[Foto Emília Mendes]
 

 

 

 
 

 

 

 

Qual é voz do corpo em gozo e o que é o prazer da poesia? Para Dolabela, a resposta está na polifonia que, em hipótese alguma, deve ser calada em sua multiplicidade. O prazer é assim: diverso. É neste tom que ele começa sua Ode [em forma de valsa] à buceta — dentre outros nomes possíveis (é preciso escolher ou é melhor se lançar nas descobertas?): bucetografia, bucetolândia, bucetoterapia, bucetofilia, bucetomania, bucetismo, bucetometria, bucetonice, bucetalgia, bucetofagia... Tem para todo mundo, os públicos (di)/(dos)versos. Alternativas plurais para as sensações de Afrodite e de seu filho, Eros, o tecelão de mitos, doce amargo, que faz sofrer, como disse Safo, essa poeta tão querida por Marcelo e à qual, acredito, tenha feito uma homenagem ao estruturar seu poema em fragmentos.

Um prefácio, uma nota prefacial, uma advertência? O gênero textual não dá para saber, Dolabela inicia seu livro já com essa impossibilidade de descrição dos deleites que trespassam a alma: "tata spaghetti (psicografado por evelyne fish & emilia dorbolina)". São essas as musas que dão voz ao poeta, que em submissão a seu poder (o prazer está em tudo), grafa seus nomes na humildade da caixa baixa. Vem daí uma das mais deliciosas notas iniciais que já vi, num ritmo sincopado da respiração de quem se entrega ao que Vênus oferece: "m.d. escreveu estes quase-limeriques de uma levada só. três cervejas. quase três horas. no bar banzai. avenida augusto de lima / com padre belchior. em 20 de julho de 2010. por volta das 13 horas. não revisou. revisar um tema desses seria uma ofensa. de um gozo não se arrepende. saiu assim. assim ficou". Antes do gozo do corpo, está o gozo da escrita na companhia das musas, sejam elas as fadas douradas do álcool, sejam elas as musas da inspiração, sejam elas as Schneiders, sejam elas as deusas do tesão. É o próprio poeta quem diz no fragmento 3: "Sou filho das Musas/ linha destas fusas/ nasci nesta origem/ vivo em vertigem/ sou filho das Musas".

No fragmento 30, temos: "Palavrão: és racha/ de Pandora [...]. Palavrinha: és racha". Adentramos aqui também nas transgressões da/na língua, da sedutora ironia refinada, dos jogos de palavras e dos jogos do desejo; aqueles da língua e da lábia (cf. frag.13). O erotismo é o lugar essencial da liberdade e da expressão de si. Como já disse Georges Bataille: transgredir não é negar a interdição, mas superá-la. Nada pode ser mais libertário. Embora o título do livro traga tantas variações dessa palavra ainda interdita para as "gentes de bens", o poema em si, é totalmente escrito na penumbra da sugestão, fugindo inteligentemente da facilidade do explícito e do pornográfico. O erotismo é sempre sugestivo, insinuante, sedutor, fantasioso, criador de mundos de gozos possíveis e libertários. O universo da alcova pertence a quem o frequenta, nenhuma lei ou concepção moral pode acessá-lo, por mais que tentem. Esta é uma ode à emancipação e aos múltiplos prazeres.

Como muitos dos livros feitos por Marcelo, o Ode [em forma de valsa] à buceta é uma autopublicação. A capa, no seu momento David Lynch, Dolinha rouge velvet, foi determinante para a tiragem (24 exemplares), pois, segundo ele mesmo contava, comprou as últimas metragens desse rayon double velvet, que não mais seria fabricado (para quem não conhece o tecido, ele é felpudo, semelhante às fitas de veludo vendidas em armarinhos). O luxo do veludo sempre foi um fetiche para vários! No fragmento 15, temos: "veludo de carícia"... De fato, é uma capa que enfeitiça, tão macia ao tato, tão envolvente, senti-la nas mãos é também uma forma de prazer. Não deixa de ser também muito interessante a "racha de Pandora", toda brilhante, um rasgo que Marcelo nomeia Aleph, que é também uma origem do mundo (cf. quadro homônimo de Gustave Courbet, que ficou por anos no consultório de Lacan, mas escondido sob uma outra tela — história que Dolabela adorava contar). A mancha de texto dialoga também com o sentido do erótico: ocupa as partes baixas das páginas. Igualmente, somos brindados com um desenho feito por Marcelo, em que risco/rasgo/racha e coração se unem numa simbologia de amor e energia movente. Trata-se de arriscar-se na escrita e arriscar-se nas sensibilidades do humano.

Nesta ode à pequena morte que nos faz sentir tanta vida, revisar é uma ofensa, mas ofenderia a quem? Não vou dar aqui o prazer de uma resposta. Nos domínios de Eros, que nos quebranta os corpos e nos arrebata, invencível serpente — como o definiu Safo — Dolabela canta no fragmento 50: "Reverso da morte/par sem azar — sorte/ abismo e aconchego/ luz — guia de cego/ reverso da morte". Erotismo é criatividade, uma necessidade para estes tempos de desprazer e aniquilamento.

Sade, esse libertino admirado por Marcelo, terminou seu Historiettes, contes et fabliaux dizendo mais ou menos o seguinte: "Leitor, se te dei prazer, tenha-me em alta conta, caso contrário, jogue-me no fogo!". E por aqui, ficamos.




[Foto Emília Mendes]

 

 

 

Emília Mendes. Coordenadora editorial do portal Dadalobela, poeta & recitadora, professora do curso de Edição da Fale/UFMG, dentre outros. Participou da comissão editorial da coleção Poesia Orbital (1997), e publicou a obra Cantigas de amores a ilustres senhores, na mesma coleção. Atuou nos jornais belo-horizontinos Inferno e Dezfaces. Membro do recitativo de poesia Los borrachos, em atuação desde 2000. Participou da antologia Entrelinhas, entremontes: versos contemporâneos mineiros (Quixote + Do, 2020) e da e-plaquete 2022: poemas e mais (Cem Flores, 2020).