©mariamne meraki
 

 

 

 
 

 

 

 

SEPARAÇÃO



Na cama, aparentemente vazia,

a morte sobre a colcha de casal estendida,

em cores de retalhos — florida.

Da alma dos travesseiros, dor e libertação.

Ninguém mais mora no quarto,

desde que a amargura subjugou o sonho.

Limpam-se as nódoas dos tacos e a poeira dos móveis 

para nenhum visitador.

Tudo parece permanecer, mas nas veias das paredes 

já não circula o sangue do amor.

O quarto, intacto.

Frio, feito o do filho morto.

Nada virá de ontem trazendo a ressurreição.

Nova comunhão de corpos fecundará,

no mesmo colchão, outra história de fim:

o quarto espera, com sua janela trancada 

e seu mofo de jasmim.







MORTE EM VIDA



O amor morre todo dia.

Começa a morrer broto ainda,

na parição da terra que o enterrará.

No olhar primeiro começa a morrer,

no roçar dos rostos, 

na umidade das mãos entrelaçadas,

o mofo do fim.

Sob a fervura da alegria — águas frias.

Nasce se despedindo, o amor,

na ascensão do querer.

Morre, de transbordar e carecer.

No gemido do gozo, 

a dor inaudível do padecer.

O amor morre todo dia,

na comunhão ácida das salivas,

no silêncio eloquente dos corpos,

na saturação dos sons,

na separação das sílabas.







O TEMPO DO AMOR



Não tenho âncora no passado,

nem como pão requentado na mesa do amanhã.

As fotografias não doem.

Esvaziadas todas as palavras prometidas ao eterno. 

O tempo lava os ponteiros dos segundos,

atualiza dores, desejos, e desbota mágoas.

Aportam-se e partem tantos personagens

no cais do amor!

Ninguém preso aos meus passos,

sob meus pés, pisoteando meu prumo.

Passado não tem fôlego para seguir alegria:

É terra dos mortos.






SOBRE A DOR



Para José Inácio Vieira de Melo



A noite comeu, de repente, 

uns pedaços do meu caminho.

De forma que tremi as pernas e travei os passos.

Depois, jogou em mim um barro bom de fé, 

que tapou os buracos das encruzilhadas.

Acordei novo, surpreso de sol,

feito quem volta da morte 

e pede para ser beliscado, de tão vivo!

A noite tem dentes pontiagudos, 

mas traz na saliva uma luz

que sutura qualquer peito esfarrapado.

Nasceu para maturar o coração: não fere em vão.

A noite não dói tanto depois que passa,

só na hora que o minuto (de eterno) asfixia e mata.

Quando sossega de espernear seu absurdo,

Deixa, na nossa pele, vigorosas estrelas, 

nutridas de Deus.

Não é má, nem morte, nem sina:

É mar, marcha — ensina.







ENSAIO SOBRE AS MANHÃS



A porta do fim dá num beco inusitado, 

repleto de recomeços.

Ninguém descobre o frescor do chão desabitado,

enquanto o medo jura seus infernos!

Mas se a vida chama e o sujeito mete a cara, 

não há terror que o aterre em jardim morto.

Movem-se as horas de infinito e novidades, 

que não cabem nas compotas das certezas.

O vento descabela de improviso as folhas,

forrando de beleza o caminhar,

(e há dor na rebentação dos ramos).

Os dias são bichos indomados, 

sem nome e classificação:

ninguém se socorre do sofrer por adivinhação,

nem pondo tranca nos abraços.

A vida entra em qualquer gruta, 

e cata o ente debaixo de pedra,

quando cisma de ensinar pelo padecer.

Também o sol invade o olho agoniado,

devolve o infeliz ao sonho, 

e transforma em liquidez seu sangue coagulado.

O certo é que nunca se sabe o que a manhã assina:

e a sorte é o não saber!







SUSTO I



Para Dalmo Saraiva, em memória



Ninguém sabe do último abraço.

Ou a última chance de abraçar,

dizer, desdizer, serenar a língua 

desalinhada. 

O toque último dos dedos, 

no apartar das mãos,

a sílaba final da última palavra,

no átimo do último olhar,

antes de o rosto virar, e o corpo, 

por último, dobrar a esquina. 

Antes de o amigo sumir de cena, 

acenar da janela, cerrar as pálpebras, 

trancar a porta, entrar no mar.

A aurora não espera o desperdício da hora.

Como fosse o derradeiro início, afoguear os laços,

louvar a leveza, buscar o perdão ou concedê-lo, 

sanar a separação das sílabas.

Que a morte vai saltear os desavisados.

Quando chega assim, sem indício, 

meu peito é incompletude: 

este fardo de fim sem prefácio. 







VISITA



Para meus amigos



O amigo esteve aqui.

Histórico e inédito feito a lua.

Veio com Deus e um vinho.

Vimos lugares invisíveis.

Gargalhadas singraram a noite ao infinito.

O amigo sempre devolve o chão quando a vida é desterro.

E se a dor me envelhece e o abismo me escolhe,

colho um amigo no jardim do socorro,

e não morro.







QUARENTENA



Que não me roubem mais os meus.

Nenhum Deus, com seus desígnios me leve à morte mais amores.

Perder não é verbo que se aprenda para sempre. Há retrocessos: 

quando o vento estremece a memória das lápides, 

o coração reacende a falta, 

e a dor retorna fresca, feito a do último dia.

Hoje estou amarga, e não me basta saber 

que de mim só se roubou a roupagem do amigo, 

que ele está comigo em transcendência e atração.

Nada que me console, por ora, entender o imaterial, 

o espírito e sua eternidade, 

a Física Quântica e o Plano Astral.

Hoje estou concreta e banal. 

Quero o corpo de minha mãe, 

suas mãos morenas de nervuras, 

veias saltadas, suas unhas longas e arredondadas, 

o cheiro do creme comum no seu cabelo grisalho, 

seus hábitos, seu hálito.

Não quero que me roubem mais os meus.

Por ora, a metafísica não me pacifica. 

Nem os encontros com meus mortos, nos sonhos esparsos, 

que deixam nas manhãs presentes de presença e paz.

Hoje eu quero mais:

colo, abraço, beijo, notícias, 

novidades, palavras e perfumes. 

Quero a textura de um encontro carnal.

A candura da pele na pele, sem desapego no alvorecer.

Que a saudade me pega, por ora, neste dia sem oração.

Dia de mortos e vivos. Todos vivos, todos mortos: 

a distância mata de novo os que se foram. 

Na solidão, morro de medo dos que irão.






O PRESENTE



Não tenho tempo a temer:

a vida desenraiza e planta de novo, 

em terras improváveis.

Empresta, toma, dá, revolve, devolve.

Nunca mata. 

Breve mofo enquanto no sol não se crê,

ou não se cria o sol em si,

quando em sangue ou sequidão a alma sai de si.

Nada morto.

Tudo se move: nem sempre a olho nu.

Invisto na visão do invisível, 

creio no incrível, meu credo, a criação.

Não tenho tempo a prever:

O medo já me matou sem eu morrer,

o amor já me deixou e eu não morri.

O segundo é meu norte, 

minha sorte é aqui.







ALMAS



Para Rosane



No teu abraço me reencontro com o mais antigo de mim:

o que perdi na primeira vida — ainda verme,

o colo da mãe primeva,

a parição do espírito no útero da caverna,

a paz esquecida no silêncio da Terra,

o que existia antes de Deus.







TRATADO SOBRE A MULHER MORTA



Prepara-se o crime aos poucos, sob a cegueira dos séculos:

desde cedo, o sangue das moças goteja na poça,

ofertada por fim às manchetes.

Aos poucos, antes de o útero inchar e o fluxo rubro jorrar 

a primeira vez pelas pernas,

e os pelos pontearem a carne verde do púbis.

Antes de o esperma inaugural macular de posse o prazer,

o sangue das moças vaza, invisível, pelos poros do poder.

Prepara-se o crime aos poucos, no quarto rosa.

Sob os babados dos vestidos, facas fatiam o horizonte em sim e não.

Antes de o buquê murchar e o arroz do altar apodrecer na prateleira, 

o sangue das moças segue sua angústia de mar.

Aos poucos, quando o corpo se deita para deixar:

e um deus delirante demarca bandeiras na terra possuída. 

Quando peitos promovem produtos, e a beleza se basta como atributo.

Escorre com o ciúme o sangue das moças:

da fala áspera, ao grito; do soco, à surdez consensual

(e o pedido de perdão, travestido de amor e permissão).

Prepara-se o crime aos poucos, definida a supremacia do falo.

No aconchego das escolas, no colo das mães, 

por entre as pernas dos pais e seus paus de pedra, 

escorre o sangue das moças.

Pelas vias das tevês, sob o jugo dos jornais, 

delegacias, religiões, tribunais.

Pelos trens ejaculando nos vagões seus homens descarrilhados. 

Das veias de todos nós, salta o sangue das moças estancado pelo algoz.







POEMA PARA MARIELLE FRANCO



Na calada da noite

calou-se a voz (tocaia).

Toque de recolher a vida.

Ávida, a mulher realçou rostos invisíveis:

despenteou a brisa, desabrigou mentiras,

soprou ventanias no marasmo.

Não a morte! Não há morte, 

só sementeiras.

Nenhum bem se aterra,

se o gesto fértil se espalha, 

e a língua é espada e espanto.

Nenhum carrasco tomba 

o canto indomável das sílabas,

nem turva o clarão do sorriso.

Não há terror que impeça 

o orvalho nos desertos.



[Poemas do livro Sobre o amor e outras traições. Patuá]

 

                  

 

 

 

 

 

 

 

 


Carmen Moreno. Poeta e ficcionista carioca, membro do PEN Clube do Brasil. Bacharel em Artes Cênicas e Licenciada em Educação Artística (UNIRIO). Publicou Diário de Luas (romance, Rocco), Sutilezas do Grito (contos, Rocco), O Primeiro Crime (romance policial, Rocco), O Estranho (contos, Five Star), De Cama e Cortes (poesia, UERJ), Loja de Amores Usados (poesia, Multifoco), Para Fabricar Asas (poesia, Ibis Libris), Sobre o amor e outras traições (poesia, Patuá). Integra mais de 35 coletâneas, dentre elas, Antologia da Nova Poesia Brasileira (Org. Olga Savary, Hipocampo), e Mais 30 Mulheres que Estão Fazendo a Nova Literatura Brasileira (Org. Luiz Ruffato, Record). Sua obra foi tema de dissertação de Mestrado pela Universidade Federal do Rio Grande/RS. Algumas premiações: Prêmio Casa da América Latina: Concurso de Contos Guimarães Rosa, Rádio França Internacional/Paris; Bolsa de Incentivo ao Escritor Brasileiro (poesia), MINC/BN, e Prêmio de Desenvolvimento de Roteiros Cinematográficos (MINC). Escreve o blogue Carmen Moreno em Prosa e Verso.