O escritor Nelson de Oliveira acaba de lançar seu décimo terceiro livro, Algum Lugar em parte alguma (Record), com o entusiasmo de um autor iniciante. Ou seja, com a paixão de quem ama o que faz:  escrever, publicar, dar oficinas ou ser  marido, pai, amigo. Nelson faz parte de uma geração de escritores que o formou e ele ajudou a formar, a Geração 90. Para estes, compreender e acompanhar o louco ritmo da vida não é fácil,     a sensação de desastre é apenas uma sensação, nada do que está aí aparenta ser, pois as respostas para os enigmas não estão nos mapas traçados nas dunas do tempo, mas na exata maneira como foi formulada a pergunta, como Nelson define, em  Subsolo Infinito.  A entrevista a seguir é uma conversa com uma  personalidade literária criativa e de espírito aberto, que sobreviveu às quedas dos muros da História  para contar histórias à sua maneira, fazendo do  humor a sua filosofia de vida. [Marília Kubota]

 

 

 

 

 

 

Marília Kubota: Nelson, fale de seu início de carreira. Você é formado em Belas Artes, pensou que algum dia poderia ser escritor?

 

Nelson de Oliveira: Na infância e na adolescência, longe da capital paulista, meu grande interesse eram os quadrinhos, os seriados de tevê, o bom e velho rock’n’roll, o cinema e os romances de ficção científica. Principalmente os quadrinhos e o cinema… Esse período, que, pelo que vejo, é sempre o mais marcante na vida de todo mundo, foi puramente audiovisual. Então, na hora de escolher uma faculdade, o encantamento pelas artes plásticas foi algo que surgiu naturalmente. É claro que eu podia ter continuado no território da cultura de massas, podia ter feito cinema ou publicidade, mas por volta dos dezessete anos, o chamado da alta cultura foi muito mais sedutor. Fui fazer gravura, fotografia, desenho, colagem, escultura, pintura a óleo… Durante toda a faculdade e no primeiro ano após a formatura, eu realmente pretendia seguir essa carreira. Foi quando pintou a célebre oficina do João, na época sediada num edifício histórico e acolhedor da rua Três Rios. Minha participação nessa oficina foi problemática, pra não dizer traumática. Eu era literariamente imaturo, por isso minha sensibilidade poética teve que ser moldada no fogo, a golpes de marreta. Tempos depois, com a prosa mais afiada, a bolsa da Secretaria de Cultura foi o incentivo que eu precisava pra abraçar de vez a causa da literatura. Aos poucos fui trocando os pincéis pela palavra escrita.

 

 

MK: Os primeiros prêmios impulsionaram sua carreira? Os encontros com João Anzanello Carrascoza, Marcelino Freire, Marçal Aquino, Luiz Ruffato e outros autores da Geração 90 ajudaram você a pensar num projeto pessoal de literatura ou de uma geração literária?

 

NO: Os primeiros prêmios foram fundamentais pra que eu começasse a pensar seriamente nisso que o mercado editorial chama de carreira. Nessa hora, eu percebi que teria que ter disciplina, que teria que ler e escrever todo santo dia, que teria de parar de encarar a prosa e a poesia de maneira tão descompromissada. É o que tenho feito desde então. O João Carrascozza, eu conheci na oficina do Trevisan, em 1989. Marcelino, Joca, Marçal, Ruffato, Evandro, Ivana e tantos outros prosadores eu só fui conhecer muito tempo depois, já com o Prêmio Casa de las Américas e quatro livros publicados. Preocupado apenas com minha obra e com a luta pela sobrevivência em São Paulo, eu nem sequer imaginava que existia algo chamado vida social literária. Eu vivia isolado da comunidade e julgava isso bastante natural.

 

 

MK: Em outras épocas, você contou que tinha uma estratégia para publicar livros comerciais e outros alternativos (como o Campos: retratos surrealistas, de tiragem limitadíssima). Continua mantendo essa estratégia?

 

NO: Sim. O livro-homenagem ao Campos de Carvalho abriu a Coleção 100 (Sem) Leitores, da Catatau Editora. O bordão da Coleção é: "tiragem de cem exemplares para cem leitores igualmente exemplares". A idéia é publicar livros que não precisem atender a nenhuma das exigências do mercado, ou seja, livros de qualidade que dificilmente esgotariam a tradicional tiragem de três mil exemplares das editoras juramentadas. O autor financia a edição e depois envia os cem exemplares a quem ele julgar merecedor dessa distinção. Trata-se, como pode ver, de atividade totalmente clandestina. Os poetas Renato Rezende, Glauco Mattoso, Eloésio Paulo e Valério Oliveira também tiveram livros incluídos na Coleção. Agora, estou garimpando novos autores dispostos a participar dessa delicada atividade guerrilheira.

 

 

MK: De onde você tira as idéias para os seus livros? Você é muito crítico, reescreve muitas vezes? Faz anotações, pesquisas? Como compõe os personagens?

 

NO: Para as minhas narrativas eu tiro idéias de toda parte: do jornal, da tevê, do cinema, dos anúncios, de outros livros, do som das palavras, da conversa com os amigos, observando as pessoas ao meu redor… A matéria-prima de minha literatura é a fantasia e o humor, meu método é o deslocamento e a condensação. Gosto de transformar palavras e locuções verbais em personagens, também gosto de brincar com os estereótipos e os chavões mais açucarados. Sigo sempre a intuição, que às vezes me manda planejar e pesquisar, mas em outras ocasiões ordena que eu respeite o fluxo espontâneo das imagens e dos sons. Como vê, sou muito rigoroso ao administrar minha liberdade criativa, ou, melhor dizendo, me sinto muito livre ao administrar meu rigor criativo.

 

 

MK: Nos últimos anos, você tem orientado oficinas de criação literária. É possível formar um escritor? O que acha de cursos de formação de escritores, como o da Unicamp e o da Unisinos?

 

NO: Tenho notado que o bem-vindo efeito colateral das oficinas e dos cursos de formação de escritores é: esses núcleos de discussão e produção estão formando principalmente bons leitores. Não vejo crise criativa nos escritores contemporâneos, vejo crise nos leitores, quase sempre mal informados e reféns do gosto médio, quando não do puro mau gosto. Faltam leitores sofisticados, esse é o grande nó da literatura contemporânea. Quanto à criação, é claro que é impossível ensinar alguém a escrever bem, a só produzir obras-primas. Mas não é impossível ensinar alguém a não escrever mal, a evitar os erros grosseiros, os clichês e os vícios de linguagem. Mesmo os escritores veteranos deviam, vez ou outra, se reciclar, colocar suas convicções sob suspeita, reler seu trabalho passado com novos olhos, procurar novos caminhos.

 

 

MK: Você já afirmou que da quantidade de novos autores pode surgir um grande autor. A História da literatura, porém, tem provado que não é da quantidade que surge o grande autor e sim da visão abrangente que ele tem sobre o seu tempo, renovando a tradição literária. O grande autor é quem supera os seus pares, como Shakespeare, que resgatou os autores menores de seu tempo e as narrativas da tradição oral. Vivemos numa época de autores menores ou estamos nos preparando para descobrir um autor de uma obra-prima na Geração 90?

 

NO: Ambrose Bierce, no seu Dicionário do diabo, define História como: "Relato quase sempre falso de eventos quase sempre sem importância, feito por líderes quase sempre sem escrúpulos e soldados quase sempre sem discernimento." Eu não confio muito na História, porque ela, como a literatura e a política, é feita e registrada por seres humanos, criaturas cheias de vícios e falhas. A História é tão falível quanto tudo o que as pessoas fazem. As pirâmides estão aí há muito tempo, mas isso não significava que ainda estarão aí daqui a cem mil anos. A obra de Shakespeare é muito mais nova e muito mais frágil do que as pirâmides, duvido que sobreviva ao tempo cósmico. É por isso que não tenho interesse em ficar discutindo meu momento cultural à luz da literatura canonizada, das pirâmides ou das pinturas rupestres. Além disso, quantas pessoas você conhece que realmente entendem Shakespeare, Camões ou Dante? Citar o cânone a torto e a direito não quer dizer nada. Já vi a cara do Einstein e seu célebre E = MC2 em dezenas de camisetas, mas não conheço ninguém que de fato compreenda a matemática e a física da Teoria Especial da Relatividade, ou da mecânica quântica. O mesmo acontece com A divina comédia, Os lusíadas e Macbeth. As pessoas citam, sem se dar conta de que só estão repetindo o que seus professores ensinaram, que por sua vez aprenderam de seus professores, e assim por diante.

 

 

MK: Talvez Shakespeare não seja entendido por todos os seus leitores, mas não se pode negar que ele transformou a História da literatura e hoje é um autor popular. A questão é sobre o autor não apenas capaz de influenciar a sua geração, mas produzir uma obra inovadora em linguagem e visão de mundo, que mantenha um diálogo com a tradição literária e seja acessível a vários públicos. Como fizeram na literatura brasileira Clarice Lispector, Guimarães Rosa, Graciliano Ramos, em outras épocas. Embora hoje haja muitos bons escritores na nova geração, nenhum ainda pareceu igualar-se a eles. Precisamos de mais tempo para julgar os novos autores?

 

NO: Concordo com você. Nas últimas décadas não pintaram novos Dantes, novos Shakespeares ou novos Joyces. Atualmente, temos centenas, milhares de autores talentosos e interessantes, mas nenhum poeta ou prosador verdadeiramente genial. Porém, isso não me aborrece. Não estou atrás dos autores que irão transformar o mundo, porque essa fantasia romântica da superioridade humana sobre a natureza, essa mitificação do indivíduo, que acaba igualado aos titãs, não funciona mais. Os indivíduos, sejam eles artistas ou estadistas, não têm poder sobre o curso da História. É por essa razão que, como eu disse antes, a História não tem para mim o mesmo valor que tem para os historiadores. Muito menos a História da literatura. No mundo dos livros me interessa mais a literatura (as imagens, o ritmo, o enredo, a cadência poética, a fantasia) do que a sua História. Além disso, cuidado: os autores que você acaba de citar são notáveis e históricos, sim, mas não são, de maneira alguma, populares ou acessíveis. Apenas certa elite intelectual lê Clarice, Rosa e Graciliano. A literatura de qualidade é para muito pouca gente, sempre foi assim. A pesquisa mais recente do Ibope sobre analfabetismo funcional revelou que setenta e cinco por cento dos brasileiros não conseguem ler nem escrever razoavelmente. Esse número é gigantesco: três quartos da população mal conseguem interpretar uma simples notícia de jornal. Para esse contingente, é como se Grande sertão: veredas tivesse sido escrito em grego antigo.

 

 

MK: A principal queixa de quem quer publicar o primeiro livro é não encontrar editora que banque livro de estreante. Por isso têm surgido muitas iniciativas, de editoras artesanais a cooperativas de autores independentes, de coleções de e-books, o que levanta a questão: se um autor não é aceito pelo mercado, como ele pode avaliar que seu trabalho tem qualidade? Quem faz o juízo de valor de um livro hoje, se a categoria dos críticos está falida? Qualidade de texto é alguma coisa que vale hoje ou o importante é ter um produto que venda?

 

NO: Não existem verdades simples e absolutas, tudo é complexo e provisório, tudo é multifacetado. Os físicos teóricos não estão ainda à procura das leis básicas que regem o universo? Não estão alucinados atrás do Santo Graal da teoria unificada, capaz de explicar o micro e o macrocosmo? Por isso, Heráclito ainda está tão na moda. Juízos de valor também são construções intelectuais passíveis de desmoronar a qualquer momento. Não acredito que a crítica esteja falida. Não de modo global. Falidos estão apenas os críticos que ainda insistem em usar as ferramentas dos séculos passados. Na esfera da arte e da alta cultura é impossível ter certeza absoluta sobre tudo o tempo todo. Ora, se determinado autor sentir a necessidade de saber, de saber de verdade, se seu trabalho é de alta qualidade ou não, ele vai pirar. Vai enlouquecer da pior forma possível: lentamente. Eu não tenho a certeza absoluta de que minha literatura é de ouro puro. Mas a falta dessa certeza não me paralisa, porque escrever me dá muito prazer. É isso que me motiva a sentar todo dia na frente do computador: o prazer imediato da escrita. O resto é café pequeno.

 

 

MK: É visível, em seu trabalho, a preocupação com a qualidade do texto, o que reflete tanto a criação quanto a leitura prazerosa. Mas a questão é sobre o autor estreante. Como, sendo ele o editor, o promotor e o crítico de seu trabalho, terá isenção para avaliar o que escreve? Então ele fica refratário à discussão e entra num círculo vicioso, dizendo que não há leitores para o que escreve. Por que ele evita a discussão sobre o que produz? A outra questão, relacionada a isso, é sobre o fato de a crítica literária ter desaparecido dos grandes jornais, talvez por isso estejam faltando fundamentos para que os jovens autores derrotem seus vícios.

 

NO: Penso que publicar seu próprio livro, ou seja, atuar como autor, apreciador crítico, editor e promotor do próprio texto, não deveria ser visto como algo abominável, como uma atitude vergonhosa ou imoral. Manuel Bandeira pagou a edição de seus primeiros livros. Drummond também. Os concretistas também. Grandes nomes da literatura universal fizeram isso: Camões, Rabelais, Balzac, Herberto Helder… Também discordo da afirmação de que hoje não há discussão consistente entre os novos autores. A internet está aí para refutar essa afirmação: agora mesmo está sendo travado nos blogues e nos portais literários, não nos jornais impressos (que sempre chegam atrasados), o melhor debate sobre os novos livros e os autores que estão entrando em cena. Ainda existem boas resenhas e bons ensaios nos suplementos literários e nas revistas especializadas das faculdades de Letras. Mas, via de regra, esses textos tratam apenas dos autores canonizados. Se você quiser ler algo sobre a literatura que está sendo feita neste minuto, você precisa vir pra cá, você precisa cair na rede.

 

 

MK: A propósito de megaeventos literários, como a Flip, comente sobre a glamorização da literatura e o flerte com o cinema e a tevê. A audiovisualização da literatura pode fazer com que a palavra escrita perca seu valor?

 

NO: Esse processo de glamorização parece que chegou mesmo pra ficar. Tempos atrás a figura do escritor reservado, tímido e avesso à badalação, à maneira do Manuel Bandeira, era a mais representativa da classe, esse era o ícone pintado e reproduzido pelo senso comum. Hoje, pra muita gente chega a ser chocante ver o escritor dançando e cantando na chuva de Paraty ou na poeira de Passo Fundo. A boa literatura continua sendo feita na solidão e no isolamento, mas sua promoção e sua difusão têm exigido o espetáculo e os holofotes. Não sou de oba-oba, mas não vejo problema nisso. Os padrões de comportamento e as regras de etiqueta estão aí pra serem transgredidos. Quem quiser festejar que festeje, quem não quiser que fique em casa. Exigir dos escritores que se comportem da maneira como seus antepassados se comportavam é o fim da picada.

 

 

MK: Mas a glamorização não envolve só dançar na chuva, certo? A questão é que aparecer ficou mais importante do que escrever. Quando você diz que faltam leitores sofisticados na literatura contemporânea, não há uma relação entre isso e a sociedade do espetáculo? Você não acha que a superficialidade do comportamento de certas personalidades impede a formação da consciência crítica e da sensibilidade poética? Nesse ponto, também gostaria que respondesse se acha que a literatura, além da fruição estética, deve ter uma função ética, tanto para o autor quanto para o leitor.

 

NO: Exatamente: a falta de leitores sofisticados em grande quantidade está diretamente relacionada ao fortalecimento da sociedade do espetáculo. O cinema norte-americano, a música popular e a tevê, veículos puramente audiovisuais, têm proporcionado diversão mais rápida e mais fácil do que a literatura, que, pra quem não tem traquejo, é sempre de difícil assimilação. É por essa razão que as oficinas de criação literária estão ocupando, cada vez mais, a minha vida: melhorar o nível de leitura dos participantes — estudantes, engenheiros, médicos, psicanalistas, advogados, dentistas, jornalistas, donas de casa, aposentados, todos em busca do refinamento da sensibilidade poética —, enriquecer seu repertório literário, ampliar o horizonte de possibilidades ficcionais, tudo isso também faz parte de meus objetivos. Quem lê mal não terá a mínima condição de escrever bem. Poetas que não se interessam pela boa prosa, prosadores que não se interessam pela boa poesia, escritores que não se interessam pelos bons ensaios críticos, literatos que não se interessam por artes plásticas, teatro e boa música… Mudar esse estado de coisas é a militância mais legítima do momento.

 

 

MK: Fale um pouco sobre seu trabalho com literatura infanto-juvenil e da colaboração de sua mulher, Tereza Yamashita.

 

NO: A literatura para crianças e jovens está conquistando cada vez mais espaço na minha vida. Falo da literatura lida pelas crianças e pelos jovens, não necessariamente da literatura escrita especificamente para as crianças e os jovens. Há muita diferença nisso aí. Por exemplo, aos quinze anos eu lia Ray Bradbury, Isaac Asimov e Arthur C. Clarke, que sempre foram considerados autores de livros para os adultos. Mas hoje eu vejo que a prosa desses senhores tem todas as características da boa literatura para jovens: ela é simples e imaginativa. Há vários anos, Tereza e Luiz Bras (meu alter ego literário) têm escrito livros a quatro mãos para as crianças e os jovens. Na realidade os dois têm tentado escrever livros que também despertem o interesse do público adulto. Estão cada qual com um olho no gato e outro no peixe. Afinal, "uma história para crianças de que só as crianças gostam é uma história ruim". Palavras de C. S. Lewis.

 

 

MK: Seu livro Algum lugar em parte alguma é o último rebento do desdobramento das Fábulas, em quatro livros: Os saltitantes seres da lua, Naquela época tínhamos um gato, Treze e o já citado. Por que resolveu publicar esses contos mais antigos?

 

NO: Decidi publicar Algum lugar em parte alguma para finalmente encerrar o primeiro ciclo de minha vida literária. O conto mais recente desse livro tem quinze anos, o mais antigo, dezessete. Esse ciclo inicial, do qual estou falando, compreende, em ordem de redação, os livros Fábulas (que, por razões editoriais, foi desdobrado nos quatro volumes mencionados), Às moscas, armas!, Subsolo infinito, Campos: retratos surrealistas e O oitavo dia da semana. À segunda fase do meu trabalho pertencem A maldição do macho, O filho do Crucificado, Sólidos gozosos & solidões geométricas, Ódio sustenido e Babel Babilônia, os dois últimos ainda inéditos.

 

 

MK: As narrativas de Algum lugar em parte alguma dão a impressão de serem mais experimentais que as dos outros livros da série nascida das Fábulas. No conto Pobre patinho Frank, cheio de si e de vento, por exemplo, tem indícios de seu interesse pela linguagem cinematográfica, mais bem elaborada em O som, o silêncio, de Os saltitantes seres da lua. Já nas narrativas curtas do Treze, você parece ter feito um exercício de composição de personagens. Você vê assim seu trabalho nessas narrativas?

 

NO: Não tenho simpatia pelo adjetivo experimental, porque ele passa a idéia de algo incerto, de algo que jamais foi feito e, por isso, só quando a experiência chegar ao fim é que saberemos se ela deu certo ou não. Minha literatura passada e recente não tem caráter experimental, afinal os recursos narrativos de que lanço mão, na criação de meus romances e de meus contos, não são novos (afirmar o contrário seria implorar pelo atestado de ingenuidade). São os mesmos recursos discursivos usados e aperfeiçoados por milhares de escritores, durante todo o século XX. Logo, não estou experimentando nada, mas usando conscientemente as técnicas narrativas que estão aí, à disposição de todos. Concordo com você, quando fala que os contos do Treze são estilisticamente diferentes dos contos dos outros livros. No Treze estão praticamente todos os meus contos em que a metalinguagem, a paródia, o humor negro e os jogos de palavras controlam todo o sistema ficcional. Essa coletânea deve muito à poesia concreta, ao Leminski, a Lewis Carroll e a Edward Lear. Nas outras coletâneas estão as narrativas de molde clássico, centradas no enredo em linha reta e na figura do narrador tradicional, onisciente, equilibrado.

 

MK: Você cita Ray Bradbury no conto O irmão brasileiro. Ele é um conhecido criador de histórias da carochinha da ficção científica, você tinha as histórias dele em mente quando escreveu suas fábulas?

 

NO: De maneira inconsciente, sim, eu tinha e continuo tendo em mente todos os contos, todas as novelas, todos os romances de ficção científica que li na adolescência. O velho Ray é o único veterano desse subgênero literário cujos livros mais antigos eu ainda hoje gosto de reler. As Crônicas marcianas e Farenheit 451 são estupendos. No liquidificador que é a minha mente, fragmentos desses livros e dos filmes a que vivo assistindo se misturam com fatos da vida real, resultando nesse caldo de aspecto diferente (observando a olho nu não dá pra dizer que na origem de tudo estava a ficção científica), mas com resíduos de outras narrativas. Literatura é mistura.

 

 

MK: A presença de tios e tias em suas histórias é uma influência de Cortázar ou da literatura latino-americana?

 

NO: Obrigado por me revelar isso. Nunca notei a grande ocorrência de tios e tias nos meus livros. Realmente não sei dizer… Prefiro deixar que os psicanalistas respondam essa questão demasiado espinhosa.

 

 

MK: Na literatura da pós-modernidade é possível ter uma identidade regionalista, ou vivemos numa crise de personalidade e de valores éticos (que pode ser identificada no romance Subsolo infinito)? 

 

NO: O primeiro exercício que costumo dar em minhas oficinas, talvez o mais estrategicamente bem posicionado deles, é o da desconstrução da carteira de identidade. Há pouco tempo descobri que outro coordenador de oficinas, o psicanalista e poeta Cid Pimentel, também utiliza esse exercício. Essa coincidência diz muito sobre a crise de identidade pela qual tem passado boa parte da população mundial, crise que começou no final do século XIX e dura até hoje. Toda a arte moderna, de Picasso a Stockhausen, de Joyce a Bergman, é a condensação poética dessa crise. O protagonista do romance Subsolo infinito não apenas tem duas personalidades como se relaciona com alguém que é ora homem — José Maria — ora mulher — Maria José — ora as duas coisas ao mesmo tempo. Mas entenda que não uso a palavra crise no seu sentido negativo. Penso que a crise espiritual na qual estamos metidos é sinal de saúde e maturidade. Viver na incerteza, suspeitando de tudo, de todos e até de si mesmo, é infinitamente melhor do que viver na certeza de determinados dogmas religiosos, políticos e estéticos. Tenho medo das pessoas que jamais suspeitam de suas crenças. São as primeiras a partir pra briga, a queimar livros e explodir aviões.

 

 

 

 

agosto, 2006

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Nelson de Oliveira nasceu em 1966, em Guaíra, SP. Escritor e mestre em Letras pela USP, publicou,  entre outros, Naquela época tínhamos um gato (São Paulo: Companhia das Letras, 1998), contos; Subsolo infinito (São Paulo: Companhia das Letras, 2000), romance; O filho do Crucificado (São Paulo: Ateliê, 2001), contos, também lançado no México; A maldição do macho (São Paulo: Record, 2002), romance,  publicado também em Portugal; Verdades provisórias (São Paulo: Escrituras, 2003), ensaios; e Algum lugar em parte alguma (Rio de Janeiro: Editora Record, 2006). Em 2001, organizou a antologia Geração 90: manuscritos de computador (São Paulo: Boitempo) e, em 2003, Geração 90: os transgressores (São Paulo: Boitempo),  com os melhores prosadores brasileiros surgidos no final do século XX. Ainda em 2003, editou com Marcelino Freire o número único da revista PS:SP. Foi um dos curadores dos Encontros de Interrogação, realizados no Instituto Itaú Cultural em 2004, e é um dos criadores da coleção Risco: Ruído, da editora DBA. Dos prêmios que recebeu destacam-se o Casa de las Américas (1995), o da Fundação Cultural da Bahia (1996) e duas vezes o da APCA (2001 e 2003). Atualmente, coordena, em várias instituições, oficinas de criação literária para escritores com obra ainda em formação.

 

 

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Marília Kubota (Paranaguá, 06/04/1964). Jornalista e escritora, mora em Curitiba. Publicou, entre outros, nos jornais Nicolau, SLMG, Gazeta do Povo, A Notícia e Cornélio, revistas Medusa, Babel, Poesia Sempre e Inimigo Rumor e  nos sites Pop Box,  Blocos, Zunái, Germina, Cronópios e Lagioconda. Antologias: Concurso de Crônicas do Paraná (Secretaria da Cultura do Paraná, Curitiba, 1999), Pindorama (Revista Tsé Tsé, Buenos Aires, 2000),  Passagens (Imprensa Oficial, Curitiba, 2002). Inéditos, os livros Selva de SentidosA Dança do Desequilíbrio(poesia) e Menina Antiga(contos). Mantém o blog Micropolis e colabora com o site Escritoras Suicidas.

 

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