©judith tomaz
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 

Havia planejado, e era meu desejo (faz uns seis meses, mais ou menos), compor um painel o mais completo possível da poesia portuguesa contemporânea, que tenho lido com grande interesse pela diversidade e pela qualidade de muitos poetas, incluindo os jovens, como vocês poderão ler abaixo. Queria fazer entrevistas, detalhar a obra de cada um, sabem como é o gosto pelo trabalho.

Enfim, pas possible, por desventuras em série; de qualquer forma, achei que seria bem lamentável se não reunisse pelo menos alguns poemas de alguns dos poetas que me parecem ter as obras mais instigantes. Daí que, com parcos recursos, compilei o melhor que pude achar na internet daqueles que conhecia por diversas vias. Aí está uma brevíssima seleção de poemas bastante bons de autores que vale a pena conhecer.

O escopo foi o seguinte: nascidos no período entre 1942-1972. E, obviamente, está muito longe de visitar todos os nomes importantes. Não obstante, há um poema engenhoso de Vasco Graça Moura (mais conhecido por aqui, talvez, pelas traduções de Shakespeare e Dante), há alguns poemas notáveis de Inês Lourenço & Ana Paula Inácio, a estranha e forte poesia de Emílio-Nelson, e o realmente talentoso Gonçalo M. Tavares (que foi publicado pela Bertrand Brasil, mas tem pilhas de livros ainda inéditos por aqui), mais os outros, não menos importantes.

Por último, há o blogue excelente do poeta Pedro Mexia, Estado Civil, que recomendo aos leitores curiosos:

 

http://estadocivil.blogspot.com

 

Não se encontra exatamente poesia por lá, mas estou certo de que, depois de ler suas páginas, o leitor e a leitora concordarão que é possível pôr em perspectiva aquilo que se chama com tanto gosto "crônica" no Brasil. O que, penso, os melhores blogues já têm feito.

Aos poemas. E boa leitura.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

o principio de m. c. escher (II)

 

é quando as aves brancas voam para a noite que
as aves negras voam para o dia, sobre as árvores, no vento, vão
em bandos, batem asas pausadas. sobre as árvores
as aves brancas tomam a noite clara, as negras,

apostas companheiras, escurecem o dia, voam baixo,
no ar para onde fogem ocupando o intervalo
das outras, e as brancas só cortam o espaço, exactas guias,
entre o voo das pretas. bandos, bandos

de oposto movimento, na luz de transição,
lá, onde se cruzam, voam
aves cinzentas para os dois lados, no lugar indeciso
em que das matérias do ar e da chuva

se elevam as árvores dessa parda fronteira, e
sobre todas as árvores da paisagem, da matéria da noite, deslocada
se formam as aves negras. as brancas giram altas e agudas, feitas
da substância do dia que transpõem. imitativo e permutante é o

voo das aves e aqui, nas caudas do vento, a terra estreita-se:
de passarem baixas as aves negras, todas
mudaves, negras, á cousas todas vás, á brancas
aves de suaves claves, ides tão acima dos graves

cuidados, das fundas soledades, vai tão fluido
o vosso sobrevoo, aves cinzentas sobre o vale pairando
equidistando do sol e da lua, tudo é tão transitório
e tão roubado ao tempo. á aves condutoras, sonora companhia, sois 

tema e contratema, resposta e episódio, espirais dissonantes
de rigor e liberdade, no bater das asas vás para cada lado
da fuga sobre os rios, sobre os silvos, sobre os vidros da paisagem, sobre
os cantos de ar e chuva, sol e lua, nas linhas enroladas de estridentes 

trinos, sois as nuvens, no sistema das aves, no manejo
das aves e das árvores cromáticas e tristes, a dupla revoada, o ricercare: é quando
as aves brancas voam para a noite que, no avesso,
voam para o dia as aves negras e lá, onde se cruzam, cinzentas.

 

 

 

 

 

 

 

 

Miramar


Acender um cigarro na praia, proteger
o difícil estertor da pequena chama. Anular
o vento na manga do teu casaco. Reter
preso entre os dedos o princípio breve
dessa efémera combustão.

 

 

 

I will kiss thy mouth
 
Do fundo da cisterna
a tua voz eleva-se e nenhuma
masmorra abafa este ardor
por ela aceso, no derradeiro véu,
a minha pele? Nem as proféticas
maldições, nem o teu repúdio,
nem a luxúria do tetrarca
me impedem de cumprir
o mandamento primeiro
da paixão: a colheita
da tua face.

 

 

 

Vítimas

O gato reinava no terraço
entre hidrângeas, sardinheiras e
muros, silencioso e súbito
na ferida que rasgaria
algum gorjeio. Muitas mortes de asa
incauta, na cobiça de larvas ou insectos
em sucessivos Maios, justificaram
o fulgor das garras, o espinho
certeiro entre veludos. Agora
que se foi o vivaz caçador, na garra
letal dos anos, novos bandos
de pardias inundam
o terraço sem gato.

 

 

 

Post-Card
(os velhos, os pombos, os gatos)

Alguns habitantes queixam-se dos pombos. Do mal
que fazem às fachadas, às estátuas, à pintura
dos automóveis. Os pombos não voam a gasolina
e têm humaníssimos hábitos como a gula, as
rivalidades do cio, a sede e a urgência
de defecar. Detestam coleiras, gaiolas, amparos
de casota, ausência de jardins
e adornos de penas alheias. E por este divino
despojamento recebem, às vezes,
algum milho displicente dádiva
de crianças para a fotografia, ou de benignos
velhos reformados. Algumas mulheres continuam
a socorrer os antiquíssimos (e terrestres) gatos
vadios. Gatos da minha infância. Dos muros,
das traseiras, dos quintais — o Sindbad, a Pardoca — com
restos de arroz em papéis engordurados. Carinhosas
velhas, atentas à famélica e materna condição
das ninhadas, enquanto os pombos e os velhos
debicam espaços de pedra onde levavam asas
e entre todos assoma, por instantes,
a decaída aliança entre o Céu e a Terra.

 

 

 

 

 

 

 

 

POEMA XI

 

Preferes então a história dos três arbustos?

 

Digo-te já: três medíocres arbustos.

 

Quantas vezes quietos na calma do vento e, outras,

agitados pelo mesmo vento ou talvez por um mal interior indecifrável.

 

Três arbustos presos ao terreno onde horizontalmente

os seus pés têm marcada a condenação.

 

Junto ao solo, mas não tanto como isso, eles suspendem o princípio

de uma música que o tempo escreve.

 

Dentro deles existe uma seiva, princípio da terra que se há-de abrir

à morte de todos os arbustos.

 

Um silêncio cresce-lhes nos pés e sobe até ao gosto do vinho acre

que a brisa transporta depois para os lados do mar.

 

Digo-te: são três arbustos de montanha.

 

Não mastigam algas nem conhecem outra cor

senão a dos ossos milenários que a montanha tem dentro de si.

 

Preferes então a história dos três arbustos?

 

 

 

DO CANAVIAL DE BRESCOS

(excerto)

 

(...)

Lembras-te do resumo do Estrangeiro do

Camus?

Era mais ou menos assim.

 

Os meus olhos ficaram cegos,

por detrás desta cortina

de lágrimas e de sal.

Sentia apenas as pancadas do sol na testa e,

indistintamente,

a espada de fogo brotou da navalha,

sempre diante de mim.

Foi então que tudo vacilou.

O mar enviou-me um sopro espesso

e fervente...

Todo o meu ser se retesou

e crispei a mão que segurava o revólver.

O gatilho cedeu. Sacudi o suor e o sol.

Compreendi que destruíra

o equilíbrio do dia.

Voltei então a disparar

mais quatro vezes.

E era como se batesse

quatro breves pancadas,

à porta da desgraça.

Quando o procurador se sentou,

houve uns longos momentos de silêncio.

Quanto a mim, sentia-me atordoado

pelo calor e pelo espanto.

O presidente tossiu um pouco e,

em voz muito alta,

perguntou-me se eu queria acrescentar

alguma coisa.

Levantei-me e,

como tinha vontade de falar, disse,

aliás um pouco ao acaso,

que não tinha tido intenção

de matar o árabe.

O presidente respondeu

que isto era uma afirmação.

Redargui rapidamente,

misturando um pouco as palavras

e consciente do ridículo,

que fora por causa do sol.

Houve risos na sala.

 

Depois tentei toda a vida explicar-te

que o sol,

de facto,

pode ser culpado.

 

Os juízes, no entanto,

vestem de corvo e são juízes. Nada mais.

(...)

 

 

 

 

 

 

 

 

NO HORTO

Não há morte que não dedilhe
nesta pedra
de seco arbusto
de nós.
Lassidão, temor, rosas pregadas.
(E eu disse entretanto:)
Rosas esmaecidas
diante das lágrimas do Filho e
desde sempre a sofrer.


 

 

O atleta engelhado à janela
já sem músculos
o emblema néon do clube
algodão poído disfarça as pêlos do peito
suor encharca os sovacos
e o felpo afaga
o corpo estafado
Os dedos de sua mãe
dentro da cabeça
como em mim às vezes acariciam-no
o que o faz absorto

 

 

 

 

 

 

 

LUGARES COMUNS  

 

Entrei em Londres

num café manhoso (não é só entre nós

que há cafés manhosos, os ingleses também,

e eles até tiveram mais coisas, agora

é só a Escócia e parte da Irlanda e aquelas

ilhotazitas, mais adiante)

 

Entrei em Londres

num café manhoso, pior ainda que um nosso bar

de praia (isto é só para quem não sabe

fazer uma pequena ideia do que eles por lá têm), era

mesmo muito manhoso,

não é que fosse mal intencionado, era manhoso

na nossa gíria, muito cheio de tapumes e de cozinha

suja. Muito rasca.

 

Claro que os meus preconceitos todos

de mulher me vieram ao de cima, porque o café

só tinha homens a comer bacon e ovos e tomate

(se fosse em Portugal era sandes de queijo),

mas pensei: Estou em Londres, estou

sozinha, quero lá saber dos homens, os ingleses

até nem se metem como os nossos,

e por aí fora...

 

E lá entrei no café manhoso, de árvore

de plástico ao canto.

Foi só depois de entrar que vi uma mulher

sentada a ler uma coisa qualquer. E senti-me

mais forte, não sei porquê, mas senti-me mais forte.

Era uma tribo de vinte e três homens e ela sozinha e

depois eu

 

Lá pedi o café, que não era nada mau

para café manhoso como aquele e o homem

que me serviu disse: There you are, love.

Apeteceu-me responder: I’m not your bloody love ou

Go to hell ou qualquer coisa assim, mas depois

pensei: Já lhes está tão entranhado

nas culturas e a intenção não era má, e também

vou-me embora daqui a pouco, tenho avião

quero lá saber

 

E paguei o café, que não era nada mau,

e fiquei um bocado assim a olhar à minha volta

a ver a tribo toda a comer ovos e presunto

e depois vi as horas e pensei que o táxi

estava a chegar e eu tinha que sair.

E quando me ia levantar, a mulher sorriu

Como quem diz: That's it

 

e olhou assim à sua volta para o presunto

e os ovos e os homens todos a comer

e eu senti-me mais forte, não sei porquê,

mas senti-me mais forte

e pensei que afinal não interessa Londres ou nós,

que em toda a parte

as mesmas coisas são

 

 

 

 

 

 

acrobacias

 

sentados em Trafalgar Square
no intervalo de amigos
com o tempo entre as mãos
treinávamos o nosso inglês
num inquérito de revista
com Francis Bacon na capa
que perguntava:
qual dos membros
— superiores ou inferiores —
preferíamos perder
(esta ablação em língua estrangeira
tornava-se indolor, quase anestesiada)
respondeste: os braços
as pernas conservá-las-ias
como a liberdade de poder andar
respondi: as pernas
não queria ver-me
impedida de abraçar.
Assim juntando as nossas
perdas
eu abraço-me a ti
e peço-te anda, mostra-me o mundo
e quando nos cansarmos
abraçar-me-ás, então, com as pernas
e eu
andarei com os braços.

 

 

 

 

 

 

A Água 

No café trazem-me um copo com água
como se ele resolvesse todos os meus problemas.
É ridículo — penso — não há saída.
No entanto, depois de beber a água
fico sem sede.
E a sensação exclusiva do organismo
acalma-me por momentos.
Como eles sabem de filosofia — penso —
e regresso, logo a seguir, à angústia.

 

 

 

 

 

 

 

Lisboa, Calçada de S. Francisco

Subindo pelas cinco horas a Calçada de S. Francisco,

em tarde de bruma e versos na Calçada de S. Francisco,

partindo do que não sei na Calçada de S. Francisco,

e sabendo onde não chego na Calçada de S. Francisco,

subindo na tarde deserta a Calçada de S. Francisco,

só eléctricos e pombas na Calçada de S. Francisco,

estranhando o que não estranho na Calçada de S. Francisco,

e pensando no que não penso na Calçada de S. Francisco,

subindo pelas cinco horas a Calçada de S. Francisco,

subindo e ninguém descendo a Calçada de S. Francisco,

sem eventos para as metáforas na Calçada de S. Francisco,

tiro do bolso a própria tarde.

Na Calçada de S. Francisco,

onde a realidade mudou e já nada acontece,

e já não é a Calçada de S. Francisco mas a Rua Ivens

ou outra rua do Chiado sem meditação ou moralidade.

 

 

 

ARCA DE NOÉ

 

Café, arca de Noé
do bairro, habitual
o mesmo pastel e
um aceno de cabeça.

Café da nossa
cafeína, do bruaá,
passou mais um ano,

desconhecidos discutem

Husserl ou os penalties.

 

 

 

 

 

março | 2007

 

 

 

 
 
 
Dirceu Villa. Poeta, tradutor, ensaísta e professor de literatura. Publicou MCMXCVIII (São Paulo: Selo Badaró, 1998), Descort (São Paulo: Hedra, 2003) e tem inédito o novo livro de poemas, Icterofagia. Apresentou o programa da rádio CR37, da Casa das Rosas, na internet, sob direção de R. H. Jackson, e editou a revista Gargântua (1998-1999); foi publicado na antologia nova-iorquina Rattapallax 9 (2003); tem poemas publicados nas revistas Ciência & Cultura e Ácaro, na qual publicou também traduções de e.e.cummings e Ezra Pound; traduziu e anotou Lustra, de Ezra Pound, para o mestrado (2004); tem ensaio sobre Fernando Pessoa publicado no "Dossiê" da revista Cult (2005); fez o roteiro e desenhou a HQ "O Entardecer de um Fauno", baseada em poema de Stéphane Mallarmé, e recentemente prefaciou os Contos indianos, do mesmo autor (São Paulo: Hedra, 2006), além de A trágica história do Doutor Fausto, de Christopher Marlowe (São Paulo: Hedra, 2006). Traduziu Imagens de um mundo trêmulo, de John Milton (São Paulo: Hedra, 2006). Leciona no curso de extensão universitária da USP (Poesia – 2003/2004/2006) e faz parte do corpo editorial da revista Cadernos de Tradução, FFLCH-USP.