De Dentro da Caixa Verde


I


como o sulco da caligrafia

chegando toda semana. como

o pulôver vermelho

que veste agora (não era

a volta para casa, um consolo, nem

a limusine negra veio buscá-la

de outro poema)


uma noite que se estende

com os ruídos de um sono

ausente — e se você levanta num

entressonho, parece outra cidade, quando chega

a luz do dia muito antes da hora — não sei

em que mapa ficou leeds

nem aquele passeio de mãos dubitativas

em torno da praça.


 
II


de vestido amassado no pico

da montanha (o ponteiro dos segundos

rabisca o silêncio): — não sou

felice, sorria com calma, de dedos

trêmulos — é uma relação

virtual, eu vibro como esta estrada — olhos de gato

no escuro concreto, do banco

da frente nem suspeitava da perseguição. nem suspeitava

das vozes que vêm do oceano

(algum barco ainda aguarda

na enseada?)


 
III


sobre a mala

a caixa de chá (não o desejo

de contar os aviões partindo

na pista sobre o mar) na passagem tinha impresso

o retorno (temos os dias contados? para

onde vai? sua voz de

neblina no escuro)

 

 

 

 

 

Svetlana

 

na véspera de sua partida para

ny, emmanuel hocquard datilografa

um poema de george oppen

em sua máquina de escrever

underwood n. 3. é como svetlana querendo voltar

para barcelona aqui não fico

mais nem um dia dizia no café

com nome grego que

lhe fazia falta ver as coisas

invisíveis daquela cidade e seu marido

na contramão carregando

no braço o menino sem língua,

tentando alcançar o que

aparecia do outro lado do mar

se alguém ainda viria

para ajudá-los

  nesta época

do ano a tormenta não costuma

demorar (o poema era em inglês)

e tinham medo de se perder,

ela dizia, por isso a distância,

ritmo de degrau seguindo

cortado, por isso

 o modo de andar e

o ziguezague do avião sempre que saíam juntos.

tinham medo e todos os dias fazia

algo para evitar. depois queria

encontrá-lo na rua,

perdido, como um acidente:

cruza uma esquina e vê. desligou

a chamada na hora

precisa, a voz cortada outra

vez antes de seguir

pelas ramblas.

 

 

 

 

 

Escorpiões e a esquiva

 

pela quarta ou quinta vez

tenta dar uma cronologia: me

deitei e parecia um deserto aquela

areia salgada.

                    — mas estamos em méxico city, diz,

estamos no ponto mais próximo

da esquiva.

 

eles vêm de noite, no campo,

quando uma nuvem se forma

e tudo está perdido. rente ao chão.

me deitei e tratei de ouvir os ruídos

dos escorpiões

 

mas não havia ruídos,

só o vento e os clarões.

 

tratei de ouvir

o barulho da fábrica

mas não ouvia nada

(conhecer pode

ser destruir)

só um eco ou

algo que

se esquiva.

 

 

 

 

 

Classificação da secura

 

I

 

agora já é quase amanhã mas queria

dizer apenas que é muito

tarde: acrescentar quatro horas ao relógio

indica que já é depois. lá é sempre

depois. parecia um nome

italiano com aquele som ecoando e a

resposta em outra língua mostrava

a cor das linhas no mapa, "é lilás", para

não dizer algo preciso

para não terminar: com ela

saio cedo todos os dias. fico de

vez em quando escondido

no porto. tomarei

o transmediterrâneo e comerei

calçots,

 até chegar o instante antes

do instante, momento em que vê o relógio

e diz: não. já conhece todos os erros

do sistema e a retina derretendo

sempre que levanta

   para sair dali.

(precisão é o retângulo do degrau

inferior.)

 

 

II

 

alguém que não consegue se mover

e uma semana de vozes cortadas, deve

se acostumar aos movimentos em câmera

lenta, à descida pela escada em

espiral:

          recorta os sons de cada

quarto e apaga as perguntas que

mais detesta responder. como aquela

noite no ônibus, ruídos do rádio e

pedaços de frases atiradas,

sempre girando as horas.

  ver a paisagem

sem ela e precisar o tamanho da ausência

com poucos dados — sabe que as baleares ficam

do outro lado do mar, que custa chegar

anos depois e dizer. ergue os olhos para

fixar o que tem ali e não perder

de vista a secura.

 

 

 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 

Num dia branco

 

segura a borda da mesa com

o cabelo vermelho vamos

para a polônia

                   ver a neve

andava tão dispersa assim

ele nunca conheceu a família com ganas

de frio. sempre aquele

movimento

                    preciso ler outras

coisas a frase cortada

no mesmo ponto fresta de luz

onde fala uma gargalhada

assomada à janela quando o vê

do outro lado da rua procurando o

castelo.

          cabelo curto, segura a ponta

da mesa e mastiga as sílabas

em sua língua.

 

 

 

 

 

Apêndice a Num dia branco (com Lise Sarfati)

 

a cortina em ondas na

sala, semicírculos de luz

que cobrem

                   o chão, pouco a pouco

uma imagem recorrente: "dehors

maintenant..." mas não sabe, um

pedaço de terra cravado naquele

oceano e viver ali: seu nome

não vem no lugar do destinatário não

mais de 100 quilômetros de

escuta e a caixa do correio

quebrada pode deixar a

chave que o inquilino encontrará

tem olheira e casaco azul

os cabelos curtos, deitada no sofá

amarelo. todos falam alguma

língua eslava (sabe que perdeu alguém

para sempre). no fim do ano, vamos

cruzar o estreito. andava tão dispersa

assim pelo movimento ele

nunca

          viu a neve

 

 

 

 

 

So Membrane

(sobre os misunderstandings de Thom Yorke)

 

so many hélas, pensava

que era isso o que ele dizia

numa canção atômica

(na verdade

cantava tantas mentiras) mas

agora vai ser assim: por engano cartas urgentes

atravessavam o planeta e dão no museu

de tottenham court road,

perdidas. nem por isso disse

o que queria ao telefone, olhava

desconfiada enquanto falava

uma língua áspera demais

embora os caramelos derretessem

na boca com gosto

                          de bellotas

e a gargalhada no outro lado parecia mais um

filme de terror do que alegria espontânea

(mas o que era a alegria

depois de tudo?)

 

 

II

 

agora vai ser assim: subir a rua torta

com placas azuis ouvindo os gritos

de gol ou gritos de forca

porque não entende uma única

palavra.

            (ela me disse alguma coisa

                                                    dançando) e chegava

contando daquela noite em que seus dedos

abriam e fechavam, acontece que corria atrás da pessoa errada

tinha certeza de que ela falava mas o ruído na hora de dizer,

a linha do seu contorno, os pedaços de luz atirados

na parede. não sabia o que ela dizia (ela falou alguma coisa)

mas podia ser algo com os so many hélas de yorke ou então

com aquele filme da véspera.

 

 

 

 
(imagens ©oloderay)

 

 

 

Marília Garcia (Rio de Janeiro-RJ, 1979). Poeta, tradutora e editora. Publicou Encontro às cegas (Rio de Janeiro: Moby Dick, 2001) e 20 poemas para o seu walkman (São Paulo/Rio de Janeiro: CosacNaify/7Letras, 2007).