O sopro da voz é criador.
(Paul Zumthor)



A interpretação de um canto recolhido das tribos dos índios Krahô, na voz de Clara Nunes (1942-1983), apresentado como peça de abertura de seu célebre e importante espetáculo Clara Mestiça, realizado em 1981, concretiza um momento relevante de sua trajetória e, evidentemente, ultrapassa a esfera estética. Integra-se à sua arte, mas também se converte num ponto de expansão de significados que nos convidam à reflexão.

Em um percurso de refinada complexidade, o canto de Clara Nunes abarcou, com consciência e lucidez, o projeto de valorização da música e da cultura brasileira autênticas, genuínas, de raiz, contemplando, em seu bem cuidado repertório, a inserção de elementos basilares das três etnias que compõem o povo brasileiro, a indígena, a negra e a branca. Essa decisão da intérprete, pesquisadora e compositora instaurou, a partir dos anos 1970, a intensificação de sua busca aos diferentes ritmos musicais brasileiros, corporificando e consumando, ao longo do desenvolvimento criativo, o ideário concebido a partir de seu quarto álbum individual long-play, Clara (1971), gravado, como todos os outros da cantora, pela Odeon (atual EMI). A bem-sucedida e vitoriosa carreira de Clara e seus múltiplos êxitos em todos os cantos do Brasil, e no exterior, em países como Suécia, Japão, Alemanha, França, Argentina, Portugal, Inglaterra, Angola, Espanha, Costa do Marfim, Venezuela, entre muitos outros, alicerçou-se numa intransigente defesa da cultura brasileira e na atuação impecável de uma artista de rara sensibilidade e extrema dedicação ao seu ofício. 

Chamada de "Cantora das Três Raças", pelo compositor, poeta e escritor Paulo César Pinheiro, Clara trilhou caminhos próprios no panorama artístico do país, perseverando no compromisso assumido com a música popular autêntica, sobretudo a afro-brasileira, porém, sem deixar de contemplar, em seus discos e apresentações, turnês e espetáculos, a chamada MPB e também obras de natureza romântica. Pinheiro é autor, em parceria com Mauro Duarte, do "Canto das Três Raças", imortalizada na interpretação de Clara Nunes, sendo de se registrar que a música, extremamente apreciada por ela, conforme entrevistas concedidas no Brasil e no exterior, deu nome a seu álbum individual de 1976, além de batizar o primeiro show da cantora em seu próprio teatro, no bairro da Gávea, no Rio de Janeiro.

Um dos aspectos de maior incandescência na obra de Clara é a magnitude da diversidade de gêneros musicais presentes em seu repertório, reflexo da imensa variedade de ritmos existentes no país. Ao lado do samba, do frevo, da ciranda, do coco, do batuque, do xote, do partido-alto, estavam a valsa, o samba-canção, a MPB e até mesmo a bossa-nova. Sua bela obra fonográfica confirma a saudável mescla de gêneros musicais e o irretocável bom-gosto na seleção das obras, além de reafirmar elevado grau de versatilidade.

Embora haja se tornado muito mais conhecida e seja lembrada pela importantíssima obra concernente à cultura africana e afro-brasileira e à religiosidade de matriz africana e pelas gravações de samba — que ninguém prestigiou com tanta competência e sofisticação e, que, por isso, tanto a celebrizou — cumpre observar que, consoante levantamento realizado pela historiadora, ensaísta e pesquisadora Sílvia Brügger (2009), "a temática romântica é disparada a que mais se faz representar nos LPs da cantora". Salienta Brügger que, analisando-se todos os seus dezesseis álbuns individuais, constata-se a existência de "112 músicas que apresentavam como temática secundária ou principal o amor". Essa é uma das questões que nos instigam à reflexão e à certeza de que infinitos olhares estão por vir sobre diferentes faces da obra polifônica a intérprete nos lega.

Destarte, constitui objetivo deste artigo o exame da presença do Canto dos Índios Krahô no repertório de Clara.

A temática indígena encontra vários espaços de inserção na atuação da intérprete, quer seja na abordagem do conjunto de raças que formam o povo mestiço do país, quer seja na individualidade da etnia primordial, nativa, ancestral das terras brasileiras. Trabalhado constantemente na obra da cantora, em todo o seu fulgurante percurso, o conceito de nação* representa a soma de elementos culturais e raciais e não se confunde com a invisibilidade das várias raízes.  Estão elas nítidas, presentes, visíveis a cada frase melódica, a cada fragmento de letra e em cada movimento da linguagem da gestualidade criada por Clara a partir de seus estudos, leituras e pesquisas e dos anos de aprendizado de expressão corporal.

Entre os momentos mais visíveis da inserção da cultura indígena na trajetória de Clara, podemos mencionar a apresentação de "Macunaíma, herói de nossa gente", samba de David Corrêa e Norival Reis, inteiramente baseado no romance-rapsódia homônimo de Mário de Andrade, uma das obras centrais do movimento do Modernismo brasileiro. A composição foi o samba-enredo da G.R.E.S. Portela, no ano de 1975, num dos mais belos desfiles de sua história, graças ao engenho dos compositores e graças à interpretação de Clara Nunes, que, convidada pelo presidente da agremiação, liderou a escola, "puxando o samba" juntamente com Silvinho. A presença da rica mitologia indígena do livro do escritor modernista foi reproduzida na obra de Corrêa e Reis — os mitos ameríndios — e as transmutações e a profusão de cores são absorvidas pelas fantasias do carnaval e pelo canto de Clara, que dialoga em ritmo preciso com os três mil e quinhentos integrantes da Portela, no desfile daquele ano.

Também podemos identificar a forte presença da etnia indígena na letra do  Canto das Três Raças, de Mauro Duarte e Paulo César Pinheiro, gravada por Clara em seu álbum long-play homônimo lançado em 1976:


Ninguém ouviu/ Um soluçar de dor/ No canto do Brasil

Um lamento triste/ Sempre ecoou/ Desde que o índio guerreiro

Foi pro cativeiro/ E de lá cantou/ [...]


A menção a essas obras, ambas de grande repercussão popular, com interpretação de Clara plena de intensidade e beleza, desenha um caminho pelo qual a intérprete vai seguindo, no âmbito temático, até encontrar uma espécie de ápice, no Canto Krahô, peça de abertura do show Clara Mestiça, apresentado em 1981, com grande reconhecimento de público e de crítica, sendo de se registrar mais de cem apresentações, em dez meses seguidos em que esteve em cartaz no Rio de Janeiro, com teatro lotado, após o que seguiu para São Paulo, tendo, também, turnês internacionais. 

Com direção musical do maestro Nelson Martins (Nelsinho do Trombone), direção geral de Bibi Ferreira, roteiro de Maurício Tapajós e Paulo César Pinheiro, cenários de Elifas Andreato, e figurinos de Reinaldo Cabral, o espetáculo Clara Mestiça ensejou aplausos, cumprimentos e apreciações críticas altamente favoráveis, dentre as quais a do jornalista e escritor Antônio Callado, que escreveu alentado artigo entusiasmado com o trabalho de Clara, afirmando que o show "vale muitos livros de história", ressaltando a interpretação do canto krahô.

O canto foi recolhido alguns anos antes por Marlui Miranda, cantora e compositora que desenvolveu intenso trabalho com os índios, incluindo os krahôs. Miranda também o gravou em 1978, juntamente com outros trabalhos similares.

A interpretação de Clara abre um teor de fisicalidade intenso. Mostra uma voz totalmente entregue ao ritmo voluptuoso do canto e à articulação precisa da melodia krahô, realizando um procedimento que pode ser compreendido como um mimetismo. Ela se torna o próprio som que canta. Entra no palco  trazendo nas mãos um maracá, instrumento do gênero dos chocalhos, utilizado por algumas tribos, inclusive pelos índios krahô. A entoação da melodia é dirigida por impactantes ataques das notas correspondentes às sílabas iniciais das linhas da letra, que transcrevemos, a seguir:


RAM    De ke ke ke   Korirare  hê

RAM    De ke ke ke   Korirare  hê

Djarambutum  Korirare  hê

Djarambutum  Korirare  hê


Em sua tese intitulada Morfologia e Morfossintaxe da Língua Krahô (Família Jê, Tronco Macro-Jê), assinala Maxwell Gomes Miranda que "o povo Krahô é um dos grupos Jê que, tradicionalmente, habitavam os campos de cerrado no sul do Maranhão, dividindo o mesmo território com outros grupos conhecidos na literatura etiológica e antropológica como Timbiras Orientais" [...]

Acrescenta o etnólogo: "Do ponto de vista histórico, os atuais Krahô são o resultado da fusão de diversos grupos Jê remanescentes das sucessivas  guerras empreendidas pela frente pastoril,  no final do século XVII e início do século XIX, a fim de tomar o território indígena para criação de gado" (Melatti 2009 [1967]).

A demarcação e homologação das terras dos Krahô ocorreu em 1944, com aproximadamente 320 mil hectares, entre os rios Manoel Alves e Vermelho, ambos Afluentes do Rio Tocantins. Frisa Gomes Miranda que "a família linguística Jê é a única família do tronco Macro-Jê que apresenta na atualidade o maior número de ramificações". Existe em todas as línguas Jê contraste entre vogais orais e nasais. Escreve Gomes Miranda (2014): ... "o Krahô, bem como todas as línguas do ramo setentrional e central, apresenta classes de palavras flexionáveis para indicar a relação de dependência sintática entre o núcleo e seu determinante, por meio de prefixos relacionais".

São 12 (doze) os fonemas consonantais da língua Krahô, os quais contrastam nos seguintes modos de articulação: oclusivas, africadas, fricativas, nasais, vibrantes e aproximantes. E os pontos de articulação são bilabial, alveolar, palatal, velar e global.

A transcrição fonética da letra do Canto Krahô interpretado por Clara deixa-nos entrever a predominância dos sons de articulação oclusiva e fricativa no início do fragmento:


RAM      De  ke  ke  ke               Korirare                       hê 

Hahm     dã   kã kã  kã      koh – ree – rah – rã             hã

(ham)      de  ke ke ke        ko  ri  ra  re                       he

Djarambutum                                Korirare

Zhah – rah  - moo – toom           koh reeh rah rã

za-     ra       um      tum                 ko  ri     ra  re


A precisão de articulação de Clara é notável, construindo no canto uma certa tactilidade para o som, distribuído por sílabas em que a quarta de cada grupo é a de maior acentuação rítmica.

Relembramos o ensinamento de Heloísa de Araújo Duarte Valente (1999): "A voz não se apoia em nenhum outro instrumento. Aliás, desde os primórdios da música, ela se configura como o primeiro instrumento musical, servindo de referência para os outros que lhe sucederam".

Segundo Duarte Valente, a arte do canto contempla vários níveis de domínio: respiração, relaxamento, ressonância, articulação, refinamento de audição, o que pressupõe sofisticação e naturalidade. E é justamente o domínio técnico "que cria uma ilusão de facilidade na execução. Um cantor que domina tecnicamente sua voz parece brincar com ela".

Nesse patamar estão as ilimitadas qualidades vocais de Clara, cuja competência transborda em todos os gêneros musicais por ela interpretados, restando patente a sua categoria de intérprete nos moldes previstos por Igor Stravinsky, em suas lições de Poética Musical. Ensina Stravinsky que, diferentemente do mero executante, o intérprete apresenta um elemento ético, além do estético, em alto grau de consciência.

Transcrevemos, a seguir, a tradução de um fragmento do canto krahô:


De  ke  ke  ke        Korirare         hê

Ela  vê um peixe passando na lagoa,   e

De  ke  ke  ke        Korirare          hê

Ela  vê um peixe passando na lagoa,   e


Djarambutum         Korirare       hê

E  a  garça  faz

Djarambutum         Korirare       hê

E  a  garça   faz


Haam       Haam     Haam      Haam

Aham!      Aham!    Aham!     Aham!


É interessante perceber os dois seres focalizados pelo canto, em sua letra: garça e peixe. A primeira, habitante dos ares; o segundo, habitante dos mares. Existe uma força ritualística no canto — ares e mares são elementos primordiais da natureza e também são as casas das aves e dos peixes, seu domicílio, seu habitat. Luís da Câmara Cascudo (1971) realça o caráter sagrado e ritualístico da água, bem mais intenso que os demais elementos da natureza. Na água, sensibilidade e universo onírico se entrelaçam, promovendo, de algum modo, a purificação de energia.

Além desta questão, há a presença do maracá nas mãos de Clara, único instrumento que, às vezes, acompanha o canto krahô, pois este é eminentemente vocal. Água e som, luz e movimento. Água e luz.

Para complementar estas reflexões, cumpre registrar que, em 1981, o maestro Marcos Leite efetuou o arranjo de três melodias dos Krahô, sendo o primeiro justamente o que está no espetáculo de Clara. Inserimos, a seguir, a partitura, em edição de 1996. Esta partitura, que não foi conhecida por Clara, pois é de data posterior à sua apresentação, é escrita para coral e demonstra que o canto é iniciado num tempo anacrústico, e que as semicolcheias reiteram a sequência das sílabas de consoantes oclusivas, entre outros aspectos.



A voz de Clara, ao interpretar o Canto Krahô, é sopro de criação, verdadeira explosão, ao mesmo tempo em que ela se desloca em velocidade pelo palco, trazendo nos gestos, a tactilidade que, no engenho e no encantamento da arte, revela a forte presença da cultura indígena em nosso cotidiano. Revela e anuncia. Protege e alerta.  A voz atravessa a palavra e vai além de seus contornos. Sem fronteiras, a voz de Clara expande, a cada sílaba, a cada fonema, a arte da cantora das três raças, em intensa busca pelo desenho musical da identidade brasileira.

*Essa afirmação se comprova na escolha do título do último álbum long-play de Clara Nunes, Nação. O título é escolhido por Clara a partir da composição homônima de João Bosco, Aldir Blanc e Paulo Emílio. Ao ouvir a obra, composta especialmente para ela, nasce para Clara a concepção de todo o disco.

 

 

dezembro, 2021

 

 

Beatriz H. Ramos Amaral. Escritora, poeta, ensaísta, é mestre em Literatura e Crítica Literária e autora de catorze livros, entre os quais Planagem (poesia reunida), Peixe Papiro e Os Fios do Anagrama. 

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