©paul tearle 
 
 
 
 
 
 
 
 
 

 

 

 

Para os fiéis cristãos, o Diabo é uma presença misteriosa mas real, pessoal e não simbólica.

Cardeal Ratzinger, para Der Spiegel, 22 de dezembro de 1986

 

 

Ainda na cama, Joseph começava a sentir um incômodo muito grande na fronte e levou, portanto, a mão à testa, lenta e delicadamente, como fazemos na suposição desagradável de que uma dor de cabeça nos acompanhará o dia todo. O primeiro toque fez com que arregalasse os olhos ainda então fechados; passava a ponta dos dedos pelas formações, ao que parecia, ósseas, que se projetavam dali. Incrédulo, afastou o lençol e as cobertas e se ergueu de um jato, esquecendo mesmo de calçar as belas chinelas vermelhas, indo incontinenti em direção ao banheiro.

Acendeu a luz e, diante do espelho, percebeu horrorizado dois chifres recurvos como os de um bode montanhês saindo dos dois lados de seu crânio, lá onde a linha do couro cabeludo principia. Un-unmöglich, escapou balbuciante de seus lábios trêmulos. Afastou o rosto do espelho e, esfregando as mãos, com os olhos postos no chão, caminhava quase em círculos pelo banheiro, sentindo um calor infernal e suando. Reunindo suas forças morais, olhou-se novamente e o reflexo persistia em mostrar o que já desconfiava que estava ali. Eram grandes, era mesmo difícil se mover sem esbarrar em algo, sobretudo com  toda aquela perplexidade.

Foi quando pensou que, talvez, (e isso é muito provável) estivesse se aproximando a morte, e essa era uma das imagens fantásticas geradas pelo cérebro no declínio de suas funções, ou pelas forças contrastantes em conflito por sua preciosa alma: pericula inferni inuenerunt me, lembrava. Ocorreu-lhe orar, sabia que era possível que estivesse sendo tentado, ou que o demônio quisesse confundi-lo, como aconteceu também ao Cristo, "adora-me e tudo isto será teu".  Era uma prova de fé, e cabia-lhe resistir a ela com a dignidade de quem um dia poderá vir a ser o Pontífice.

Tão rápido como cruzou sua mente, o pensamento fez com que abrisse os olhos, que estavam fechados pelo fervor da prece: Pontífice. Isso já lhe havia ocorrido, homo sum, mas porque sabia poder servir humildemente na vinha do Senhor caso, na sucessão, seu nome se firmasse entre os colegas, que certamente terão observado seu constante trabalho e empenho, a seriedade e o rigor com que mantinha os estatutos da fé, apesar das pressões mundanas do século. Wojtila até que é um bom homem, mas falta-lhe claramente o decoro da posição, e várias vezes cede ao apelo da popularidade.

Assombrou-se um pouco com a seqüência repentina que seu raciocínio desenvolveu, conquanto não estivesse mentindo, e disso estava certo. Mas que estranho impulso era esse, agora? Quem era responsável por tal mobile? Sempre tivera certa dificuldade em separar seu justo fervor do que poderia ser chamado, com alguma má-vontade, ambição. Mas pode-se chamar ambição ao reconhecimento, em si mesmo, de se ter sido talhado para determinada missão, para servir? O báculo distingüe aquele que leva o rebanho, e isso de fato aponta uma posição de poder, mas seria um poder de mando, do amealhar, ou um poder de desvelo? Certamente o último, e quanto a esse aspecto não há dúvida.

Esquecera dos chifres. Os chifres não haviam desaparecido. Sentou-se na privada, desolado. A memória trouxe de volta as recordações de uma vida repleta de tribulações, que, no entanto, não tinha sido buscada: a contemplação, a solidão e o estudo compunham um caráter sólido e discreto, como sempre soubera, mas a Segunda Guerra havia embaralhado todas as cartas das vidas que se podiam escolher. Lembra da deserção do exército como um garoto que lembra do único troféu que o livraria da vergonha de nunca ter vencido nada. Ele vencera, e isso era a prova de que erros poderiam ser corrigidos pela fibra moral. Os anos de estudo, a disciplina e a límpida e casta beleza da única fé verdadeira: sentiu uma comoção breve agitar-lhe o peito e a garganta, lágrimas ensaiaram seu desfile, mas pararam nas bordas dos olhos. A comoção lhe renovou a idéia do merecimento, e de que ele poderia, historicamente, reconduzir a Igreja, desta presente Babilônia, para Sião. Eis uma verdadeira Guerra Santa, pois qui fugit molam, fugit farinam.

Levantou-se, confiante como sempre, e deu com a imagem no espelho, onde sequer percebia os chifres que lhe pesavam na testa. Mas, curiosamente, aquela figura a um só tempo era e não era a sua imagem: seria a mudança da renovada certeza do teste por que passou o que lhe dá este ar dos profetas que anunciaram a verdade do Cristo? Notou, espantado, que o rosto no espelho parecia mover-se sem que ele se movesse, numa autonomia sobrenatural e com os olhos fixos em seu rosto. Diria algo, os lábios se moviam repetindo, com ligeiro sorriso, alguma frase? Aproximou-se como para ouvir a voz do vidro, e a voz do vidro lhe repetia, pausada e claramente: Ego sum papa, ego sum papa.

 

 

 

 

 

 

 

Esta é uma tradução do primeiro capítulo da recém descoberta continuação do romance Dracula (1897), de Bram Stoker. Ela se intitula Vlokoslakia ("terra de vampiros", em húngaro), datando, ao que parece, entre 1904 e 1906, e se passa sete anos após os eventos narrados no primeiro romance. O texto está incompleto — há apenas 11 capítulos (132 pp.), no mesmo esquema epistolar do anterior — e possivelmente Stoker o tenha apenas esboçado. Rejeitando talvez as idéias ou o propósito, decidiu não continuar nem publicar.

Curiosamente, o texto em folhas datilografadas não constava do catálogo de seus papéis na Biblioteca e Museu Rosenbach, na Filadélfia, mas foi descoberto por acaso nos papéis de Hamilton Deane, que comprou, de Florence Stoker, esposa do autor, os direitos da peça Dracula (a que Sir Henry Irving, grande amigo de Stoker, se referia como "horrenda") para representá-la com sucesso em 1924. Quem encontrou foi um doutorando em teatro fantástico do século XIX, de Southampton, chamado Robert J. L. Patrick, que publicou uma edição anotada1, e em cujo ensaio introdutório afirmou se tratar "indubitavelmente" de autoria de Stoker, lembrando que a mãe de Deane e Stoker eram amigos íntimos, apontando também considerações estilísticas (adjetivação muito formal, gosto por narrar aspectos tentativamente etnográficos do leste europeu, etc.). Sugeriu também que Stoker teria decidido não continuar após o trauma pela morte de Sir Henry Irving († 1905).

 

Tudo isso causou certa polêmica, durante o ano de 2005, no âmbito acadêmico.

 

A questão da autoria não foi decidida, e, na verdade, foi arduamente contestada. Alguns críticos, como Rupert Drake, apontam o que seriam inconsistências estilísticas já na carta de abertura (o excesso de afabilidade de Abraham Van Helsing, sua citação de uma pintura de Franz von Stuck, coisa que Stoker não teria feito), e outros chegam mesmo a dizer que o texto seria de autoria do próprio Hamilton Deane, emulando o autor atrás de capitalizar sobre o sucesso de Dracula, e, sob esse ponto de vista, o texto não teria sido escrito em 1904-6, mas aproximadamente por volta de 1925.

 

Não obstante, vale como item de curiosidade. Boa Leitura.

 

CARTA DO DR. VAN HELSING A JONATHAN HARKER

 

"Meu caro Jonathan Harker,                                                         

"3 de dezembro de 1904

 

"Espero que esta carta o encontre bem, e forte, sabendo que precisarei de você exatamente assim. Estou escrevendo do Desfiladeiro de Borgo e compreendo que a simples menção desse nome — assim como as implicações que traz à mente — lhe seja desagradável, ainda que no verão deste ano, como Madame Mina me contou numa carta recente, tenha vindo com a sua família para um corajoso ato de acerto de contas com o passado.

"Devo dizer que, em todos esses sete anos desde o trágico evento que nos privou dolorosamente da presença querida da srta. Westenra e do nosso galante sr. Morris, não deixei sequer  um momento de sentir uma estranha inquietação no espírito, que deveria ter reencontrado a tranqüilidade após o bom termo de tantas provações (como certamente você estará pensando ao ler estas linhas).  Compreendo que, diante de nossos olhos mortais, a sombra que escurece o sol nessa paisagem verdejante da Romênia não possa mais ser percebida, e daí a minha insistência com o penoso assunto que venho trazer à sua consideração.

"Talvez a pressa que tínhamos em nosso coração para acelerar o desfecho  de nossas dificuldades tenha banido a prudência quando, diante do ferimento mortal do sr. Morris e da pronta resposta que demos ao nosso inimigo, consideramos desaparecida sua existência maléfica quando ele foi pulverizado diante de nossos olhos, com o golpe preciso de sua lâmina. Diante de nossos olhos, eis que o mágico das feiras itinerantes evapora, sem deixar rastro que seguir, com uma ilusão para os nossos olhos. Meu caro Jonathan, considerei que o pulvis es bíblico trata apenas das pessoas que, como eu e você, se abrigam sob as leis de Deus, e da ciência.

"Os szygany e os magiares afirmam, com os olhos e os gestos que você conhece de sua infortunada viagem sete anos atrás, que o gado tem desaparecido durante a noite em muitas aldeias, para aparecer  morto de manhã, seco de seus fluidos corporais, com a carne aderindo aos ossos.  Algumas pessoas disseram também ter visto uma forma semi-humana, cadavérica, como se partes de pele, músculos e nervos lhe faltassem (ou estivessem à mostra), vagando lentamente pelos bosques noturnos. Todos se persignam ao mencionar o assunto, como a corte de Bulgária há alguns anos diante do quadro desse pintor Stuck, representando Lucifer — cuja aquisição foi considerada um péssimo presságio —, e o pavor começa a se espalhar novamente pelos arredores do castelo de Vlad Tepes.

"Agora acredito que deveríamos ter queimado a caixa e as terras, e não virado as costas ao que pareciam ser os restos de um grande estrategista de guerra do século XV. Estou no Desfiladeiro de Borgo por esse motivo.  Consegui dois szygany a peso de ouro e nos dirigimos ao Castelo, na esperança de encerrar a antiga pendência. Não se preocupe. Escreverei dentro de três dias para acalmá-lo e para relatar o último episódio dessas monstruosidades. Estarei no Hotel Golden Krone, de partida para Budapeste, e então, Viena.

 

                        Seu,  

 

                               Abraham Van Halsing.

 

 

 

novembro/dezembro, 2006

 

 

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1Patrick, Robet J. L. (edit.). Bram Stoker’s Vlokoslakia. Oxford: Oxford Press, 2004

 

 
 
 
Dirceu Villa. Poeta, tradutor, ensaísta e professor de literatura. Publicou MCMXCVIII (São Paulo: Selo Badaró, 1998), Descort (São Paulo: Hedra, 2003) e tem inédito o novo livro de poemas, Icterofagia. Apresentou o programa da rádio CR37, da Casa das Rosas, na internet, sob direção de R. H. Jackson, e editou a revista Gargântua (1998-1999); foi publicado na antologia nova-iorquina Rattapallax 9 (2003); tem poemas publicados nas revistas Ciência & Cultura e Ácaro, na qual publicou também traduções de e.e.cummings e Ezra Pound; traduziu e anotou Lustra, de Ezra Pound, para o mestrado (2004); tem ensaio sobre Fernando Pessoa publicado no "Dossiê" da revista Cult (2005); fez o roteiro e desenhou a HQ "O Entardecer de um Fauno", baseada em poema de Stéphane Mallarmé, e recentemente prefaciou os Contos indianos, do mesmo autor (São Paulo: Hedra, 2006), além de A trágica história do Doutor Fausto, de Christopher Marlowe (São Paulo: Hedra, 2006). Traduziu Imagens de um mundo trêmulo, de John Milton (São Paulo: Hedra, 2006). Leciona no curso de extensão universitária da USP (Poesia – 2003/2004/2006) e faz parte do corpo editorial da revista Cadernos de Tradução, FFLCH-USP.