©regina lustosa 
 
 
 
 
 

 

Janeiro de 1986: em frente ao Teatro Municipal do Rio de Janeiro, parado à espera do sinal verde para pedestres, notei, ao meu lado, o poeta a quem na semana anterior eu assistira em um encontro de escritores na pequena Jardinópolis, interior de São Paulo. Leonardo Fróes passou feito um furacão — com Roberto Piva, Uilcon Pereira e outros — pelo tal encontro. Eu o vira apenas durante a palestra, no domingo pela manhã, quando falou do "beija-flor morto dentro da mala". Motivado pela enorme coincidência, abordei o poeta.

 

Passaram-se mais de quinze anos e foram muitos reencontros. Nesse período, conheci os livros anteriores e acompanhei atento a produção que se seguiu: Argumentos invisíveis e Vertigens, além de Um outro: Varella e traduções importantes, como Middlemarch (George Eliot), Trilogia da paixão (Goethe) e Triunfo da vida (Shelley), para citar as mais recentes. Mais que poemas vibrantes, cheios de vida e originalidade, plenos e luminosos como um fruto maduro, pude aprender a decência que rege esses versos, o dono dessa ventania harmônica de erudição e simplicidade. Leonardo Fróes não circulou nos movimentos da onda, não freqüentou as antologias badaladas, nunca esteve na moda porque optou pelo mato, não procurou fama, aplauso, mídia, dinheiro. Recolheu-se em Petrópolis e despiu-se de toda ambição que pudesse agredir seus valores, moldado por uma necessidade pura e intensa de integração ao mundo natural. Preservou-se um poeta essencial, poeta desde a alma, em todos os gestos, poeta que carrega a cabeça erguida, caminha lépido e tem bom fôlego, é montanhista amador e andarilho profissional. Acorda cedo, toca as plantas com curiosidade, cheira a flor se necessário ou atraente. Não resiste a cachoeiras. Não tem medo de água fria. Na tradução, interessa-se por pedreiras como Faulkner e Malcolm Lowry. Sua poesia, vencedora do Prêmio Jabuti em 1996, agrada quem é do ramo, mas ainda é pouco divulgada. "Poetas, seresteiros, namorados: correi!" Entrem nas livrarias e exijam um dos melhores poetas brasileiros contemporâneos. Depois subam a serra! No beco sem saída da Machado de Assis, sob um frondoso jasmim-manga, um jovem de cabelos nevados os receberá falando de um trabalho qualquer das formigas na tarde anterior. E mudará para sempre suas vidas. [Ricardo Lima]

 

 

 

 

 

 

Alberto Pucheu - Leonardo, o seu último livro tem um título relacionado às artes plásticas, Quatorze quadros redondos. Muitos de seus poemas também são essencialmente visuais, e você chegou a cursar a Escola de Belas Artes. Você poderia falar sobre essa relação estreita da sua obra com a pintura?

 

Leonardo Fróes - A pintura é um capítulo especial na minha vida. A arte que eu mais admiro é a pintura. Adoro pintura a óleo. Um dos maiores elogios que eu senti ter recebido na minha vida foi de uma moça que leu um poema meu e comentou: "olha, eu adorei, achei o poema tão bonito, parece um quadro, a gente consegue ver as imagens". Eu passei os meus anos de aprendizado na Europa como rato de museu, não saía de dentro deles, era o primeiro a chegar, logo que as portas abriam, e o último a sair. Eu sempre gostei muito de pintura, mas nunca quis ser um artista plástico. Só fui fazer porque queria ser historiador da arte. Quer dizer, trabalhar com artes plásticas, mas já tendo como instrumento a palavra. Não chegava a ser um sonho, mas era meu projeto de vida naquele tempo. Na verdade, eu estava querendo encontrar uma profissão, todos os meus amigos já estavam encontrando as suas, iam ser diplomatas, médicos, engenheiros. E eu queria ser poeta, escritor, e sabia que não poderia viver disso. Então, pensei que o meio auxiliar para viver, que mais me agradava, seria me dedicar à História da Arte.

 

O engraçado era que queria ser poeta, mas, naquele tempo andava muito mais com pintores do que com escritores. Na verdade, não consigo me lembrar de nenhum amigo, daquela época, que fosse escritor. Eu comecei a trabalhar num jornal como crítico de artes plásticas. E tinha uma batelada de amigos artistas plásticos. Vivia dentro de ateliês, vendo-os trabalhando, misturando tintas, fazendo gravuras, e isso foi muito importante para a minha formação. O Luiz Áquila é meu amigo desde aquele tempo. E havia os meus amigos da Escola de Belas Artes, um grupo de pintores figurativos. Dessa turma, o pintor mais bem-sucedido é o Júlio Vieira, que é um pintor muito curioso, muito interessante. Eles gostavam de desenhar ao vivo, pintar cenas reais. Teve um tempo em que a onda deles era ir ao mangue, onde ficava a zona de prostituição daquela época, lá na Presidente Vargas, um quarteirão imenso de casas de prostituição, uma ao lado da outra. E eu ia junto, ficávamos lá bebendo cerveja, eles com álbuns de desenhos. Aquela época era o período da pintura neoconcreta, geométrica, e estava chegando a moda das pinturas abstratas livres, e os pintores com quem eu convivia, tirando o Luiz Áquila, que já começou abstrato, estavam na contracorrente e eram chamados de conservadores.

 

 

Ricardo Lima - Você concluiu o seu curso de Belas Artes?

 

Leonardo Fróes - Não, porque eu fui chamado para trabalhar em Nova York, e depois viajei para a Europa. Eu iria trabalhar em Nova York junto com o Mário Faustino, criando verbetes para um dicionário inglês-português que estavam fazendo por lá. Mas o Mário morreu durante a viagem de ida, num acidente de avião sobre os Andes. Ele queria ir para lá como correspondente do Jornal do Brasil, também, e então ele atrasou a viagem em uma semana, para resolver as coisas. Eu tinha acabado de me estabelecer em Nova York, quando chegou a notícia do acidente, que me deixou apavorado. Eu só o vi uma vez, na casa dele, quando nos encontramos para discutir a viagem. Era mais velho que eu, e já estava muito prestigiado. Era um crítico muito bom, e fazia parte do grupo, junto com o Ferreira Gullar e o Reinaldo Jardim, que editava o Suplemento Dominical do Jornal do Brasil, que era o porta-voz do movimento neoconcreto no Rio de Janeiro. O Jornal do Brasil era o jornal mais influente da época e tinha passado por uma reforma gráfica famosa, feita pelo Amílcar de Castro. Inclusive, o Suplemento, que era muito bonito, graficamente inovador, com coisas de cabeça para baixo, muito espaço em branco. Mas eu admirava o Suplemento como coisa gráfica, aquilo não influenciou o meu texto de forma alguma. Eu estava muito longe daquela coisa concreta-neoconcreta. Aquela não era a minha via, eles eram muito gráficos nos seus textos, e eu queria fazer poesia com palavras. Então, eu não sentia nenhuma afinidade com eles, o que era uma posição muito delicada, porque o que eles estavam fazendo era a moda naquela época, eles ocupavam um espaço de vanguarda, e achavam que escrever em versos era uma coisa passadista. E era escrever em versos que eu estava tentando fazer, tentando aprender. Eu acreditava que a poesia tinha que passar pela tradição, não queria romper com a tradição de forma alguma. Não digo a tradição do soneto e coisas afins, o meu barato era os mestres modernistas, como eu chamo até hoje: Oswald, Mário, Drummond, Murilo Mendes. Eu lia tudo o que aparecia, mas, desde essa época, desde garoto, sempre tive uma preferência muito marcada pela literatura do passado. Sou um leitor de clássicos e quase analfabeto em literatura contemporânea.

 

 

Sergio Cohn - Mas você sempre foi visto como uma espécie de beat brasileiro...

 

Leonardo Fróes - É engraçado, é muito comum ouvir falar da influência deles na minha poesia, mas eu não vejo muito. Eu já lia os beats desde os anos 1960, mas não vejo muita semelhança na minha forma de escrever com a deles. Essa idéia ficou muito marcada pela minha participação naquela antologia que a LP&M lançou nos anos 1980, o Alma beat, onde escrevi um ensaio. O livro foi um sucesso, e muita gente conheceu meu nome por ele. Eu até percebo uma ligação da minha poesia com a poesia de Gary Snyder, com a sua relação com a natureza, mas talvez seja mais essa coisa de vivência. Acho que a maior identificação que tenho com os beats é de visão de vida. Quando voltei da Europa, eu também fui pra estrada, comecei a viajar de carona, fazer aquelas coisas todas. A sua vida toma um outro sabor, a verdade é essa. Você pode ser um escritor, uma pessoa que tem seus momentos de gabinete, de estudo, de reflexão, e ser uma pessoa cheia de experiências na vida. A influência que eu vejo no meu primeiro livro, onde eu estava realmente aprendendo, foi dos poetas modernistas brasileiros. Eles eram os meus professores.

 

 

SC - E havia algum projeto estético na sua poesia?

 

LF - Não, acredito que não. Eu nunca tive uma reflexão teórica prévia ao poema, a não ser essa que eu mencionei agora há pouco, de acreditar que eu tinha que continuar com a tradição de escrever com palavras, em versos. Porque se tivesse que fazer qualquer outro tipo de manifestação, poemas gráficos ou coisa do tipo, então aprenderia a pintar, que era uma coisa que acreditava que poderia fazer. Então, esse era o único postulado teórico. Eu sempre escrevi, e até hoje é assim, por impulso, da maneira mais espontânea possível. Até chegar ao excesso, e isso, sim, vem principalmente dos beats, que, se porventura tivesse a tentação de mexer uma vírgula do poema que estava escrevendo, jogava-o fora. Era aquela idéia que vinha do zen de first idea, best idea.  Eu escrevia à máquina, sempre escrevi à máquina, desde garoto, e queria que o poema saísse inteiro, sem que tivesse que ser mexido depois. É uma tentação que a gente vai tendo, com o tempo, que o momento poético que a gente vive seja tão forte, que se torne mais importante que o resultado, que o objeto recorrente daquele momento. O poema "Precinpicípio", por exemplo, passou por isso. As palavras vieram fragmentadas, e eu achei legal que fosse assim. Então, era esta vontade de querer gravar a velocidade da mente, das suas tentações. Mas acho que nada disso era uma postura teórica muito forte. São coisas que, analisando, hoje, o que aconteceu, eu consigo ver, mas nunca tive uma concepção teórica prévia à construção do poema.

 

Agora, houve uma época de ruptura. Aliás, tem um poema, o "Foi queimar livros velhos e achou na mala um beija-flor", que reflete um pouco essa situação, de dizer "essa literatura não quer dizer porra nenhuma, vou jogar essa porra toda fora, eu só escrevo por vaidade, isso é uma grande bobagem". Tive esse momento, aí por volta dos meus trinta, trinta e poucos anos. Eu queria romper com a literatura em geral. Depois, acordei da crise, e falei, "se jogar a literatura para o alto, o que vai te sobrar?". Muito pouca coisa, porque, na verdade, isso é uma âncora que te liga à terra. Uma coisa que enche teus momentos de prazer, satisfação. E hoje, depois de passar por isso, e sendo um pouco mais maduro, eu digo: é o meu ofício, o meu artesanato, aquilo que estou aprendendo a fazer, que acredito, talvez, um dia conseguir.

 

Não sou capaz de dizer tudo sobre a minha obra. O leitor vai observar coisas que me escapam. Esse é o momento em que a literatura passa a existir, quando ela significa alguma coisa para alguém de fora, que não o autor. Na verdade, a vivência é muito importante pra mim. Vou te dar um exemplo banal, mas que acho significativo: eu não me tornei um pintor de quadros, mas me tornei de paredes. Eu adquiri um certo know-how, faz muito tempo que pinto essa casa. E faço com dedicação de artista. As pessoas acham que qualquer um pinta uma parede de branco. Pintar uma parede à cal requer uma habilidade. Primeiro, não pode borrar cal em você. Existem tonalidades de branco muito diferentes, existem qualidades, sobreposições, tem a fatura da pintura. A cal é a tinta mais saborosa, tem o preparo da tinta. Então, mesmo que você só pinte de branco, é uma arte. Uma técnica que você tem que dominar. Isso, pra mim, é vivência. É claro que, quando eu termino um dia de pintura — e aqui, acho que estou encontrando o que eu queria dizer — daí, eu vou abrir o meu Goethe, o meu Schiller, vou ler um poeta alemão, cheio de prazer. Eu acho que estas duas coisas são inseparáveis para mim, hoje, o prazer literário do prazer da vivência, seja pintando a casa, seja plantando uma árvore, seja subindo uma montanha.

 

 

RL - Vamos falar um pouco sobre a sua relação com a natureza. Na sua escrita há um ritmo que parece ser menos monótono, próximo de uma natureza bucólica, do que de uma natureza tropical, selvagem, agressiva.

 

LF - Gostei foi dessa coisa que você falou, que os meus ritmos nunca são monótonos. Isso eu acho muito importante. Por exemplo, não sei o que é tédio. É um sentimento que não conheço. Sou capaz de demorar o tempo que eu quiser para dar um passo. As pessoas são muito urbanizadas, não agüentam mais de meia hora no trânsito. Tanto que os veranistas que sobem para Petrópolis começam numa vida agitada. Vão para shoppings, vêem tv. Não conseguem se acostumar com essa outra realidade que é conviver com a natureza, permanecem buscando uma vida urbana. Eu não tenho nada disso no sítio, a não ser o ritmo nunca monótono da natureza. E entro numa outra esfera. Sou capaz de passar um dia inteiro vendo passarinho no mato.

 

Eu não sei mais o que sou eu e o que é a natureza. Acho que eu sou a natureza, ou a natureza me é. A minha imersão é tão grande, e já são tantos anos que eu vivo no meio das árvores, animais, dos rios e das montanhas, que não tenho mais essa noção que sou uma coisa distinta deles. Que a natureza é outra. Acho que eu sou parte disso, sinto isso de uma maneira carnal, corpórea. Muitas vezes, por exemplo, diante de uma árvore, não sei mais quem é árvore, quem é homem. É aquela famosa história do Jung, de Memórias, sonhos, reflexões, um livro primoroso, em que ele fala que, quando menino, ele costumava sentar em cima de uma pedra. E ficava horas, ali, meditando. E chegava uma hora que ele não sabia mais se ele era um menino sentado numa pedra meditando, ou se era uma pedra embaixo de um menino pensando.

 

Talvez o grande problema urbano contemporâneo seja exatamente este: que a pessoa vivendo só a experiência urbana — a cidade é um grande palco — está em cena o tempo todo, numa grande e dolorosa representação, ela começa por achar que a natureza é algo lá fora; aqui, sou eu, o drama humano, e lá, a natureza. E acha que aquilo é um caos, e não percebe a harmonia, a beleza que o integra àquilo ali. Há um tempo atrás, num rio onde eu costumava tomar banho, eu ficava totalmente largado. Naquele barulho, naquele rumor musical das águas. E um dia veio uma senhora da cidade, obviamente da cidade, com crianças que ficaram extasiadas, criança adora água, e vieram em minha direção, e a mulher ficou gritando pra elas, sai daí, tem cobra, tem cobra. Eu nunca vi uma cobra naquele lugar. Só porque era algo estranho para ela, ela viu aquilo ali infestado de perigos. Eu acho que é muito isso. Você passa a achar que a natureza é hostil. Você não compreende que você é a natureza — você é um produto da natureza como qualquer outro — não pode se separar dela, porque, senão, não tem saúde mental possível. Se você acha que a sua mãe é uma coisa hostil a você...

 

 

AP - A natureza é a sua religião?

 

LF - Ah, sim, como a de Goethe. E a de Spinoza. A natureza, como a poesia, é uma ameaça, ela pode aniquilar algo que é seu para fazer você se transformar em outra coisa. Isso é Goethe, é o seu lema, "morrer, tornar-se". Ele diz que é sempre isso, uma permanente mudança, a vida é metamorfose. Você tocou num ponto que é interessante, pois ao longo da vida estamos sempre morrendo, a gente não morre de uma vez. Muitos dos meus personagens, por exemplo, vão morrendo. Aquele jovem pretensamente sofisticado que fui, indo ao museu de lupa, com cadernos de anotações e livros de História da Arte, está morto e enterrado. Eu entro de cabeça na natureza como no amor. Não dá pra você amar pela metade. Ou sim, ou não. Não pode ficar com panos quentes. Pode durar meia hora, mas tem que ser entrega. Eu sou obsessivo, completamente obsessivo. Quando eu entro na obra de um autor para traduzi-lo, como entrei em Swift, George Elliot, ou em Faulkner, quero saber tudo sobre o autor, ler todos os livros, sua biografia, cada detalhe de sua vida, de seus contemporâneos, suas ligações com o tempo. E eles viram mais um amigo para a minha coleção. Sartre tem uma frase que acho muito bonita, "mudei no interior da minha permanência". Há um dado básico da sua mônada que continua contigo. Você vai variando de personagens, todas as experiências são muito ricas.

 

 

SC - E essa morte é eterna? Quer dizer, por um tempo você viveu um outro Leonardo, um ermitão isolado no meio do mato, e foi de novo voltando para o convívio urbano, agora parece ser uma junção desses dois Leonardos, o intelectual e o naturalista.

 

LF - A casa é uma delícia, fica em Secretário, um bairro distante da cidade que, na época, era praticamente só mato. Ficamos morando lá alguns anos, até que os meus filhos cresceram, entraram em idade escolar e decidimos voltar a morar na cidade. Hoje, eu acho que as duas experiências, a de estar em um museu e a de estar na mata, são importantes pra mim. Quanto mais coisas você vive, melhor. Porque se você ficar só na mata, você vai virar um bicho estranho, talvez quase impossível para o convívio social. Se você ficar só no museu, você vai ser só um chato, um pedante distante da vida.

 

Lá em Búzios, tempos atrás, eu saí para dar uma volta no quarteirão de casa, só de sunga e sandália, totalmente desprotegido. E o passeio estava tão agradável que fui me afastando demais do meu refúgio. Comecei a entrar em um lugar estranho. Uma hora dei com uma trilha que entrava para o mato, e me senti atraído por aquilo, e segui por ela. De repente, para meu espanto, de um lado e de outro da trilha comecei a ver caveiras de boi, cabeças inteiras, com chifres, costelas, restos de pelo, de pele. Era macabro e ao mesmo tempo muito bonito, porque a vegetação já se confundia com aquele troço que parecia estar encostado ali há muito tempo. Às vezes havia flores dentro das costelas, e fui andando meio horrorizado com aquilo, mas entrando cada vez mais. Quando eu estava bem longe no mato, uma voz qualquer entrou na minha cabeça e disse, "se você continuar, não tem retorno". E eu obedeci, porque acho que voz que se ouve é para ser ouvida. E disse, "então vou voltar". Minha curiosidade aqui vai ter um limite. E voltei. Depois, no dia seguinte, descobri o segredo daquela história: era um açougue e, nos fundos, um abatedouro clandestino; eles matavam, escondido, e depois jogavam as ossadas nos caminhos que eu percorri.

 

Isso para mim quer dizer o seguinte: se você ficar só na mata, não tem retorno, você não vai querer voltar pra sociedade dos homens. Vão embora todos os limites que ela lhe impõe, que você tem que respeitar. Os limites sociais da comunicação, as preocupações sociais. Você vai virar um outro bicho. Como se você saísse andando, como esses viajantes, que chamam aqui de caminheiros, que vão pelas estradas. Você entra em outra dimensão. Então, se você consegue conciliar duas coisas, o prazer artístico com o prazer da vida, é muito bom, só acrescenta.

 

 

RL - E o que é prazer artístico para você agora?

 

LF - Por muito tempo eu não soube o que era a experiência poética. Hoje, tem sido para mim uma via de conhecimento, como qualquer outra. Não é pelo valor do objeto que ela comunica, mas por aquela espécie de transe que você passa, quando está com a atenção muito concentrada e vai recebendo uma série de informações, que vêm de lá de não sei onde, que mostram o seguinte: que sua personalidade, o que você acha que é, é, na realidade, sua arma de defesa. Na hora em que você se entrega a uma experiência, ela se fragmenta com a maior facilidade. E se descobre que, na melhor das hipóteses, o que chamamos de personalidade não passa de um lapso de memória. Quando se sobe uma montanha, por exemplo, e se faz um extremo esforço além das possibilidades físicas de resistência, aquele arcabouço mental que achamos que nos constitui, e que na verdade são memórias ou preocupações, ou o conjunto das duas coisas, desaparece. Só se pensa na sobrevivência, em chegar lá com um mínimo de água, pois, para não ficar mais pesado, não se pode beber muita água. Dá uma sede enorme, uma fome enorme, mas o desejo de chegar ao cume também é enorme, e os limites são testados. E, aí, acho que a personalidade fica completamente amortecida. Como se milagrosamente ela pudesse ter deixado de existir. Claro que no dia seguinte ela vai amanhecer, todos os macaquinhos do cérebro vão incomodá-lo, novamente, mas já conhecemos essa experiência ameaçadora que faz com que a personalidade vá para o espaço. Acho que o momento poético é exatamente igual a subir uma montanha. É o momento em que se atinge a plenitude do universo.

 

 

SC - Isso me parece uma coisa muito próxima do satori, da iluminação budista, de uma experiência mística...

 

LF - A palavra misticismo às vezes me incomoda um pouco porque está carregada, como se fosse uma ofensa. Qualquer poeta sabe que a razão tem um limite. Ela é um instrumento muito bom, dá coordenadas, ferramentas de trabalho, mas não explica nada. A realidade é muito mais complicada do que a razão apreende. Então, isso que freqüentemente se chama de místico, não é nada místico. São outras facetas da realidade que você vai descobrindo pouco a pouco. Como a teoria da cebola, que eu formulei, alguns anos atrás, que são camadas. Não sei se vocês já tiveram a curiosidade de abrir delicadamente uma cebola. São camadas superpostas, você tira uma, tira outra, tira outra, e de repente você chega a lugar nenhum. Uma cebola não tem miolo, caroço no centro. A realidade pra mim é isso, uma superposição de fatias, de cascas, de camadas, que a gente tem que ir despindo para não chegar em lugar nenhum. E esse lugar nenhum é maravilhoso. A cebola é uma fábula.

 

 

 

 

março, 2006
 
 

(Entrevista publicada na revista Azougue, número 8 | Rio de Janeiro: Azougue Editorial, 2003: e em Azougue 10 Anos, com organização de Sergio Cohn | Rio de Janeiro: Azougue Editorial, 2004, volume 1. Aqui reproduzida com a autorização da revista)

 
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Leonardo Fróes, poeta conhecido por suas atividades na imprensa e como ensaísta e tradutor dos mais respeitados, já transpôs, para o português, livros de William Faulkner, George Eliot, Malcolm Lowry e Lawrence Ferlinghetti, entre outros. Montanhista e naturalista amador, traduziu também livros de especialistas em ciências da natureza, como o ornitólogo Helmut Sick e o mirmecólogo Edward O. Wilson. 
 
Algumas Publicações: 1) Poesia: Chinês com Sono | Clones do Inglês (Rio de Janeiro: Editora Rocco, 2005); Vertigens (Rio de Janeiro: Editora Rocco, 1998) e Argumentos invisíveis (Rio de Janeiro: Editora Rocco, 1995) — este, ganhador do Prêmio Jabuti de Poesia, em 1996. 2) Tradução:  Contos Completos, de Virginia Woolf, (São Paulo, Editora Cosac Naify, 2005); Esquetes de Nova  Orleans, de William Faulkner,  (Rio de Janeiro: José Olympio, 2002); O triunfo da vida, de Shelley  (Rio de Janeiro: Editora Rocco, 2001) — tradução e ensaio; Trilogia da paixão, de Goethe  (Rio de Janeiro: Editora Rocco, 1999) — tradução e ensaio; Panfletos Satíricos, de Jonathan Swift (Editora Topbooks  1999); Middlemarch, de George Eliot  (Rio de Janeiro: Editora Record, 1998) — trabalho que  lhe rendeu o Prêmio Paulo Rónai de Tradução, em 1998).  Também é dele a compilação de histórias e lendas advindas da tradição oral do Oriente, Contos orientais (Rio de Janeiro: Editora Rocco, 2003) e a  biografia do poeta Luiz Nicol Fagundes Varella, Um outro. Varella (Rio de Janeiro: Editora Rocco, 1990). 
 
 
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Alberto Pucheu nasceu no Rio de Janeiro, em 1966. É escritor e professor de Teoria Literária da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Publicou os livros de poesia Na cidade aberta (Rio de Janeiro: Editopra U.E.R.J, 1993); Escritos da freqüentação (Rio de Janeiro: Editora Paignion, 1995); A fronteira desguarnecida ( Rio de Janeiro: Editora 7Letras, 1997); Ecometria do silêncio (Rio de Janeiro: Editora 7Letras, 1999); A vida é assim (Rio de Janeiro: Azougue Editorial, 2001); Escritos da Indiscernibilidade (Rio de Janeiro: Azougue Editorial, 2003). É o autor de Guia conciso de autores brasileiros (Rio de Janeiro: Fundação Biblioteca Nacional, 2002), com Caio Meira.  É o organizador de Poesia (e) Filosofia, por poetas-fiósofos  em atuação no Brasil  (Rio de Janeiro: Editora 7Letras, 1998), com a participação de Adélia Prado, Alberto Pucheu, Antonio Cicero, Fernando Santoro, Marco Lucchesi, MD Magno, Orides Fontela e Rubens Rodrigues Torres Filho. Traduziu Tagore, Rabindranath. O Coração de Deus (Rio de Janeiro: Ediouro, 2004), poemas místicos. Mais em seu site.
 
 
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Ricardo Lima nasceu em Jardinópolis (SP), em 17 de novembro de 1966. É poeta e jornalista. Sobrevive em Campinas e vive em Morungaba (SP). Publicou Primeiro segundo (São Paulo: Arte Pau-Brasil, 1994),  Chave de ferrugem (São Paulo: Nankin, 1999) e Cinza ensolarada (Rio de Janeiro: Azougue, 2003).  Em breve,  sai,  pela Azougue Editorial, seu livro Impuro silêncio. Mais em  Crítica&Companhia.

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Sergio Cohn nasceu em São Paulo, em 16 de abril de 1974, e desde os 25 anos, mora no Rio de Janeiro. Editou, entre 1994 e 2004, a revista literária Azougue e, em 2001, criou a Azougue Editorial. É autor dos seguintes livros de poemas: Lábio dos Afogados (São Paulo: Nankin Editorial, 1999); Horizonte de Eventos (Rio de Janeiro: Azougue Editorial, 2002) e O Sonhador Insone (Rio de Janeiro: Azougue Editorial, 2006). Atualmente, mora no Horto, com Araci e Leo. Saiba mais, em Azougue Editorial e, em breve, no site do autor,  em construção.

 

 

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