[imagem original ©governo do estado de são paulo]
Dirceu Villa
desconfio da inconfidência
desconfio da inconfidência. céu azul em branco que pesa arrobas,
arrobas de roubo, pés de presos, caldo verde, invasão e pilhagem.
desconfio da inconfidência. conforto de alvarenga e tomás, perder
tudo e não mais. não filhos da forca: pastores do verso, senhores.
desconfio da inconfidência. da barba rente, cortada, da voz viva
da navalha de joaquim josé, jesus que ninguém é, cadáver exposto.
desconfio da inconfidência. a bíblia manca de silvério, o gosto voraz
do minério, dentista réu: que o povo, doroteu, é como moscas no mel.
desconfio da inconfidência. o falho indeciso, filho do império, o libertas
quae, o sera tamen, jugo de trabalho aos cem cativos, pela gente de bem.
desconfio da inconfidência, das rimas de ganância e do verme do
negócio; os cartórios de ninguém, disparates provisórios, hoje e ontem.
desconfio da inconfidência e dela tiro o que não tem: a voz de um vivo
devoto de são crispim, que se a tanto aprouver, corta sapatos de cetim.
desconfio da inconfidência, desconfio de março e abril: o cangaço e
o conselheiro, vivos sempre e sempre mortos, ninguém sabe, ninguém viu.
Dirceu Villa
Na Germina
> Poesia
Elizabeth Hazin
FALTA
raro é o ar
em todo canto falta o ar
(falta-me aqui enquanto escrevo)
estamos sem ar
sem arte
sem a parte da alegria que nos ilumina
já não se pode desaparecer em pleno ar
ficar suspenso no ar
nem aqui nem na China
Elizabeth Hazin
Na Germina
> Poesia
Emília Mendes
Blecaute
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florescer para quais frutos? |
confrontar quais lutas? |
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dispersar quais pensamentos? |
preparar-se para quais desdobramentos? |
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que ferimentos arriscar? |
lançar-se em qual abismo? |
Emília Mendes
Na Germina
> Sob o Signo de Vênus
Estrela Ruiz Leminski
sem título
minha poesia é marginal e por isso vê o centro
minha poesia era virgem até sair que nem louca flertando com outras poesias em Minas Gerais
minha poesia se convenceu de que quem gosta de folha cai na literatura ou na botânica
minha poesia será copiada na internet e usada em todo o ensino público, inclusive no vestibular.
mas isso só quando eu morrer.
minha poesia queria morar em BH, passar as férias nas chapadas e ser sucesso absoluto em São Paulo
eu e minha poesia não aceitamos conversa fiada. Favor não insistir.
Estrela Ruiz Leminski
Na web
> Estrela Leminski & Téo Ruiz
Fabrício Marques
INFINITAMENTE ÍCARO
acordei de manhã
rufar repique rataplã
tinha festa no céu
faísca fagulha fogaréu
meus olhos estavam em brasas
a festa vinha por outros sentidos
eu era um cego com asas
e, cego, roubaram-me o céu
não é por falta de céu
que vou deixar de voar
o voo, esse, começa agora:
acessível à aurora
Fabrício Marques
Na Germina
> Poesia
Francesca Cricelli
Azul
Há algo triste no azul dos teus olhos,
algo perdido e infinito neste azul dos teus olhos,
algo de azul
no triste dos teus olhos.
Há algo de teus olhos neste triste azul, algo perdido
no infinito do azul dos teus olhos,
algo infinito no azul perdido dos teus olhos.
Há algo azul
no infinito triste
dos teus olhos
perdidos.
Francesca Cricelli
Na Germina
> Poesia
Francisco dos Santos
Protomúsica
Francisco dos Santos
Na Germina
> Poesia
Gilcevi
genêsis; cap. I
nego d'angola
encontrou na cachoeira
a índia guerrera
ele tava com cara
de bicho assassino
depois de correr
3 dias sem parar
nem pra beber
água fugado
do capitão do mato
ela tava com cara
de bicho acuado
bugra montada currada
aldeia queimada
marcada de esporas
ela falava borun
ele kimbundu
de algum jeito
se entenderam
e fugiram dos brancos
pro fundo bem fundo
da mata escura
ela pediu pra marét-khamaknian
confundir o caminho
do inimigo
ele pediu pra mutakalambo
lhe mostrar
as trilhas escondidas
da floresta
e da fartura
um nacuro
uma nhorá
duas flechas
os marét
os inkisses
assim começa
o mundo
Gilcevi
Na Germina
> Poesia
Glauco Mattoso
#5918 RHAPSODIA OSWALDIANA [15/02/2020]
{Dizendo que não leu e não gostou,
Oswald essa piada amplia para
de todo auctor rival gozar a cara.
Só quando os lemos vemos quem errou!
Agora lhe pergunto, Glauco: Dou
valor ao que elle diz? Elle compara
o Mario com a miss que, numa tara
traveca, transformista deu seu show!
Tolero, Glauco, offensa tão vulgar
da parte de quem disse ser vanguarda?
Não! Ponho-me do Mario no logar
e mais admiro o bardo de cor parda!}
— Concordo plenamente. Se accovarda
a claque, de "anthropophaga" quer ar
satyrico obstentar. Mas ja não tarda
que em Mario vejam alto o patamar.
Glauco Mattoso
Na Germina
> Poesia
Guilherme Gontijo Flores
Miss Antropofagia
Como Colombo procurando pimenta-do-reino encontra malagueta e dedo-de-moça.
Tudo é bem mais e queima.
E só das índias nasce um índio.
§
Mirar o inimigo, mirar o corpo devorado, mirar a carne certa.
Errar o inimigo, errar o corpo devorado, errar a carne certa.
§
Sem viveiro pré-fabricado que enlate a vida esparramada e sem sentido.
Sem medo que nos castre ou oriente.
Sem anseio idílico de Europa.
Tudo em tanta parte.
§
Dito tupinambá: "Bispo Sardinha não faz jus ao próprio nome".
§
And I miss thee, Anthropophagy, thy many letters in this edible dead language.
§
Só me interessa o que não é meu, nem do outro. O que no outro nem dele era.
Achar no fígado de Percy Shelley uma desculpa para o coração.
§
Na contraleitura do não-dito.
Até quem sabe o horror silenciado do cotidiano.
§
Quem pode devorar o misantropo que nos odeia, pensar em aprendê-lo digerindo, e divergindo desprendê-lo?
§
Contra toda prisão de ventre e a retenção de acúmulos bancários.
§
Somente a tradução nos salva. Desde que não nos una.
Aponta o rumo da deriva.
§
Tupi ou não tupi, tudo em questão.
§
Contra o complexo de periferia.
A metrópole morreu: nem aqui nem lá.
Sobre questões de moda, o cinema iraniano informará.
§
Yes, nós temos pierogi.
Yes, nós temos distância.
Yes, nós temos geadas.
Yes, nós temos malária.
Yes, nós temos milícias.
Yes, nós temos silêncios.
§
MIS — Errar, perder, odiar, tudo é saudade lusitana inencontrável.
§
Lalangue comme objet de plaisir.
Essa mesma língua minha que ameaça e oblitera a dos outros.
A mesma que me apaga e arrisca no fascínio dos fascismos.
§
Sim, fomos catequizados, mas toda a garotada só pensava em se comer.
Do outro lado da cerca, eliminavam mais rapidamente toda a gente de cor.
§
Quando descobriram a felicidade, a gente estava noutra.
§
Porque nas migrações todos foram parar no lugar errado, assim errado é que se funda algum lugar.
§
Tente no Google.
Tradizer.
§
A poética da errática: Rousseau comeu do bom selvagem.
§
A alegria é a prova dos nove até segunda ordem.
A divergência é o corolário. Babel feliz.
§
No anarcado geral da terra sem mal.
Na alma interessa o que não é alma.
§
A serta'o a méret a világon, disse-se online em húngaro.
§
A magia e a vida: gritar hocus pocus nos ritos da tribo, sem palavras puras que a redimam facilmente.
§
Life is the art of finding, though there are so many feinds in life.
Life is the art of misreading, though everything is just so ready.
§
Só as bibliotecas não nos salvarão.
Contra a ciência especializada e morta: saber também de orelha.
§
Entre o livro de rostos procurar sinais de pele.
E sob a pele a marca ainda fresca dos curtumes.
§
Contra os gourmets do mundo, uma poética da indigestão.
Zeus engoliu Métis e assim pariu Atena de pela cabeça.
§
Tente no Google.
Cinedhíothú.
§
Pound comeu chineses de Fenollosa até descobrir a poesia moderna inglesa.
Oswald, do alto do umbigo do mundo parisiense, descobriu deslumbrado a própria terra.
Do centro do país do futuro alguém sonha que explode a ideia de nação.
Toda vez que saio, tudo muda.
§
Pelo bug do milênio.
Pelo carnaval que vai cobrir metrópoles de mato e seiva, arrasando a lei do asfalto.
§
Comer também tem seu caráter destrutivo.
Hay que llegar la diferonça.
§
Mas vale a pena derrubar o Google.
Contraduzir.
§
Toda vez que engulo o outro encontro algo em nós que o extrapola.
A contribuição milionária de todos os erros.
§
À beira do colapso ambiental, em terra de cego, tentam incorporar Copenhagen em cada cunha.
Este corpo que nunca é teu.
§
Fugir para Miami e desembarcar na Serra Leoa — projeto de erro geográfico.
Em toda parte se acharia o nosso fracasso.
Guilherme Gontijo Flores
Na Germina
> Poesia
Guilherme Mansur
Amazônia
[2021]
Guilherme Mansur
Na Germina
> Poesia
Henrique Dória
VERTICAL
O homem cresce vertical
Assim com as cristas dos pinheiros
Depois vem o vento
Da morte
E ele inclina-se na queda
Recorda que foi vertical e verde
E depois morre.
O pinheiro sobre o mar ganha
Ninhos de pocessionária
Que o devoram na vertical
Lhe roem a resina
E ele estiola
E desce na vertical
E depois morre.
Vem então o fogo
Que brilha na vertical
Cresce no colo das raparigas
Mas depois vem a noite
O frio silencioso
E o fogo expira na vertical
E depois morre.
Vem por fim a água
Que desce na vertical
E molda o canto da terra
E brilha sob os espíritos
Entre as tílias do coração
Escoa-se na vertical
E não morre.
Henrique Dória
Na web
> InComunidade
Hirondina Joshua
MIGRAÇÃO DO OVO
a casca antes de nascer invoca seus sanguinários destinos
o primeiro: está na palavra água
— é preciso não ter paz para ovular.
o segundo movimento anda de trás para frente dentro das combustões. há ainda água clara por inventar no círculo cinza e sedento: as mortes feitas nas pequenas circunstâncias escorregam para dentro e fora de bocas abertas nas raízes das matrizes. água pode ser fogo — disse a criança que salta nos espaços separados.
estávamos no eco.
havia alguma coisa que nos trazia uma espécie de magma entrelaçado nos signos
o movimento fazia o mesmo som que da casca grossa
eram animais a mostrar o ouro.
era o ouro apresentando a líquida parte das sensações primitivas
eram as sensações na forma primária e rápida das alumiações
eram as alumiações no líquido ouro.
— estávamos no eco.
permanecidos em buracos ao lado de tudo. o ovo é o que não sabe. levanta e dorme. adoece.
Hirondina Joshua
Na web
> Mapas do Confinamento
Hugo Pontes
Nós
Hugo Pontes
Na Germina
> Poesia Visual
Ilka Boaventura
predação
na carne desossada da terra
espirram minérios liquefeitos
em caudaloso manjar de chuva ácida
abismos de um porvir
de mais um pouco
o despedaçar dos órgãos
e só mais um pouco
um pouco mais
só mais um pouquinho
essa terra é território?
é chão, casa, roça, ponte?
é gente, bicho, morro, riacho?
não, esse é um farelo frouxo
solto fétido sujo morto
à espera do descarte.
Ilka Boaventura
Poeta, antropóloga e professora da UFSC.
Inês Campos
DESPEJO
então reuni minhas quinquilharias:
– 5 ameaças
– 30 folhas de esperas
– 2 pés descalços
– 1 dente de leite
– 3 medos guardados em gavetas
apropriadas
– 2 saudades vermelhas
– alguma frase
cortada
(onde guardar tanto grito?)
minhas borboletas: soltei
meu jardim: deixei para o próximo inquilino
Inês Campos
Na Germina
> Poesia
Jade Luísa
Monólogo ao fim do mundo
I.
jamais imaginei que você fosse tão lento
nenhum samba é tanta madrugada
II.
quando você aparece
sopitando como se nada fosse acabar
são as velhas que morrem
velhas de cabelo bem branco que se recusam
a acreditar que há fim do mundo
não as velhas que germinam lentilha
essas morrem por descuido
a história estremece o chão como
elefante centenário empalado
pelo próprio marfim
III.
não há fim do mundo que me faça perder o seu tango
não há fim do mundo que me faça perder a fome de feijão com farinha
não há fim do mundo que me faça parar de absorver vozes que não as minhas
não há fim do mundo que não habite a fila dos ossos
e morrer parece mais uma metáfora para esquecer
a criança síria encalhada na praia europeia, a baleia jubarte
a criança yanomami
o menino baleado dentro de casa
a família morta oitenta vezes
não há fim do mundo que reconquiste as praias de alagoas
nem tiroteio que extermine vírus, vermes
jamais imaginei que você fosse tão lento
nenhum tiro mata tão devagar
nenhuma língua demora tanto a escoar correnteza
nenhum samba demora tanto o choro
IV.
sinto o rosto do vento e é bom sentir o rosto das coisas
assoprar o sentimento do mundo
sinto a chuva fina — quase não chuva
porque o vento gela
e sentir frio é estar um pouco viva
mesmo que tenhamos morrido a cada morte não chorada
mesmo que eu seja uma loba laranja
morta queimada, sinto frio
há um átimo entre o frio, o calor e a morte
há uma tatuagem na minha lombar
feita por alguém que mentia
há tantas cores no vento do fim do mundo que já não parece
vento, nem abismo, nem morte
parece algo a mais que abismo miragem e morte
balbucio uns pares de sons abaulados
como se fosse único formato que eles pudessem performar
invento nova língua
aquela que não pude inventar enquanto amava
— quem ama inventa línguas todos os dias
e esquece a cada madrugada
V.
o fim do mundo me parece como humildemente
encarar a gota que cai da estalactite
e se vê cada vez mais próxima de ser
quase tudo
ou nada.
Jade Luísa
No Instagram
@ jadeeluisa
Jairo Fará
CLASSIFICADOS
No último caderno
Do jornal Glotinha da Manhã
Encontra-se a parte do procura-se.
Procura-se a moça que ri
Que guarda nos olhos meu grande amor
Que é bonita e bonita
Mas nem precisava ser.
Procura-se um país, hemisfério, planeta
Onde os únicos problemas sejam
A chuva demais ou de menos
O sol demais ou de menos
A morte, a doença e a dor.
Procura-se a terra dos amigos do peito
Em que todos se conhecem desde criança
Os bares não fecham às segundas-feiras
E há dois "pôr do sol" por dia.
Procura-se algo mais,
Que não sei o que é.
Troca-se um dia de felicidade
Por três lembranças boas.
Troca-se três segundas-feiras por um sábado,
E duas tardes por uma manhã.
Informações: 0800-000000
Jairo Fará
Na Germina
> Poesia
Jéssica Iancoski
Aula de História do Brasil
Jéssica Iancoski
Na Germina
> Poesia
João Diniz
Se Vira
[Esse poema faz parte da série e exposição Typos Extraños e integra um conjunto mais amplo de poesia sobre suportes não convencionais denominado Poematéria: arquitetura da palavra, que em breve será exposto e publicado.]
João Diniz
Na Germina
> A Genética da Coisa
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