Ricardo Lima - Desde seu primeiro momento, a poesia de Roberto Piva se distingue pela originalidade. Vemos influências: de Dante aos beats, passando por Blake, Rimbaud e os surrealistas. É possível apontar alguma "filiação", alguma continuidade na tradição literária brasileira?

 

Alcir Pécora - No Brasil, gostam muito de filiar os poetas, e os poetas surpreendentemente gostam muito de ser filiados. Em vez de angústia, orgulho da influência. Poesia de tributo. Há um monte de poeta que se filia ao Piva, com ou sem a anuência dele. Não me parece que, entre esses seguidores, haja nenhum citável. Ele trabalha no limite, no excesso, o que significa que é fácil imitar algum eventual cacoete ou traço secundário (como o propalado "surrealismo"), mas é dificilimo imitá-lo nas virtudes. De qualquer modo, há os seus companheiros de viagem, tais como alguns dos relacionados por Carlos Filipe Moisés e Álvaro Alves de Faria na antologia da "Geração 60", mas, mesmo aí, não são tantos os que guardam algo em comum com a poesia do Piva.

 

 

RL - Nos anos 60, a poesia brasileira tem alguns modelos de forte expressão, como o verso enxuto de João Cabral, a novidade concretista e a poesia de resistência, com temática social. Piva não se filia a nenhum deles. Você acredita que ele inaugura algo novo em nossa literatura?

 

AP - Esses eixos que refere tiveram maior repercussão em São Paulo em função do Fla X Flu entre o sociologismo uspiano e o concretismo. Mas algumas das melhores vozes da poesia brasileira estão fora desse esquema meio caricato, a começar por Drummond; mas citaria ainda Jorge de Lima, Murilo Mendes, Mario Faustino, Hilda Hilst, etc.

 

 

RL - Nos últimos 40 anos Piva publicou pouco, com grandes intervalos. Livros pequenos por editoras pequenas. Ao mesmo tempo, é figura conhecida na literatura brasileira desde seus primeiros livros. Esse hiato, esse silêncio, se deve à incompetência do segmento editorial ou à cegueira da crítica?

 

AP - O mercado editorial brasileiro é quase ridículo. Retiraria o "quase" se não fosse sentimental. Afora uns poucos profissionais do ramo, o resto é coisa de amador, de simples reprodução do esquema blockbuster internacional, e ainda lance de ocasião para obter alguma verba governamental. A crítica está em vias de extinção, trocada pelo colunismo social da grande imprensa ou dos pequenos sites: em matéria de crítica, ao menos, a ruindade é democrática. Mas isso explica menos o silêncio em relação ao Piva do que o alarde em torno de tanta porcaria que passa por grande literatura. Uma linguagem nova não se pode dizer na antiga ou partilhada por muitos. O estranhamento, a dificuldade, mesmo a hostilidade existem necessariamente nesse contato.

 

 

RL - Homossexualismo, drogas, cultos profanos, desregramento, Contestação e rebeldia. Essa temática marginal, presente na obra e no comportamento, contribuíram para um "boicote" ao seu trabalho? Essa mesma temática, explorada pela beat generation, fez de seus autores os mais cultuados dos Estados Unidos.

 

AP - A crítica brasileira, como a sociedade brasileira, e, em especial, a paulista, é provinciana e pudica. Certamente, a violência profanatória - essencial na poesia do Piva -, foi um componente que teve um custo na sua recepção. Mas não é o que mais importa. O que disse antes tem mais capacidade explicativa, isto é, toda nova linguagem é basicamente estranha ou hostil à linguagem pública já partilhada e tende a levar o troco, por meio do apagamento.

 

 

RL - Na ocasião do lançamento do primeiro volume das obras reunidas, Piva disse que um jornal de grande circulação mandou um jornalista entrevistá-lo e, para seu espanto, o repórter confessou nunca ter lido um poema seu. Mesmo assim, sabia da importância do autor e por isso estava lá. Piva venceu pela insistência, ou seja, depois de quarenta anos de poesia, mesmo incompreendido, ele é respeitado? Ou não, já que um repórter despreparado também é sinal de boicote?

 

AP - É preciso definir "respeito", no caso. Há respeito no sentido de reconhecê-lo como uma figura cultural da cidade, que aliás tem poucas. Morto Haroldo de Campos, cuja energia se desdobrava em muitos, de poeta a petista, passando por crítico, tradutor, animador e performer multimídia, essa carência fica mais notória. Mas se tiver de entender "respeito" no sentido de reconhecimento da relevância de uma interlocução efetiva com sua poesia, há pouco ou nenhum. A poesia dele ainda é de poucos e raros. O tal repórter é apenas um caso típico.

 

 

RL - A poesia de Roberto Piva tem seguidores?

 

AP - Como disse antes, seguidores não faltam na poesia brasileira. Dê-me um poeta, e eu lhe darei 10 seguidores. Mas nenhum muito interessante, claro. Poesia de seguidor, por definição, é irrelevante.

 

 

 

outubro, 2005
 
 
 
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Alcir Pécora é professor livre-docente de literatura na Unicamp, onde leciona desde 1977. Autor de estudos a propósito de literatura colonial brasileira, e, em particular, do sermonário do Padre Vieira. Crítico e colaborador de jornais e periódicos científicos. Entre suas publicações, destacam-se: Teatro do Sacramento (Edusp/Editora da Unicamp, 1994); Máquina de Gêneros (Edusp, 2001);  As Excelências do Governador (Companhia das Letras, 2002); Rudimentos da Vida Coletiva (Ateliê, 2003). Organizou dois volumes de Sermões (Hedra, 2000/2001), além das antologias A Arte de Morrer (Nova Alexandria, 1994) e Escritos Históricos e Políticos (Martins Fontes, 1995), todos a propósito da obra de Vieira. Foi curador da edição de vários lançamentos da Editora Martins Fontes a respeito de autores italianos dos séculos XVI e XVII: Galateo, de Giovanni Della Casa; A Dissimulação Honesta, de Torquato Accetto; Da Infinidade do Amor. Organizou a antologia A Arte de Conversar, que reúne escritos franceses seiscentistas. É organizador da edição das obras completas de Hilda Hilst e Roberto Piva pela Editora Globo. Co-editor da revista de poesia Sibila. Mais em Encarte.
 
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Ricardo Lima nasceu em Jardinópolis (SP), em 17 de novembro de 1966. É poeta e jornalista. Sobrevive em Campinas e vive em Morungaba (SP). Publicou Primeiro segundo (São Paulo: Arte Pau-Brasil, 1994), Chave de ferrugem (São Paulo: Nankin, 1999) e Cinza ensolarada (Rio de Janeiro: Azougue, 2003).  Em novembro de 2005, sai, pela Azougue Editorial, seu livro Impuro silêncio. Mais aqui.

 

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