador e os de personagem são muito aparecidos e estão no extremo oposto do eixo que liga estes aos contos de enredo.

 

Levando em conta esses extremos e o cabo-de-guerra que sempre ocorre entre o narrador (ou a personagem, com a qual muitas vezes se confunde) e o enredo, o conto pode ser estruturado de duas formas: há contos de narrador simples (ou personagem simples) com enredo complexo (esses são os contos que seguem o modelo clássico: Boccaccio, Maupassant, Machado de Assis) e há contos de narrador complexo (ou personagem complexa) com enredo simples (esses são os contos que seguem o modelo moderno: Joyce, Guimarães Rosa, Clarice Lispector).

 

Eu particularmente prefiro o segundo tipo de conto, em que o universo psíquico do narrador ou das personagens surge com mais força. Esses contos tendem a ser mais passionais, menos harmoniosos, mais desequilibrados, exatamente como a maioria das pessoas. Neles o antropocentrismo e a certeza clássica dão lugar à dúvida e à relatividade modernas. Mas é claro que não estou afirmando que o segundo tipo de conto é sempre qualitativamente superior ao primeiro. A literatura não é tão simples assim. Revelei apenas minha preferência atual (preferência provisória, como tudo na minha vida: não garanto que ela não vá mudar com o tempo).

 

Primeiro conselho importante para quem deseja escrever boa prosa (conto, novela ou romance): não deixe de ler bons poemas. Digo isso porque tenho notado que a maioria dos prosadores não aprecia a arte poética, assim como a maioria dos poetas não aprecia a arte da prosa. Isso não é sinal de inteligência. A arte da prosa e a do verso, quando dão as mãos, lucram bastante uma com a outra. Não resta dúvida de que a maior parte da má prosa escrita no mundo nasce de prosadores que ganhariam muito se fossem mais poéticos, do mesmo jeito que boa parte dos maus poemas escritos no mundo nasce de poetas que ganhariam muito se fossem mais prosaicos.

 

O prosador deve apreciar não só os bons poemas como também a boa música, o bom cinema, o bom teatro, a boa arte erudita e popular (os quadrinhos, os videogames, a MPB, os seriados de tevê). Como já foi dito (nunca é demais enfatizar), em seu sentido pleno, poesia é tudo o que, presente em algo feito por mãos humanas, desperta em nós o sentimento do belo. Daí ser bastante pertinente falar da poesia do conto, da novela, do romance, da música, do cinema e da própria poesia: do haikai, do soneto, da elegia, da ode, da epopéia…

 

As resenhas, os ensaios, as dissertações e as teses, ou seja, os textos teóricos, de análise crítica e de história das artes e da literatura, também têm que fazer parte da dieta do prosador e do poeta.

 

Segundo conselho importante para quem deseja escrever boa prosa: a literatura de ficção, da mesma maneira que os poemas mais interessantes, é antes de tudo linguagem, não enredo. Uma boa história não resultará num bom conto, numa boa novela ou num bom romance se o trabalho com a linguagem não for cuidadoso. O prosador não deve procurar com avidez o mínimo denominador comum: apenas a linguagem que é acessível à maioria das pessoas. Quem faz isso são os autores de best-sellers, simples contadores de histórias, não os verdadeiros escritores. Mas atenção: isso não significa que o inverso seja verdadeiro. A narrativa e o poema herméticos, acessíveis apenas aos poucos leitores iniciados, não são obrigatoriamente verdadeiras peças literárias. O valor poético de certas narrativas e de certos poemas experimentais brota muitas vezes do equilíbrio: a linguagem nem é cifrada demais nem banal demais.

 

Terceiro conselho importante: evite os estereótipos, fuja dos clichês, corra dos chavões, não marque encontro com os lugares-comuns. O critério originalidade não é exclusivo apenas do desfile das escolas de samba, ele ainda faz sentido também na atividade literária. Evite as representações engessadas do amor romântico, da luta de classes, do sentimento religioso. Evite principalmente imitar o estilo e repetir os temas dos autores canônicos, sejam eles realistas, surrealistas, concretistas, regionalistas ou existencialistas.

 

Quarto conselho: bons sentimentos não fazem boa literatura. Afaste-se do tratamento edificante, repleto de boas intenções. A sociedade está cheia de defeitos, porém a melhor forma de propor soluções não é produzir literatura doutrinária: prosa e versos panfletários, com o objetivo de defender determinada crença política, social ou religiosa. A literatura é sempre do contra, sua função é desmascarar a hipocrisia oculta em todas as causas, por mais nobres que sejam. É por essa razão que o poder muitas vezes rejeita a boa literatura, tentando amordaçar os autores mais críticos e contundentes.

 

Quinto conselho: a função da boa literatura não é entreter e deleitar, mas inquietar e provocar o leitor. O pintor japonês Kazuaki Tanahashi diz isso de maneira mais suave: "O que é agradável aos olhos não é perigoso." Se a narrativa e o poema passam o tempo todo adulando o leitor, dando-lhe somente o que ele deseja, evitando constrangê-lo ou contrariá-lo, essa narrativa e esse poema são péssimas peças literárias. Mas atenção: isso não significa que o inverso seja verdadeiro. A narrativa e o poema que passam o tempo todo insultando o leitor, criando constrangimento e mal-estar perpétuos, não são obrigatoriamente verdadeiras peças literárias. Muitas vezes o valor poético de certas narrativas e de certos poemas está no jogo entre a delicadeza e a grosseria, entre a suavidade e a dureza, entre o doce e o amargo.

 

Sexto conselho: liberte o humor e a fantasia. O senso de humor e a imaginação exacerbada têm grande importância na literatura contemporânea. A função da literatura é criticar a realidade em que vivemos, é mostrar as mazelas da sociedade e do ser humano. Não existe crítica mais contundente do que a do humor sofisticado, que faz o leitor sorrir e ao mesmo tempo refletir sobre os problemas do mundo. Muitas vezes esse humor nasce dos exageros da imaginação: para fugir dos clichês e dos estereótipos, o escritor passa a usar e a abusar da matéria literária, criando neologismos, fraturando o discurso e compondo mosaicos, parodiando autores consagrados, misturando matéria-prima erudita (os clássicos) e vulgar (a cultura de massas), ou seja, enlouquecendo saudavelmente seu texto.

O humor, o nonsense e a irreverência são ótimas portas para a liberdade plena a que eu me referia há pouco. Não estou falando da piada, do deboche ou da palhaçada, cujo objetivo é arrancar gargalhadas da platéia. Estou falando do humor sofisticado, também conhecido como "exercício de lógica sutil" (Pirandello), que revela os aspectos ridículos e incoerentes dos seres humanos e a hipocrisia das relações sociais. Mas é importante que o escritor saiba rir dos outros e também de si mesmo. Não levar tão a sério nem mesmo a prática literária, esse é o caminho para o autoconhecimento.

 

Último conselho: desconfie dos livros de sua predileção, desconfie mais ainda dos autores de sua predileção. Livros e autores, ame-os intensamente, sim, mas jamais se entregue à idolatria cega, pois os escritores talentosos são mestres na arte da sedução. É certo que toda obra vale muito mais do que o próprio prosador ou o próprio poeta que a criou: a obra é linguagem, o autor é de carne e osso, é vaidade, arrogância, desejo. Mesmo assim, não existe poema, conto, novela ou romance perfeitos. Reconhecer as qualidades e também os defeitos da literatura mais sublime não é apenas sinal de inteligência, integridade e independência, é de longe a melhor forma de honrar o talento de quem a concebeu.

 

 

Apoteose da poesia

 

Aos poetas recomendo que também sigam os conselhos anteriores e principalmente este, de longe o mais importante de todos: inventem sua própria métrica, evitem o verso de medida fixa, fujam da rima. O poema regularmente metrificado e rimado pertence ao passado glorioso. Hoje seu ritmo mecânico e engessado, cafona até a medula, só faz sentido na música popular (no repente e no rap) e no canto lírico de baixa qualidade. Pensando bem, nem mesmo aí. A literatura não deve ser tratada como passatempo de burocratas afetados e pedantes. Repito: inventem sua própria métrica, evitem o verso de medida fixa, fujam da rima. Se quiserem apreciar a arte do decassílabo ou a do alexandrino, há nas livrarias e nas bibliotecas tamanha quantidade de poemas curtos, médios e longos — os melhores já escritos neste planeta —, que dez vidas serão insuficientes para dar cabo de todos eles.

 

A poesia está em toda parte, em toda arte. Poesia vem do grego poíesis (de poien: ação de fazer algo, criar, fabricar, transformar), pelo latim poese + -ia. Na literatura a palavra poesia virou sinônimo de poema, causando certa confusão (todo poema é poético?, todo poema encerra poesia?). Inúmeras são as definições dessa poesia literária, dessa qualidade impalpável capaz de, sempre que presente na prosa e no poema, provocar a emoção estética. Cada grande escritor, seja ele prosador ou poeta, tem a sua própria definição. Para Coleridge, a poesia são as melhores palavras na sua melhor ordem, para Dante é a ficção retórica posta em música, para Jules Combarieu é a irmã menor da música, para Goethe é a fala do infalível, para Heidegger é a fundação do ser mediante a palavra, para Jakobson é a linguagem voltada para sua própria materialidade, para Octavio Paz é a linguagem em estado de pureza selvagem, para Thomas Nash é a melhor expressão dos anjos, para Valéry é a permanente hesitação entre o som e o sentido, para Voltaire é o ornamento da razão, para Wordsworth é a emoção recolhida em tranqüilidade.

 

Também essas definições são do tipo lírico, elas comovem o leitor, mas pouco definem, pouco especificam, além de servirem bastante bem para caracterizar certo tipo de prosa menos prosaica. São como a definição sugerida por Albert Camus para a literatura (o exercício da inteligência a serviço da sensibilidade nostálgica ou revoltada), expressão que, em vez de demarcar e restringir determinado sentido, apaga as marcas e amplia os nossos sentidos. Exatamente como fazem os bons textos literários.

 

Se poesia é a qualidade presente em certos artefatos culturais, capaz de despertar o sentimento do belo e provocar o encantamento estético, se poema é o texto composto em versos (linhas breves) e estrofes, então não é novidade para ninguém que nem todo poema obrigatoriamente é ou contém poesia. Assim como não é novidade para ninguém que a boa prosa de ficção só é boa, verdadeiramente boa, porque está sempre carregada de poesia.

 

O fato de o vocábulo poesia ser usado como sinônimo de poema às vezes provoca imprecisão, distorção e desordem. É difícil não sentir a alfinetada do contra-senso, nas ocasiões em que o mau poema ou a má coletânea de poemas são taxados de má poesia. Mas isso acontece todo dia em toda parte e já não tenho certeza se vale o esforço ficar cultivando semelhantes preciosismos. De qualquer forma, tentarei fazer uso apenas da primeira acepção dessa palavra (poesia = qualidade estética). Porém espero que os leitores façam a gentileza de relevar toda vez que, imobilizado pela necessidade sintática ou pela minha pobreza de vocabulário, eu não conseguir deixar de usar o termo na sua segunda e menos proveitosa acepção.

 

Em literatura, a poesia brota do atrito entre a estrutura física do texto e o conjunto de imagens expressas por esse texto, ou seja, ela brota da fricção entre, de um lado, o som e o desenho do enunciado (ritmo e disposição gráfica do texto) e, de outro, o sentido do enunciado (imagem verbal). Isso vale para as peças em prosa ou em verso. A imagem poética é a associação inesperada e surpreendente de duas outras imagens mais ou menos distantes, mais ou menos banais. Essa associação se dá ora pela condensação das duas imagens em uma só ora pelo deslocamento violento das partes que as constituem. Exatamente como nos sonhos. Ao aproximar as palavras ou as idéias que normalmente não pertencem ao mesmo campo retórico, essa infração semântica, esse desrespeito ao código do idioma cria a faísca que desperta o fascínio poético.

 

Se a prosa de ficção e o poema precisam estar carregados de poesia, caso queiram ser considerados obras literárias, então a única característica que os distingue e define não é mais a maior (no poema) ou a menor (na ficção) intensidade lírica, não é mais a presença ou a ausência do metro fixo e da rima, ou de outros elementos antes exclusivos do poema: a aliteração, a assonância, a repetição, o refrão, a peculiaridade tipográfica, a inesperada disposição do texto na página branca. Muito do que até há pouco tempo se escreveu sobre a arte do poema hoje também vale para a prosa. Um exemplo: as categorias popularizadas por Pound, que classificava os poemas em melopaicos, fanopaicos e logopaicos, atualmente se prestam muito bem para inúmeros textos em prosa. Afinal a musicalidade (melopéia), o fluxo da imaginação visual (fanopéia) e o jogo de idéias (logopéia) estão bastante presentes na ficção moderna e na contemporânea.

 

Então não há mais nada que diferencie a prosa do poema? Não há mais nada que os defina? Há, sim. A única característica é o aspecto visual, é a maneira como as palavras estão reunidas na página: em linhas curtas (poema) ou em linhas longas (prosa).

 

 

Métrica e rima: verso controverso

 

Octavio Paz, no ensaio Verso e prosa, afirma que a poesia, por estar ligada ao pensamento analógico e à intuição mítica, é tão antiga quanto a própria linguagem verbal. Filha da imaginação e do ininterrupto fluxo de sons, cheiros, imagens, sabores, sustos, desejos e palavras que circula por nossa mente, a poesia é o estado natural do inconsciente humano. Nesse ponto os antropólogos e a maioria dos poetas estão de acordo.

 

O homem, antes de chegar à etapa em que forma as idéias universais, forma as idéias imaginárias; antes que possa articular definições, canta; antes que fale em prosa, fala em versos; antes de usar termos técnicos, usa metáforas (Benedetto Croce). Ou seja, o aparecimento da linguagem falada se fez acompanhar de vários atributos: o grito modulado, a mímica, a emoção, a interjeição, o ritmo dos movimentos que se repetem com regularidade (o ato de semear ou remar). Só mais tarde é que surgiram os expedientes da formação lexical: a onomatopéia, a comparação e a metáfora. As culturas intocadas pela civilização letrada só conhecem a poesia, que, esférica, sem começo nem fim, ignora o conceito de progresso tecnológico. A prosa, ao contrário, é linear: filha da razão e do método científico, ela é algo que surgiu tardiamente em nosso planeta. Porém, quando veio, veio com a violência que sempre caracterizou o raciocínio e a lógica.

 

Nesse mesmo ensaio Paz estabelece duas diferenças: entre metro e ritmo e, em seguida, entre literatura versificada e poesia. Para o poeta mexicano o ritmo é o elemento mais antigo da linguagem verbal, e também o mais presente. Na verdade o ritmo e a linguagem nasceram juntos e caminham juntos, sendo que aquele não existe sem esta e vice-versa. Todas as expressões verbais, líricas ou didáticas, são manifestações do ritmo. Mas é apenas na grande literatura em prosa ou em verso que o ritmo se manifesta plenamente, produzindo poesia. O metro, por outro lado, é o ritmo cristalizado, paralisado, emoldurado, engessado, é a regular sucessão de sílabas átonas e tônicas congelada em certas formas fixas: a redondilha menor e a maior, o hexassílabo, o verso heróico, o alexandrino etc. No corpo de todo poema metrificado as imagens, querendo a liberdade plena, duelam com a métrica que as cerceia.

 

Nesse momento o ensaísta mexicano pede que não confundamos ritmo com compasso. O primeiro é próprio da criação poética, o segundo é a fórmula mecânica que sustenta o andamento musical, é a batida rigorosa (tensão seguida de repouso, tempo forte seguido de tempo fraco) de sonatas e sinfonias.

 

Depois dessa hábil reorganização de idéias, Paz subverte a definição convencional de poema e de prosa. Para ele, enquanto boa parte da literatura metrificada não merece ser chamada de poema, textos como Alice no país das maravilhas, Finnegans wake e os contos de Borges, por serem a plena manifestação do ritmo, são bons poemas, não prosa. Valéry dizia que o poema equivale à dança, ao passo que a prosa equivale à marcha militar. Trazendo essa correlação para a arte poética, eu digo que o verso metrificado equivale à marcha, ao passo que o verso livre equivale à dança. Os textos mencionados há pouco, obedecendo ao misterioso e subterrâneo chamado do ritmo, trocaram a marcha militar (a rígida organização imposta pela lógica aristotélico-cartesiana) pela dança (a liberdade associativa do poema, capaz de produzir poesia).

 

Os primeiros poemas estavam ligados à música, à dança e freqüentemente à improvisação. Diferente do que a maioria pensa, os poemas das primeiras comunidades não faziam parte exclusivamente das práticas religiosas. Ninguém nega que a magia e a religião foram primordiais no desenvolvimento da música e da poesia, mas, no início, ao lado do impulso religioso havia também o impulso estético, responsável pelos poemas que não tinham outro fim senão o prazer desinteressado típico da arte pela arte. Os poemas dos primórdios da humanidade, entoados pelos caçadores, agricultores e pastores, eram os sagrados poemas dos rituais mágicos, de um lado, e os profanos poemas de circunstância, do outro. Poemas muitas vezes jocosos e improvisados, que versavam sobre os temas mais variados: o amor, a caça, a guerra, as competições tribais.

 

No tempo em que o mundo era pura magia e os homens só se expressavam em versos, nessa época o poema, o teatro, a música e a dança sérios eram partes de algo maior. Eram partes do ritual místico cuja finalidade era manter vivas as chamas do sagrado. Eram partes da religião. Mas esses poemas de caráter mágico-religioso tinham de conviver com os poemas profanos, quase sempre improvisados, desvinculados das práticas rituais.

 

Por ter surgido junto com a própria linguagem verbal e por mimetizar o ritmo vital e regular da natureza (o batimento cardíaco, o galope do cavalo, a alternância do dia e da noite, o ciclo da vida, o ir e vir das estações do ano), é verdade que o verso metrificado e regular parece mais natural do que o verso livre, irregular e aleatório como o mundo do artifício e da tecnologia. Mas a beleza dessa suposição não é garantia, como querem alguns, de que o verso metrificado era o único tipo de verso empregado e respeitado no princípio da humanidade ou no princípio do período histórico.

 

Muitos poetas contemporâneos continuam praticando o poema metrificado, principalmente em razão da crença nesse vínculo original, sagrado e natural. Duas ressalvas podem ser feitas a essa convicção. Primeira ressalva: o fato de uma tradição política, religiosa ou artística ter se originado de determinada maneira não a impede de se desenvolver de modo totalmente diferente. Na sociedade humana as reformas são necessárias e sempre bem-vindas, do contrário ainda seríamos monarquistas e escravocratas. Segunda ressalva: se em sua origem o poema regularmente metrificado e rimado soava natural e agradável, a partir do final do Renascimento esse mesmo poema, com a consolidação das academias e a multiplicação dos beletristas, salvo raras exceções passou a soar pedante e artificial. Em meados do século XX ele já era totalmente insuportável.

 

Há muito tempo o verso metrificado pode até ter sido manifestação espontânea da fala e da escrita recém-inventadas, porém, na opinião de vários antropólogos e historiadores, ele sempre teve que suportar a desagradável companhia de seu irmão obscuro, o verso livre. Até que no século XX este tomou o poder e dominou a cena.

 

 

Ampliação do universo

 

O embate dialético entre o poema rigorosamente metrificado e o poema sem métrica regular é tão antigo quanto a própria literatura. Aliás, essa necessária História social da métrica e da rima ainda está para ser escrita. Da Antiga Mesopotâmia e do Antigo Egito aos dias de hoje, durante boa parte da longa e conturbada história da literatura universal o verso livre e o verso metrificado disputaram a atenção dos poetas e dos apreciadores de peças líricas. Em certas culturas de matriz oral o verso livre era usado regularmente, em outras, baseadas na escrita, apenas o poema metrificado (e, em certos casos, rimado) satisfazia o gosto refinado da elite letrada. O Enuma Elish e o Gênesis são poemas sem metro fixo nem rima. A Rig veda, a Bhagavad gita, a Ilíada, a Odisséia, as Metamorfoses, a Eneida, Beowulf e o Paraíso perdido são metrificados, mas não rimados. A divina comédia, Os lusíadas, Orlando furioso e a Invenção de Orfeu são metrificados e rimados. A terra devastada, Cobra Norato, Os cantos e Omeros não são metrificados nem rimados.

 

O poema rico em ornamentos, metrificado e rimado com habilidade e perspicácia, conheceu o apogeu e a glória no período que vai do final do século XII até meados do século XX. Foi com a lírica provençal, que se desdobrava em complicadas e requintadas combinações de metro e rima, que ele começou sua escalada rumo à sua plenitude. Nas mãos de Arnaut Daniel, Petrarca, Góngora, Dante, Camões, Byron, Goethe, Milton, Poe, Baudelaire, Mallarmé, Maiakovski, Ricardo Reis, Drummond, Jorge de Lima, João Cabral e tantos outros, essa manifestação particular da poesia foi soberana por quase oitocentos anos.

 

A alquimia do poema metrificado e rimado é dialética: o rigor militar do metro fixo e da rima tenta aprisionar o discurso na camisa-de-força do metrônomo, a fúria e o vigor das imagens tentam derrubar as paredes desse cárcere privado. Ao mesmo tempo refém e algoz das muitas formas fixas, cada poeta citado precisou inventar novas maneiras — maneiras originais, até então desconhecidas — de equilibrar essas forças antagônicas, a fim de transformar em poesia o que de outra forma seria apenas prosa denotativa metrificada.

 

Esse acadêmico exercício de mecânica silábica atravessou soberanamente os séculos. Até que Walt Whitman, com suas Folhas de relva (1855), virou novamente o jogo. Aproveitando o rigor mortis da métrica rigorosa, o verso livre se propagou primeiro entre os poetas franceses e em seguida entre os poetas do resto do mundo. Whitman, Lautréamont, Alberto Caeiro, Álvaro de Campos, Ezra Pound, Mário e Oswald de Andrade, Manuel Bandeira e muitos outros modernistas libertaram definitivamente o verso e, com voz vigorosa e apaixonada, devolveram ao poema a independência perdida. Antipático ao racionalismo iluminista, cada verso livre propõe seu próprio metro, que no poema é diferente do metro dos versos anteriores e do metro dos versos seguintes, subordinando-se apenas ao fluxo e ao refluxo das imagens.

 

Os concretistas brasileiros, no início de seu movimento, argumentaram de maneira enfática que o ciclo histórico do verso havia chegado ao fim. A afirmação, como todos os manifestos de vanguarda defendidos no século XX, foi categórica e produziu o efeito desejado: seduziu parte da audiência e irritou meio mundo. Apesar de desviarem a atenção do que realmente importa — os poemas —, esse e outros lances retóricos ajudaram a consolidar e a expandir o movimento.

 

Porém sempre acreditei que a poética concreta, em vez de eliminar o verso, ampliou-o, enriqueceu-o, exatamente como o avô de todos os poemas concretos, Um lance de dados, de Mallarmé, fez há mais de cem anos. Diferente do que está nos manifestos, o verso não desapareceu de poemas como Coca-cola, Nasce/morre, Vai e vem, O pulsar e Pós-tudo, ele ganhou foi nova roupagem. Ganhou cor, som, movimento e perspectiva. Novas e arrojadas tipologias foram convocadas para quebrar o rigor e a sobriedade das tipologias clássicas. O horizonte do verso ampliou-se, adquirindo dimensão insuspeitada, no momento em que o espaço branco da página ganhou mais prestígio. O universo do verso, microcosmo de significados, agora é maior.

 

 

O triunfo do sagrado

 

Para as pessoas educadas na tradição iluminista e indiferentes à moral cristã e à retórica das religiões instituídas, a poesia é o último reduto do sagrado. Desde que o método científico, a revolução industrial e a filosofia marxista puseram abaixo qualquer possibilidade de existência de Deus ou de deuses, a poesia, para o indivíduo culto, transformou-se na única fonte aceitável do gozo místico. Mesmo o mais racional e materialista dos homens não se satisfaz apenas com a existência profana. Resistente à hipocrisia dos sacerdotes profissionais e à manipulação da fé, a necessidade de se vincular a algo maior e mais profundo faz com que esse homem se volte para a arte.

 

Por meio da poesia (axis mundi virtual) o mistério da criação do cosmo e dos seres vivos é constantemente representado e reapresentado. Quer se manifeste nas artes plásticas, na música ou na literatura, para o indivíduo cético e materialista da era tecnológica só a poesia é capaz de proporcionar as indescritíveis epifanias até há pouco exclusivas do fenômeno religioso. O sagrado, nas mãos totalitárias da Igreja e de outras instituições que banalizam o sobrenatural, tornou-se algo anódino e burocrático. O sagrado, nos templos do mundo capitalista, não passa de uma mercadoria como outra qualquer. Tornou-se pura racionalidade comercial.

 

Mas no âmbito da literatura o poeta de hoje é o xamã da era industrial, é o único indivíduo capaz de revelar aos poucos iniciados o sagrado da poesia e a poesia do sagrado. Revelação que, para acontecer, precisa ser intermediada por sacerdotes céticos, por criadores conscientes de que suas verdades são todas provisórias e seu altar não é de mármore e ouro, mas de ritmo, imagens, correspondências e subdivisões prismáticas de idéias.

 

 

 

 

Indicação de leitura

 

 

 

 

agosto, 2006

 

 

 

 

Nelson de Oliveira nasceu em 1966, em Guaíra, SP. Escritor e mestre em Letras pela USP, publicou,  entre outros, Naquela época tínhamos um gato (São Paulo: Companhia das Letras, 1998), contos; Subsolo infinito (São Paulo: Companhia das Letras, 2000), romance; O filho do Crucificado (São Paulo: Ateliê, 2001), contos, também lançado no México; A maldição do macho (São Paulo: Record, 2002), romance,  publicado também em Portugal; Verdades provisórias (São Paulo: Escrituras, 2003), ensaios; e Algum lugar em parte alguma (Rio de Janeiro: Editora Record, 2006). Em 2001, organizou a antologia Geração 90: manuscritos de computador (São Paulo: Boitempo) e, em 2003, Geração 90: os transgressores (São Paulo: Boitempo),  com os melhores prosadores brasileiros surgidos no final do século XX. Ainda em 2003, editou com Marcelino Freire o número único da revista PS:SP. Foi um dos curadores dos Encontros de Interrogação, realizados no Instituto Itaú Cultural em 2004, e é um dos criadores da coleção Risco: Ruído, da editora DBA. Dos prêmios que recebeu destacam-se o Casa de las Américas (1995), o da Fundação Cultural da Bahia (1996) e duas vezes o da APCA (2001 e 2003). Atualmente, coordena, em várias instituições, oficinas de criação literária para escritores com obra ainda em formação.

 

 

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