[imagem original ©governo do estado de são paulo]

 

 

 

 

 

 

Assionara Souza

Bandeira

 

 

As mulheres do sabonete Araxá

São cinquentonas gostosas

E moram em casas largas

Com cães latindo felizes em torno de suas saias

Pela manhã, acordam abrindo janelas

Com aquele gesto expansivo de um

Jesus recendescido do eterno crucifixo

O olhar doido doidinho pra devorar o dia

Se possível, sem alvoroço

Há espaço para todos no coração dessas três

Agora cuidam das mães

Abraçam e beijam os netos

E riem, como elas riem com as frases que eles dizem

 

A primeira — não insistam!

Só faz ligações pra fixo

Imagino ela se enrolando no fio do telefone

Tipo a moça do filme

Emoldurada na porta que dá para um jardim

Conta-me as últimas novidades

Os casos mais descabidos

Fico por dentro de tudo e ainda arrisco um palpite

Ai, essa eu amo muito demais e desejo

 

A segunda é das redes sociais

Tem perfil em vários sites

Adoro quando ela agarra o gargalo do frisante

Fica assim meio alisando e me falando dos amantes

Os olhos faíscam da vingança de saber

Por trás de cada calça o tipo de pau que abarcam

Segreda-me esse segredo com a língua em meu ouvido

Ai, essa eu amo muito demais e desejo

 

A terceira já foi prostituta linda que eu namorei por um tempo

Fazia ponto na esquina da quadra de minha rua

E quando o frio batia até não poder de jeito

Eu ia lá ter com ela dividir um cigarrinho

Um gole do bom conhaque

Ouvir confissões doídas

Tomar ódio de polícia

Imaginar um movimento e fazer revolução

 

Meus reinos, meus festins:

Tudo por esses olhares

A alegria tão lírica

Os mantras que elas recitam

As velas de sete dias para São Jorge Guerreiro

Novena de Nossa Senhora e o sagrado feminino

Sagrações da primavera, conselhos, receitas, chás

Tudo isso eu adoro

Nessas mulheres tesudas do sabonete Araxá!

 

Não quero nunca que morram

Minha vontade por elas vem de um tempo tão antigo

De quando os homens que andavam no mundo

Um mundo avesso a esse nosso

Eram gentis cavalheiros

Respeitavam bem as moças

E cuidavam das crianças

Não havia choro nem dor,

Era amor e temperança e cantigas de ninar

 

Essas cinquentonas lindas

Ainda me bouleversam e hipnotizam

Os meus reinos, meus festins

Esses versinhos chinfrins: deixarei tudo pra elas

A cismar sozinho à noite

Abro um livro já antigo

Fico lendo e repetindo o poema feito reza

Ao poeta solitário que inventou essa balada

E adormeço convencido:

Tenho mais do que preciso

Desejo só o que quero

Tudo belo belo belo

 

 

Assionara Souza

Na Germina

> Poesia

 

 

 

 

 

 

Beatriz H. Ramos Amaral

Raiz de Sol

 

 

a claridade da manhã

como raiz de sol, convicta

recusa o lirismo comedido

a que se referiu Manuel Bandeira

o lirismo bem comportado

contra o qual se insurgiu

o poeta do Capibaribe, autor da

Estrela da Manhã, da tarde e da vida inteira

 

agora, um século depois, em minha torre

sem marfim nem lodo nem delírio

nesta ágora cibernética contemporânea

o olhar ressignifica o ciclo e o reacende:

também recuso o lirismo comedido

e recuso o fácil, o simples, o óbvio

o frívolo, o raso, o muito-pouco

estamos todos fartos

da poesia que não é libertação!

pois é ínsito ao gesto criador

ser livre, transgressor e desmedido

ser o que canta, exagera, inventa e recompõe

na estrada semântica e sincrônica

a geografia de planos-plenos

a terraplanagem de afetos-grafemas

que alfabetizam o tempo

 

 

Beatriz H. Ramos Amaral

Na Germina

> Poesia

 

 

 

 

 

 

Beth Fleury

MINAS

 

 

Tudo que é concreto

se aproxima

do que quis perder

mas não pude

 

Do que de longe mirava

e não via

mas que de perto de mim

não saía

porque distando estando não cuidava

de te deixar enquanto eu partia

 

E partido ficava em mim

tudo o que fugia

Abstrata estava

mas não podia

carregar teu concreto

que eu carregava.

 

 

[Rio, 1990]

 

 

Beth Fleury

Na web

Beth Fleury

 

 

 

 

 

 

Brenda Mar(que)s Pena

GÛASU ABAPORU*

 

 

Nos poros dos pés e das mãos

Devora todas as linguagens

Sente o cheiro da Terra

Perde a própria fala

Inventa outras línguas

Percebe nas extremidades

O calor do Sol e do Solo

Fertiliza criatividade

Um presente com cores

Vibrando modernidade

Antropofágica falange

Oswald de Andrade amou

Quem não Tarsila amará?

 

 

*Grande Homem Que Come em Tupi-Guarani

 

 

Brenda Mar(que)s Pena

Na web

Brenda Mar(que)s Pena

 

 

 

 

 

 

Bruno Molinero

moderno

 

 

mas em

miami

é mais

barato

 

 

Bruno Molinero

Na Germina

> Poesia

 

 

 

 

 

 

Caetano Costa

Bye

 

 

 

 

Caetano Costa

No Instagram

@_caetanocosta

 

 

 

 

 

 

Calí Boreaz

mamihlapinatapai

 

 

em russo, há uma palavra específica para o afeto que se tem por alguém que se amou. em tcheco, há uma palavra para um certo tipo de angústia diante da própria mediocridade ou falta de habilidade (lembro de kundera falar dele). na escócia, parece que há uma palavra para o tique do lábio superior que indica a antecipação da alegria. em albanês, há alegres 17 e 27 palavras respectivamente para sobrancelhas e bigodes. em romeno, há sei lá quantas que significam, todas elas, neve, mas cada uma para especificar um certo tipo de neve, que por aqui (ao sol marinheiro da língua portuguesa) não distinguimos por desnecessidade. e se o russo olha para o amor antigo, veja bem: o japonês inventou uma palavra para um sentimento de pré-amor. em yagan, idioma indígena falado por um povo da tierra del fuego, mamihlapinatapai é aquele olhar trocado por duas pessoas quando ambas querem que a outra tome a iniciativa de fazer algo que ambas sabem que querem mas.

 

mas: o que é a coisa menos a palavra? a palavra menos a língua? isso que se percebe num repente e não tem esqueleto nem contorno para apoiar sua existência — não existindo, pode ainda resistir? se a língua nos funda a humanidade, e se há quem saiba que neve não é simplesmente neve, como amor não é simplesmente amor, assim como a saudade não é só uma falta, e calunga não é só saudade mas também abismo e deus... como posso eu

 

dizer algo agora daqui de onde estou?

 

 

[Do livro tesserato, Caos & Letras, 2020]

 

 

Calí Boreaz

Na web

calí boreaz

 

 

 

 

 

 

Carlos Ávila

SESSENT'

 

 

anos sentado

comendo capim

(pilhas de papel)

sem fim

 

 

solitária lavra

clandestina

destinada ao olvido

ou ao próprio umbigo

 

 

Carlos Ávila

No Instagram

@carloscorreadearaujo

 

 

 

 

 

 

Carlos Barroso

Ledpoema Salvar, 2017

 

 

 

 

Carlos Barroso

Na Germina

> Poesia

 

 

 

 

 

 

Carlos Eduardo Pereira

É isso um homem?

 

 

isso fedendo esse fedor insuportável

essa coisa preta com lanho na casca

com sangue jorrando

com sangue pisado

essas patas com correntes de ferrugem

essa criatura com essa carapaça que é queloide e mais queloide

aquilo pendurado no tronco, é isso um homem?

com uma algema apertando o pescoço

se é que isso é um pescoço

com essa magreza de cadáver se arrastando a chibatadas pelo meio desse bando

mirando concentrado pra um ponto no meio do nada

empilhado um em cima do outro num grande buraco cavado no campo e não dá pra saber

se são pernas se são braços

gemendo um gemido de bicho, é isso um bicho?

isso atrás dessas grades

dessas cercas de arame farpado

isso apanhado nessas redes é o quê?

 

 

Carlos Eduardo Pereira

Na Germina

> Poesia

 

 

 

 

 

 

Carmen Moreno

A sua parte

 

 

 

 

Carmen Moreno

Na Germina

> Poesia

 

 

 

 

 

 

Casé Lontra Marques

Os rios que tecem o tumulto

 

 

Os rios que tecem o tumulto também

orquestram torrentes

meditativas — tensionando a atenção. Rios

(ou campos)

subterrâneos, nutritivamente inomináveis;

rios (ou

incêndios) flutuantes, luminosamente

anônimos. No

espaço

entre os dentes, descansam

mundos sucintos:

como sementes.

Fantasmas se formam — mas, quase no

mesmo momento,

definham; inconsequentes, às vezes

deixam ver

que no vento brotam

ventres. Multidões

e mais

multidões: de animais, montanhas,

florestas — multidões e

mais multidões mortas um

dia

retornam (em hordas)

para

afiar as horas.

 

 

Casé Lontra Marques

Na Germina

> Poesia

 

 

 

 

 

 

Cesar Cardoso

22

 

 

 

 

Cesar Cardoso

Na Germina

> Conto

 

 

 

 

 

 

Christiana Nóvoa

O Sino

 

 

 

 

Christiana Nóvoa

Na Germina

> Poesia

 

 

 

 

 

 

Cinthia Kriemler

FAZEDURA

 

 

Eu estou farta da sede.

 

A sede intensa que me levou ao Itororó

Fui lá, buscar água

Não achei

Só escassez.

 

Estou farta do esgoto a céu aberto

Que se tornou o Tietê

Do cheiro irrespirável dos detritos

Do homem.

 

Farta da destruição de todo dia

Que castiga a floresta amazônica

Pulmão do mundo que agoniza.

 

Não há mais floresta, fauna, flora

Madeira. Quase não há.

Pouco há.

 

Só índios doentes, perseguidos

Desmatamento

Ruínas.

 

Mas bão balalão, senhor capitão

A pressa é inimiga das urnas

E a mentira tem pernas inúteis.

 

Logo haverá uma outra primavera

A de outubro

Com chuva e replantio de homens.

 

 

Cinthia Kriemler

Na Germina

> Contos

 

 

 

 

 

 

Clara Albinati

Sociedade Matriarcal

 

 

 

 

Clara Albinati

Artista visual e professora de cinema da PUC-MINAS.

 

 

 

 

 

 

Claudio Daniel

Terceiro Olho

 

 

Para Henri Michaux

 

 

Galho

de árvore

corcunda.

Cabeças

cúbicas

de formigas.

Paisagem

de margens mudas

onde o vento

sopra

ao contrário.

Onde as pedras

não são mais pedras.

Ninguém vive

aqui.

Aranhas tecem teias

nos meus

pesadelos.

Salamandra procria

no fundo

de meu olho direito.

Este não é o Olho de Buda.

Paisagem construída

com dedos

e unhas

de mortos;

com a pele,

cabelos

e olhos

de mortos.

Meu pai,

um mapa borrado;

minha mãe,

bússola

sem ponteiros;

eu mesmo,

pedra negra

no tabuleiro

de xadrez.

Apenas sombras

uivam.

Tudo tão pesado,

tão pesado,

âncora de pensamentos.

Tudo tão

detestável.

Por que as geleiras,

por que os abismos?

Faca desenha círculos

concêntricos

na água estagnada,

à esquerda

de lugar algum.

Este não é o Olho de Shiva.

Formas desfiguradas

em farrapos.

Essa escada que não leva

a parte alguma.

Palavras, palavras, palavras

já não fazem mais

sentido.

Silêncio.

Depois, espectros escrotos

em alto-falantes

anunciam a morte

de Deus.

O terceiro olho

então

se abre.

 

 

[2021]

 

 

 

 

 

 

Claudio Daniel

Na Germina

> Poesia

 

 

 

 

 

 

Dalila Teles Veras

marioswald

 

 

mote de joão condé

 

 

consolação

:

procurei-os

(

sobre a pedra

folhas secas

sob a pedra

ossosdesolação

)

casa vazia

 

tumbas

toscas

sem epitáfio

nem poesia

 

encontrei-os

:

brilhoteca

 

(

lombadasluzentes

macunaímaserafim

pauliceiapaubrasil

)

casa/estante/sacrário

onde ninguém morre

permanece

sempre à mão

 

 

[Do livro fuga e urgências. Alpharrabio, 2022]

 

 

Dalila Teles Veras

Na Germina

> Poesia

 

 

 

 

 

 

Daniella Zupo

amoroso

 

 

para ler ao som de João Gilberto

 

 

deixa o amor morrer devagar ou subitamente

devagar ou subitamente o amor

deixa o amor

devagar

subitamente

o amor

deixa

 

 

Daniella Zupo

Na web

Daniella Zupo

 

 

 

 

 

 

Demétrio Panarotto

deserto,

 

 

(num diálogo com Artur de Vargas Giorgi)

 

 

O magro de cócoras está em cima da ponte

bem no meio

mas bem no meio mesmo

talvez um dos joelhos um pouco mais pra lá

não, foi mera impressão

no meio, sim no meio

entre as oito pistas

com uma venda nos olhos

 

o sol nesse momento está posicionado exatamente acima de sua moleira

mole mole bem mole (mole mole mole pá)

 

com as orelhas sente o vento dos carros que passam rente ao seu corpo

a orelha uma biruta

abana abala absorta

 

como chegou até ali ninguém sabe

nem mesmo as câmeras de vigilância, suponho

 

o movimento da ponte é intenso

para os carros o magro de cócoras é lateral

para as motos é mira

 

os motoristas pensam que o magro é uma miragem

uma propaganda bem

provável que não

 

os motoqueiros

dão a impressão de que passam por dentro do corpo dele

por dentro

bem por dentro

 

só o deserto

ao sol do meio-dia

oferece esse tipo de aluci-

nação

 

o magro é uma rotina

na próxima semana

quando a ponte for fechada para reformas

o magro provavelmente será reformado junto

será?

improvável sugerir apenas isso sobre as suas resiliências

 

o trânsito

transe

trova

 

no carro que passou à sua esquerda

uma menina quebrou o pescoço pra

não perder o detalhe

 

a menina

pai, o magro de cócoras

 

o pai

besteira....

 

 

Demetrio Panarotto

Na Germina

> Poesia

 

 

 

 

 

 

Diniz Gonçalves Júnior

cartão-postal

 

 

a fruta pede paciência

tem o tempo dela

igual aos dias que passam

lentos no interior

 

a saudade permanece

na quietude de

coretos azuis

que não vi

 

nas compotas

da venda

nas conversas

ruminadas à tardinha

com tons de laranja

 

meus olhos passam apressados

pelo calendário: o contorno da

montanha tão distante dos

prédios do meu bairro

 

estou no

trânsito da paulista

eu não sou da sua rua

 

na garganta sinto

o gosto seco

das cartas devolvidas

 

 

Diniz Gonçalves Júnior

Na Germina

> Poesia Bilíngue

 

 

 

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