Wilmar Silva — Como é nascer em São Paulo e viver a fuga ao interior das palavras no centro de uma cidade sem noite?

 

Beatriz Amaral — São Paulo é um universo poético particular, muito bem representado no poema Cidade city cité, de Augusto de Campos. Multipli/cidade, vora/cidade, dupli/cidade, elasti/cidade são características fundamentais deste universo.  São Paulo é também um ponto de intersecção e um convite à polissemia, à plurissignificação. Quando comecei a produzir poesia, na adolescência, ainda não me dava conta do quanto estou conectada a este caos urbano da metrópole. Só fui realmente perceber meu grau de identificação com a cidade no início de minha carreira no Ministério Público, em meados dos anos oitenta. Embora a atividade do Promotor de Justiça seja de especial relevância no interior (e eu tive experiências muito gratificantes nas Comarcas de Primeira e Segunda Entrância), no plano pessoal, eu contava os dias, desejando retornar à Capital, pois sentia falta da efervescência cultural daqui, das noites de neon, do contraste entre o vermelho do semáforo e o acinzentado que por aqui predomina Sou urbana e notívaga, esculpida pelo ritmo da cidade. Entretanto, a viagem ao interior das palavras prescinde de espaço ou tempo definidos. Ela se expande em diferentes loci. E se enriquece de polifonia. Também produzo muito no campo, na praia.

 

 

WS — Quando descobriu a poesia entre os girassóis de sua infância?

 

BA — Em intervalos existentes entre aulas, compromissos e tarefas. No expressivo hiato existente entre a infância e a adolescência, a palavra se manifestou de um modo novo. Antes veio a prosa, a necessidade de escrever e inventar personagens, em pequenas histórias — desde os cinco ou seis anos. Em seguida, surgiu a poesia da atividade lúdica com as palavras. No período de transição entre a infância e a adolescência. Eu praticava, escrevia muito nessa época, experimentava vocábulos, ritmos. Mais tarde, a descoberta das escolas literárias me impulsionou a praticar em estilos diferentes. Exercícios, muitos. Guardo cadernos espirais da época. Publiquei o primeiro poema aos treze anos. Ia dormir tarde para escrever e escrever.

 

 

WS — Se a natureza é uma floresta de sons, como foi a viagem de uma poeta em busca da música pensando nas frases "música que se faz com idéias" (Ricardo Reis/Fernando Pessoa) ou "se faz com palavras, não com idéias" (Stéphane Mallarmé)?

 

BA —  A ensaísta portuguesa Daniela Braga, ao analisar meu livro Planagem, na Revista Terceira Margem (da Faculdade de Letras da Universidade do Porto) identifica em meu trabalho algo da "floresta de símbolos baudelairiana, o ritmo da música de Verlaine e Mallarmé, o claro-escuro do barroco, experiência concretista e a fusão entre a tradição ocidental e o equilíbrio cósmico-taoísta". Parece-me que a menção feita por ela aponta a resposta. Não creio que as idéias precedam necessariamente as palavras; estão ínsitas nas palavras. A opção por um vocábulo ou outro, a construção de ritmos e de figuras se materializa e se consubstancia no bojo da palavra. Então, a palavra dá substância à idéia e passa a ser — ela própria — sua idéia. Transmuta-se na idéia. A máxima mallarmaica é inconteste. Em minha experiência pessoal, a música está presente desde cedo, também, pois comecei a estudar violão erudito aos sete anos de idade e acabei completando o curso e fazendo a Faculdade de Música, paralelamente ao curso de Direito. Sou bacharel em Instrumento, fiz muita música de câmara. E, com o violão, veio o contato com a música antiga, com os renascentistas e barrocos. Realmente, ainda hoje, se eu passar muito tempo sem Bach, tenho crise de abstinência (risos). Telemann, Scarlatti, Vivadi também estão entre minhas preferências. E os pré-barrocos também. Depois, minhas preferências dão um salto no tempo e alcançam os impressionistas e a música do início do século XX, a chamada Música Nova. Música é tudo. Poemúsica. Ritmo, sempre. Mesmo quando arrítmica, a frase tem algum ritmo, que é o seu avesso, como uma espécie de negativo fotográfico do ritmo.

 

 

WS — Sendo mestre em literatura pela PUC-SP, como dialogar com o trabalho de Direito, em busca de um centro de gravidade enquanto promotora de justiça do Estado de São Paulo?

 

BA — É uma equação difícil e procuro resolvê-la, a cada dia, pois ela se renova constantemente. O eixo do pensamento literário e as funções institucionais do Ministério Público são faces aparentemente díspares, mas, no cerne da equação diária, está o diálogo entre ética e estética, cuja fertilidade só faz aperfeiçoar a experiência jurídica e expandir a experiência estética. A interdisciplinaridade é um fato, uma conquista da contemporaneidade. Tenho pensado muito nisto. Busco os pontos de intersecção entre as atividades. Embora uma delas se realize no espaço interior e outra no exterior, não ressalto os antagonismos, e sim tento valorizar o diálogo, para não me afastar de meu próprio centro de gravidade.

 

 

WS — Se realmente foram expulsos da república, como é possível aos poetas o enfrente paradoxal entre realidade e poética, ou a poesia é uma "viagem ao desconhecido" (Vladimir Maiakovski) em busca da ilha de Ítaca?

 

BA — A poesia é uma "viagem via linguagem", como já disse, há décadas, Augusto de Campos. Os caminhos da invenção conduzem a rumos desconhecidos, claro, mas nossas ilhas estão habitadas de sons, sentidos, sílabas e selos, luzes, signos e frestas de noite, recortes de jornais, dobras e sobras que compõem o paradoxo em que habita o poeta. A bússola aponta para a Ítaca que se desdobra no trabalho intenso com a linguagem.

 

 

WA — Depois de sua obra reunida (1983 a 1997) no extenso Planagem (São Paulo: Massao Ohno, 1997) como foi chegar aos poemas de Alquimia dos Círculos (São Paulo: Escrituras, 2003)?

 

BA — Na verdade, foi de meu editor, Massao Ohno, a idéia de publicar a obra poética reunida, que eu produzira naqueles primeiros quinze anos, de 1983 a 1997. Naquele momento, há exatos dez anos, minha intenção inicial era publicar o livro de nome Elipse, compreendendo dois conjuntos de poemas, Bequadros e Melismas (como vê, títulos novamente extraídos da linguagem musical). Massao então sugeriu que, juntamente com Elipse, reeditássemos os volumes anteriores, Cosmoversos, Encadeamentos, Poema Sine Praevia Lege e Primeira Lua. Acatei a sugestão, pois os primeiros livros tinham tiragens pequenas, estavam praticamente todos esgotados e, então, Planagem, que é um belo volume, e que muito me agrada, reúne a obra anterior, além de trazer a novidade Elipse. Mas não reescrevi os poemas. Estão intactos. Alquimia dos Círculos nasceu após um período crítico pelo qual passei, um momento de ruptura com certas crenças, certas utopias que temos com relação à humanidade. Foi o fim do sonho, da minha utopia particular. Passei a vislumbrar uma realidade menos idealizada e um mundo mais hobbesiano, digamos assim. Renasci neste imenso círculo alquímico. O livro retrata este momento e marca meu reencontro pacífico comigo mesma. Reeencontrei espaços, cidades, pessoas. Faço homenagens — há os poemas dedicados ao cineasta Augusto Sevá ("Roteiro"), à artista plástica Nina Moraes ("Losango-tango"), por exemplo — revejo minha geografia afetiva e continuo a perscrutar novas frestas da palavra.

 

 

WS — É possível, Beatriz Amaral, pensar no vôo de Elipse ao planeta COSMOVERSOS, ou escrever é delirar no abismo de letras?

 

BA — A galáxia está aí, os planetas se movem, e nós também nos movemos nas palavras. E agora, há as Luas de Júpiter, mudando e girando em suas órbitas. Na verdade, o primeiro livro, de 1983, corresponde a um período de formação. Creio que a partir de 1988, com o terceiro livro publicado, Encadeamentos, é que encontrei minha própria linguagem, minha expressão poética. Encadeamentos, aliás, foi o livro escolhido por Anna Luiza Camargo Arruda Bauer para ser o objeto de sua dissertação de Mestrado, "Dos Tascunhos à Obra Editada: Um Itinerário Poético" (de 1993). Anna Luiza estudou os rascunhos, o meu caderno de manuscritos, os dactiloscritos e a obra impresa e chegou a interessantes conclusões. Em suas análises, valeu-se não somente do instrumental teórico fornecido pela Linqüística e pela Teoria Literária, mas também da Crítica Genética, o que enriquece sobremaneira o trabalho. É possível pensar, pois, num vôo e nos pousos de uma asa poética em contínua investigação, busca e (re)descoberta.

 

 

WS — Como foi participar do livro Mutações (CMS, SP, 2003), objeto plástico do fotógrafo Itaci, em diálogo com textos de muitos outros autores?

 

BA — Uma experiência, sem dúvida, muito gratificante. Foi a terceira oportunidade em elaborei um texto poético a partir de uma imagem. As fotografias de Itaci são de uma sensibilidade única. A folha destinada a mim identifica-se com o outono, estação do ano que considero de alta dosagem poética, talvez a mais poética de todas, pela mescla de sensações e imagens que produz. Os demais autores são poetas, jornalistas, contistas, intelectuais de outras áreas, e esta comunhão deu ao livro uma bela polifonia.

 

 

WS — E a ascensão da escrita sobre a estupenda artista Cássia Eller, publicando Cássia Eller — Canção na Voz do Fogo (São Paulo: Escrituras, 2002)?

 

BA — Trabalhei com meus conhecimentos de música e literatura para traçar a trajetória da carreira de uma artista genial. Inventiva, original, singular. Minha intenção foi a de reunir as informações dispersas e tecer um panorama completo de sua travessia estética, que passa por momentos muito diferenciados. Ela era várias cantoras, várias intérpretes. Muitas em uma. Analisei canções, discos e opções. Foi um trabalho de pesquisa intenso. Contei com a colaboração de vários músicos próximos a ela, como o excelente violonista, arranjador e produtor Luiz Brasil, os compositores Péricles Cavalcanti e Nando Reis, entre outros. Mas, na verdade, nem eu mesma acreditei como pude trabalhar tanto em tão pouco tempo num projeto. Em férias, cheguei a trabalhar dias inteiros, sem pausas. Gosto do resultado. É um registro e não deixa de ser, também, homenagem. À criatividade, à liberdade, ao talento puro.

 

 

WS — Pensando por léxico e não por fonemas, o que realmente diferencia a voz/música de um poeta das vozes de outros seus contemporâneos?

 

BA — O "timbre" do poeta, sua dicção especial e singular, aquele toque peculiar que nos faz perceber que certo poema só pode ser de Oswald de Andrade, um outro só pode ser de Manuel Bandeira, e outro, certamente, é de Cecília Meirelles. Este "timbre" se manifesta na estrutura das frases, dos poemas, e também na seleção vocabular, é lógico. Alguns temas eleitos pedem palavras de certas "cores". Cada poeta, cineasta, dramaturgo, escultor ou compositor ou qualquer outro artista trabalha com seu léxico e revisita, ao longo da trajetória, idéias e temas, como bem explicita e disserta Cecília Almeida Salles, em seu livro Redes da Criação. É um tema vasto e interessantíssimo.

 

 

WS — O que significa produzir poesia quando o mundo vive o desespero de um coletivo fatigado de egos, lembrando que você coordenou projetos de poesia para a Secretaria de Cultura de São Paulo?

 

BA — Produzir poesia é experimentar uma viagem especial pelo universo da linguagem, é navegar e, sobretudo, resistir.  Busco trabalhar em minha poética a leveza e a concisão que sempre me encantaram em qualquer manifestação artística. Sou avessa a vozes grandiloqüentes egóicas. Gosto do mínimo que condensa, não um minismalismo estéril, mas o resultado de muito trabalho, de exercícios, pesquisa e reflexão. O resultado que promove e alicerça a condensação, raiz da palavra poética. A experiência a que você se refere, que coordenei na SMC foi o Projeto POESIA 96, que reuniu, de modo inédito, quase quarenta poetas e críticos em 101 encontros, três vezes por semana. Dois poetas liam obras e dois críticos comentavam estas obras, em cada sessão. O projeto foi um sucesso e se estendeu pelo ano seguinte. Foi um projeto concebido pelo poeta Cláudio Willer, que na época, era assessor da Secretaria Municipal de Cultura. A SMC convidou a mim e a poeta Eunice Arruda para realizarmos o projeto e o fizemos com empenho e dedicação. Foi sucesso de público e ensejou experiências análogas. Uma das tônicas era a diversidade de estilos e dicções. Para mim, foi altamente enriquecedor.

 

 

WS — Fale da proximidade com Augusto e Haroldo de Campos e da opção pela obra poética de Edgard Braga para constituir o objeto de sua dissertação de Mestrado na PUC. Qual a importância de Edgard Braga frente ao concretismo?

 

BA — Edgard Braga era meu tio-avô, casado em segundas núpcias com uma das tias de meu pai. Era muito próximo de meus pais. Além de poeta, era médico, um dos grandes nomes da Obstetrícia nos anos 1950, 1960. Era amigo de Oswald de Andrade e quase participou da Semana de 22, só não o fazendo em razão de seus estudos acadêmicos de medicina. Em sua casa, aos onze, doze anos, eu via Haroldo e Augusto, figuras por quem tinha veneração. Ocorre que, por coincidência, também minha mãe fora colega de classe, no colégio, da irmã de Carmen de Campos, nossa amiga Joanna de Paula Arruda, e contemporânea de Carmen. Por outro lado, veja que coincidência; uma das primas de minha mãe, Olga, casou-se com o irmão mais novo de Décio Pignatari, o Roberto Pignatari, engenheiro. Na adolescência, ao começar a me interessar por "poesia de invenção" (primeira fase do modernismo, a poesia concreta, especialmente), claro que ia a todos os eventos, debates, ciclos, lançamentos. E a lição que fica, numa síntese, é a experiência do rigor, a seriedade, a abertura para o novo. Edgard Braga produzia poesia essencialmente verbal desde os anos 1930 e seu encontro com os poetas concretos de São Paulo provocou uma revolução em sua obra. Braga participou da Revista Invenção, do Grupo Invenção, tornou-se mais conhecido fora do Brasil, e, nos anos 1970, iniciou a fase de maior radicalismo em sua poesia, criando os "tatoemas", poemas tatuados na pele do papel. Conhecendo a admirando a poesia de Braga, sobre quem eu já escrevera inúmeros artigos, e ciente do quanto ainda não é suficientemente divulgada, decidi que seria meu objeto de estudo na dissertação de mestrado. Meu trabalho (defendi a dissertação em 2005) ressalta os aspectos metalingüísticos, muito presentes na poética bragueana. A importância de Braga para o Concretismo é a mesma que o Concretismo teve para ele: a possibilidade de transmutações intensas a partir do projeto verbi-voco-visual, gerando e forjando um caminho próprio, uma outra voz.

 

 

WS — Lembrando Vicente Huidobro ou mais precisamente Matsuo Bashô — a natureza é talvez o sentido de escrita de haikais — como foi produzir Primeira Lua (São Paulo: Massao Ohno, 1990)?

 

BA — Escrever haicais foi um processo natural. Porque, já em 1983, no primeiro livro de poesia, o Cosmoversos, tenho o haicai: "gosto salgado na boca / ao jeito do vento / pescando palavras”. Uilcon Pereira, escritor, professor e crítico, percebeu que eu estava cada vez mais condensando minha linguagem e os haicais, de fato, foram se multiplicando. Para mim, constituem um veículo muito natural de dizer. Ainda hoje os faço e, neste novo livro, Luas de Júpiter, há o haicai "peixes nadam / dúzias de luzes / sejam seu dorso". Em meus haicais, não sigo necessariamente a métrica tradicional. Eles são pouco ortodoxos, aliás, até mesmo nos temas. Encadeamentos, de 1988, tem muitos haicais. Em 1989, minha mãe, também poeta e jornalista, além de advogada, estava escrevendo muita poesia e também produzia haicais. Estávamos em Águas de São Pedro, numa semana de descanso, entre o Natal e o Ano Novo, quando trocamos idéias e percebemos esta coincidência. Decidimos, então, concretizar o projeto de um livro. E assim nasceu Primeira Lua, em 1990, também editado por Massao Ohno. A condensação, o muito dizer em poucas palavras, é um exercício de serenidade e exige um trabalho intenso com a linguagem.

 

 

WS — O que é escrever poesia, Beatriz Amaral?

 

BA — Escrever poesia é irrigar as estruturas da linguagem, é arejar a aura de cada palavra, é criar novas relações entre as frases, navegar na plurissiginificação, na polissemia, nas sempre novas frestas e desdobramentos da língua. É tecer o texto no tear da invenção. Em São Paulo, em Manaus, às margens do Rio Negro (onde, em 1998, tive belas experiências poéticas), no interior do Mato Grosso, em Santa Catarina, em Sergipe, na Bélgica, no Havaí, nas Antilhas, na Ucrânia, em Israel, na Nova Zelândia, em qualquer locus em que as palavras estejam a pulsar idéias de liberdade e deslimite.  

 

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Beatriz Helena Ramos Amaral (São Paulo, 1960). Bacharel em Direito pela USP, em 1983, e em Música pela FASM, em 1985, estreou em literatura em 1981, com o romance Desencontro (Ed. do Escritor), obra adotada em vários colégios para análise literária. Publicou, depois, os seguintes livros de poesia: Cosmoversos (Ed. do Escritor, 1983), Encadeamentos (São Paulo: Massao Ohno, 1988), Primeira Lua (São Paulo: Massao Ohno, 1990. Haicais, em colaboração com Elza Ramos Amaral), Poema sine praevia lege (São Paulo: Massao Ohno, 1993), Planagem (São Paulo: Massao Ohno, 1998), Alquimia dos Círculos (São Paulo: Escrituras, 2003), Luas de Júpiter (Belo Horizonte: Anome Livros, 2007. Em 2002, publicou o ensaio biográfico Canção na Voz do Fogo (São Paulo: Escrituras), focalizando a trajetória artística da cantora Cássia Eller. Mais em sua  página pessoal.

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