O senso comum costuma emitir juízos curiosos sobre certos assuntos e problemas tidos como ultrapassados pelos especialistas. O debate sobre a poesia brasileira contemporânea, por exemplo, continua impregnado por coordenadas e estereótipos de décadas atrás — o que muito dificulta a difusão de vozes poéticas que já não respondem aos pressupostos das gerações anteriores. Algumas conseqüências desse tipo de anacronismo são trágicas para o desenvolvimento criativo da atividade — por exemplo, a idéia bastante difundida de que o grosso da produção poética atual pecaria por encastelar-se em nichos beletrísticos, universitários ou "contraculturais", escamoteando a falta de assunto com pastiches pop/eruditos e emulações subservientes da tradição modernista. A partir de tal preconceito, muitos brandem os nomes de Drummond, Bandeira, Oswald, Cabral, Murilo, Jorge de Lima, Gullar, Haroldo e Augusto de Campos como fontes inevitáveis de todo e qualquer poeta brasileiro surgido entre os anos sessenta e noventa — com a possível inclusão de um Leminski ou de uma Ana Cristina César na lista de praxe — o que também contribuiria para o desconhecimento e a desvalorização dos novos, como que condenados a serem eternamente avaliados em função de seus "mestres". Na obra de certos poetas, entretanto, questões ancestrais como língua, nação, sociedade, forma e filiação poética parecem dar lugar a conceitos híbridos e transversais, onde a própria cidadania da escrita sofre alterações significativas. Em conseqüência deste processo, a poesia brasileira internacionaliza cada vez mais sua formação, e também vai se abrindo a outros discursos não propriamente literários ou artísticos; assim, sua genealogia textual já não pode ser descrita em termos de influências diretas, movimentos, grupos ou tendências, antes se remetendo a um espaço heterodoxo e mais maleável de enunciação. Como verá o leitor dessa resenha, três dos mais brilhantes talentos da novíssima geração enfrentam, cada qual à sua maneira, os contextos de produção e recepção advindos desse novo estado de coisas — sem deixar de apontar para esse novo espaço de relações possíveis, ou mesmo desejáveis, entre a poesia e seu público, para além das determinações categóricas da crítica acadêmica.

 

 

 

Desde o título até o último poema, Rilke Shake faz do humor e da ironia seus principais aliados. Não se trata, porém, de raso pastelão ou piscadela cult de autor para leitor mais ou menos informado, muito menos da simulação de intimidade ou identificação entre ambos. Algo mais profundo e contundente se insinua entre as rimas, gírias, fábulas e chistes do primeiro livro de Angélica. Se o grosso da poesia dos anos setenta preferia enterrar o poema a perder a piada — geralmente contada num fio de versos picotados entre a citação e a rima, sem maiores efeitos do que a leitura ligeira e risonha —, alguns já apostavam no pastiche, na reflexão conceitual e num certo hermetismo como estratégias de reinvenção e subversão da experiência (não mais elevada à categoria de "verdade suprema" do discurso poético, como parecia crer a voga da poesia marginal). Já o plano temático-formal de Rilke Shake oscila deliberadamente entre uma e outra tendência — em seus melhores exemplos, no decorrer de um mesmo poema, como em "autofocus" (o remordimento é algo / muito difícil / você me disse / mordendo / o próprio rabo) e "boa constrictor" (um crec crac / de ossos quebrando / uma lágrima escorrendo: / parecia amor / a falta de ar / o sangue subindo pra cabeça / onde toda a história começa). Nestes e em outros poemas, como "Casino" (você precisa / habitar as elipses / precisa dissecar / o sapo da poesia / — não abole o poço) ou o impagável "Entro na livraria do bobo..." (desfilam ante meus olhos / títulos maravilhosos / moribundos de tanto estar nas prateleiras ), Angélica demonstra a assimilação de um dos mais notáveis exemplos da segunda linha descrita acima: o poeta recifense Sebastião Uchôa Leite (cujas obras completas reclamam urgente reedição). Como Sebastião, Angélica ironiza os grandes ícones da poesia moderna em dardos sucessivos (leiam-se "não consigo ler os cantos", "l'enfance de l'art", "na banheira com gertrude stein" e "estatuto de desmallarmento"), menos por enfado ou ignorância do  que pelo saudável direito ao desacato, sem o qual nenhuma ordem ou tradição pode ser questionada em seus pressupostos. Felizmente, a verve da autora não se dirige apenas a poetas canônicos da modernidade, mas também sabe tirar proveito dos estereótipos sócio-culturais de nossa época: no cáustico "família vende tudo", é o discurso falido da classe média que sofre as conseqüências da opção de Angélica por uma poética corrosiva, alheia ao bom-gosto e ao repertório tradicional (família vende tudo / um avô com muito uso / um limoeiro / um cachorro cego de um olho (...) um sofá de três lugares / três molduras circulares (...) um número de telefone / tantas vezes cortado / um carrinho de supermercado).

 

Em outros momentos — mais leves, sem dúvida, embora nem por isso menos cortantes — é a releitura de Paulo Lemiski que prepondera.  Felizmente, porém, o mix de certos recursos consagrados pelo poeta curitibano não chega a resultar indigesto, como ocorre na maioria das inúmeras diluições de que foi vítima o autor de Caprichos & relaxos e La vie en close. O Leminski de Angélica, pelo contrário, é antídoto certeiro para qualquer enquadramento confessional ou literário de sua voz, prevenção contra o hermetismo e qualquer pretensão ao sublime, sublinhando o caráter transitivo e transitório dos seus suportes textuais (livro, indivíduo, sociedade). Nesse sentido, o tom geral do livro sugere uma comicidade sarcástica e impiedosa, onde a rima antes sublinha o ridículo que o salva — um tom que insinua, para além das relações convencionais das palavras e seus referentes, a possibilidade de gozo e desvio: doura tua tez / sob o sol dos trópicos e talvez / aprenderás a ser feliz / como as pombas da praça matriz / que voam alto / sagazes / e nos alvejam / com suas fezes / às vezes nos reveses. Por trechos como esse, onde a simplicidade não se recusa a pensar o incerto e o sutil, Rilke Shake é um livro cativante, inteligente, divertido e refrescante — como um bom trocadilho.

 

 

           

Também estreando em livro, Marília Garcia faz de seus 20 poemas para ouvir em seu walkman uma experiência poética rara e radical. Nos textos de Marília, tudo conspira para que o mistério se instaure como princípio (des)organizador de tudo: desde títulos como "Svetlana", "M.A." e "De dentro da caixa verde", passando por pessoas e lugares sobre as quais nem a autora parece estar segura, fiapos de enredos inconclusos, sentimentos ambíguos e sensações imprecisas, o poema parece querer seduzir o leitor apenas pelo prazer de despistá-lo. Nisso, contudo, não vai nenhum laivo autoritário ou ranço de pedantismo, pois a própria poeta é a primeira a admitir que não possui o controle da situação — mesmo que possa imaginá-la, narrá-la e torná-la pensável: talvez seja uma forma de / desespero, por ter perdido tudo (no / começo não era assim. / um minuto de espera e depois / o traço: um corvo negro / contava duas lendas), declara em "Ponto cego". A estratégia para tirar proveito dessa aparente insuficiência é aprofundá-la até os limites espácio-temporais do seu discurso, simulando tantas dúvidas quanto forem necessárias para que o sentido dissemine possibilidades: toda a vida uma ação real / para tornar real uma metamorfose — diz-se ao fim do excitante roteiro cinepoético de "Um carrossel na cabeça". Aliás, a maioria das peças que compõem o livro pode ser descrita como uma seqüência interpenetrável de pequenos roteiros, onde todos os fios que poderiam compor uma estória cronologicamente viável são trançados de modo a afirmar outra realidade — qual seja, a medida exata / para explodir o mundo / e fugir de tudo (idem). É assim que a carioca Marília entende que falar por imagens é a melhor maneira de dizer-se em movimento, sem necessariamente entrar em cena, como em "I. um filme" (a pergunta serve / para manter a horizontalidade / das coisas (...) leva tempo entender / de onde vem tanta palavra e qual / língua pode ser usada).

 

Acompanhando com sanha detetivesca seu próprio espaço de inscrição, o poema submerge em uma "arquitetura movediça" de signos e corpos estrangeiros, privilegiando a "montagem atrativa de idéias" (um conceito do cinema godardiano que Marília parece conhecer e aplicar em sua arte) às correspondências usuais de som e imagem, ciente de que ouvir o som de uma língua / não quer dizer algo tão / definitivo — o acento se / encaixa na outra língua e asfixia o espaço daquelas / palavras ("IV. tout arrive"), como se precisasse / de um impulso ou se dissesse / que hacen falta los subtítulos al hablar ("Do outro lado da tela"). E uma vez que ela sabe que precisa responder / mas talvez não entenda a pergunta, ou que talvez não responda / porque gastou o / mecanismo ("Linha 14"), o leitor é convocado a imiscuir-se nos meandros e vazios dessas micro-narrativas fílmicas cujo "arame invisível" também manipula, ensejando um movimento / disrítimico que / entremescla os dois níveis ("Carte orange"). Como bem salienta Aníbal Cristobo, é provável que esse leitor-cúmplice, ao estabelecer uma espécie de pacto sensível com o "inferno musical" de Marília Garcia, venha a fazer parte daqueles que vislumbram "outro gosto e um outro amor por observarem o quão maravilhosas e inexplicáveis e verdadeiras e diferentes podem ser suas vidas". Não seria mau negócio para as partes envolvidas.

 

 

 

Last but not least, resta falar do segundo livro do poeta paulista Ricardo Domeneck. Já em sua estréia (Carta aos anfíbios, de 2005), Domeneck chamou a atenção de muita gente pela originalidade de seus poemas, onde o lido e o vivido se questionam mutuamente, buscando dar conta de conceitos, imagens e vivências a meio caminho da contingência e do contexto poemático (daí, talvez, o caráter "anfíbio de sua linguagem). A maior parte de a cadela sem Logos é ocupada pelo poema-livro "Dedicatória dos joelhos", uma longa série de textos interdependentes que, segundo nos informa o autor, "cresceram por metástase". Tal processo, geralmente associado ao fenômeno de expansão e deslocamento de um tumor cancerígeno, é também um tropo retórico-jurídico, que lança à conta de outrem a matéria de acusação, como forma de obrigar certo interlocutor a confessar-se. Tomada a partir de tais definições aparentemente díspares, "Dedicatória de joelhos" pode ser lida como um longo e paciente esforço de vencer o silêncio do outro, ao menos ficticiamente "forçando-o" a presenciar o discurso poético a ele dirigido, num ímpeto / denotando o / centrífugo / o corpo público / que exibo como / palco fruto / da ansiedade / do remetente / o interno ao longo / da epiderme. A essa pulsão erótica passional, excessiva e irredutível ao "equilíbrio precário do mundo", alia-se outra, de vocação obstinadamente teórica e reflexiva, que procura liberar a linguagem poética da obrigação de testemunhar o fiasco do inesquecível através de algum lirismo confessional e/ou metafórico, preferindo ironizar a metafísica do belo e do sublime, a fim de pôr em / movimento as roldanas / da corpulência em / direção ao abstrato . Ou seja: não há lugar para nenhuma "nostalgia da presença" nem para nenhum "elogio da falta" na poesia de Domeneck. Em meio ao fluxo caudaloso de ditos aforismáticos e impressões fugidias, cada verso parece existir apenas como passagem ou fio condutor do sentido, não mais atrelado a oposições empobrecedoras entre o profuso e o conciso, subjetivo e objetivo etc. Afinal, se é verdade que tantos / ainda acreditam / no real como / resgate, ao menos o poeta sabe que o real é a / decoração do momento; percepção corajosa e desmistificadora, a partir da qual ele pode concluir, ainda que transitoriamente, um programa de ação para sua própria aventura: se o sigificado / reside no uso / do contexto / preciso encontrar outra / forma do insubstituível / sim / a sobrevivência exige / incoerência e cicatrizes. Tal é a busca obsessiva e intermitente de seu poema-livro, ao longo das setenta e sete peças que o compõem — autênticas provas de um "inquérito" ou "diagnóstico" pouco animador para leitores impacientes ou desprovidos de imaginação, mas revelador para aqueles que não temem desarmar-se de velhos esquematismos pseudo-analíticos, infelizmente tão usuais entre críticos e "especialistas".

 

Fecham o volume outra seqüência de textos, ou melhor, de "faixas", intitulada "Poema começando quando", e uma instigante prosa crítico-poética: "Composição como contexto". "Poema começando quando" evoca alguns dos melhores momentos do livro anterior, onde a experiência cotidiana desse D.J. profissional, fã de indie rock e professor de inglês se mistura à reflexão provocativa do leitor-autor de poesia, provando mais uma vez que, no universo criativo de Ricardo Domeneck, não há oposição entre escrever e viver: apenas "a saliva do narrador de histórias com a mesma transparência da saliva do ouvinte". Sobre sua obra até aqui, citem-se os seguintes versos à guisa de comentário geral: Algo amadurece à distância / mas aproxima-se aos / poucos e para poucos / antes de todos / perceberem que / do chão à copa / o espaço é da queda ("Décima faixa – 0:55"). Que o público abandone as tradicionais muletas da mídia e da academia para tornar-se digno de acompanhá-la.  

 

 

 

 

abril, 2007

 
 
 
 
Leonardo Martinelli. Poeta, compositor, guitarrista e crítico literário. Mestre em Literatura pela UERJ. Publicou Dedo no ventilador (Rio de Janeiro: Editora Bem-te-vi, 2005).
 
Leia mais em Germina
> Poemas de Angélica Freitas
> Poemas de Marília Garcia
> Poemas de Ricardo Domeneck