[steve cutt]

 
 
 
 
 
 
 

Marcílio Godoy

2 poemas



Natal



O Natal é o contrário do Halloween.

Numa festa finjo que sou bom,

noutra finjo que sou ruim.


As crianças se voltam aos presentes,

os adultos voltam a ser crianças.

Aos velhos restam apenas os ausentes.


O Natal é o contrário do Halloween.

Numa festa finjo que sou bom,

noutra finjo que sou ruim.


Vista do edifício de luxo, a favela é um caleidoscópio

Do alto se reconfortam: na sala de visita montam

um pequeno barraco imundo, a que chamam presépio.


O Natal é o contrário do Halloween.

Numa festa finjo que sou bom,

noutra finjo que sou ruim.







Outro Natal



Outro Natal e aquele mesmo

dia abafado, comprido

aquele chove-não-chove lá fora

e na casa esse dentro ruído

de antigas mobílias se arrastando

lentas correntes de homens e mulheres

lembrando dos que já se foram

e que agora voltam, trazidos no fio

de tristeza em calda doce e amarga

com castanhas moídas entredentes

que unem e empapam todos os natais.


Outro Natal

e o calor de aromas assados

no forno-fogo consolador

da formidável quitanda dos livros-mãe

água na boca de avós

a nos irrigar os molares

com aquele vinho barato

de garrafão novo envelhecido

um pouco seco, meio ruim, tão íntimo

como a guirlanda instável-desbotada,

sempre dependurada na porta,

na altura dos olhos úmidos.


Outro Natal

e a azáfama infantil pelos corredores,

pais exaustos na montagem de brinquedos

e as olheiras de tantos natais

irmanadas a um tio muito amoroso

e bêbado cruzado no corredor

lutando com bravura,

rodando em falso contra a obsequiosa embriaguez

da solidão silente e um pouco desesperada

que grita em cada um de nós

sobretudo ao final da noite de todo Natal.


Outro Natal

e essa carreira de tantos natais

enfileirados surge outra vez no peito

como se a festa fosse apenas a busca

de uma lembrança perdida,

ainda vívida talvez mal vivida,

talvez nunca vivida,

mas ardendo levemente ressentida,

pois que o Natal insiste em ser o registro

mais reticente na memória

do tempo em que havia natais.


Outro Natal

e sempre nos aparece a chance remota

de nos vermos mais de perto

e entender que por detrás de tudo

o que nos incomoda no outro

está o que nele não enxergamos muito bem

seu avesso e a história secreta que o explica

direitinho, mas que nunca saberemos ao certo,

quem tá com a coisa é que sabe,

disse o velho em um Natal.

E o nome disso era perdão

mas sempre e inutilmente

insistimos em dizer Natal. 


Outro Natal

e se acende mais uma vez aquela chama

de saudade inconfessável

amiga e ao mesmo tempo estranha

como a fruta cristalizada naquele bolo

um pouco seco, meio ruim, tão íntimo

que vamos comer sorrindo

entre rabanadas no fim de tarde

do vinte e cinco, sob a sombra do tempo

esse teto feito de celofane,

com uma estrela cafona e torta

cometa cadente a nos confirmar neste mundo.


Outro Natal

e uns detalhes em ouro resplandecem

no que não havíamos notado

no paninho de crochê da mesa

no presépio de gesso mal pintado

no prato de salpicão com maionese

ou aquilo era um deus de louça?

Todas as certezas se adiam no Natal

O Natal é sempre a mesma promessa

de um resignado e aflito Natal

buscando se fazer feliz

e não apenas outro Natal.



Marcílio Godoy

Na Germina

> Poesia







Márcio Metzker

Detesto Natal



Desculpe se venho salpicar de mau-humor o seu pudim pré-natalino, mas odeio esta época. É que não me sinto atingido pela propaganda sentimentalóide e pelas mensagens que nos exortam a praticar os princípios cristãos. Para mim, temos que ser solidários sempre, honestos e decentes o ano inteiro. Não consigo sentir esse remorso católico que leva tantos burgueses do meu convívio a escrever ou encaminhar tocantes votos que cortaram seu coração.


Também não me sinto compelido a fazer reflexões humanitárias nesta época. Elas se destinam a arrancar uma lágrima hipócrita de compaixão dos empresários, produtores, líderes políticos, gente dura que passou o ano inteiro desumanizando o trabalhador e vivendo às custas do trabalho alheio. Não há sentimento cristão que supere em mim essa ojeriza que é crescente a cada ano como os preços de brinquedos e presentes que comparo com meu salário congelado.


É sim. Tenho três filhas, quatro netos, esposa, afilhados, empregada, amigos ocultos no trabalho e na família. Sou obrigado pela tradição natalina a presentear cada um deles, e isso implica em percorrer lojas numa época em que entrar num shopping ou numa loja americana é uma verdadeira carnificina. Equivale a estacionar entre dois carros-bomba na porta da embaixada americana em Bagdá e tirar um cochilo. Não é exagero meu. Já vi pessoas disputando a tapa o último brinquedo da prateleira, como os famintos disputam uma mortadela num saque a supermercado.


Dezembro é o mês em que o espírito cristão está mais em baixa. Faz calor abafado, caem aguaceiros repentinos, o trânsito vira um caos. Está todo mundo estressado, exausto, louco pra entrar de férias, sonhando com uma praia sem alto-falantes que toquem breganejo ou funk, o relógio na gaveta e o celular sem sinal. Se eu pudesse, iria passar o natal em Galápagos, na Antártida ou no Kilimanjaro.


Como não posso, incorporo minha frustração à dos motoristas que ficam sem paciência nos engarrafamentos, xingando a torto e a direito. No trabalho, os chefes querem tudo para ontem e esquecem dessas festas obrigatórias, em que as pessoas bebem durante o expediente e fazem tudo de má-vontade, enquanto soltam sarcasmos e ironias contra os colegas. Gostaria sinceramente de entrar em coma durante uma festa de amigo oculto, só pra não ver as pessoas ganhando CDs, livros, chinelos e ouvir as mesmas piadas de sempre: "É marmelada! Veste! Veste! É pavê ou pa cumê?".


Natal é uma época em que a gente vive intoxicado não só pelas bebidas das múltiplas festas de formatura, da empresa, de aniversários, mas também pelas comilanças gordurosas e calóricas que se consomem em pleno verão: as nozes, as avelãs, as castanhas-do-pará e portuguesas, os tenders, presuntos, chesters, perus, ameixas, cerejas e uvas besuntadas de agrotóxicos, etc. Tudo importado para imitar as tradições dos países frios e ricos, macaqueadas como cultura por nossas elites colonizadas e deslumbradas.


Se eu sofrer um infarto ou um derrame, tenho certeza de que será num mês de dezembro. Talvez depois de ler um desses cartões de Natal babacas que começam assim: "É tempo de refletir, é tempo de renovar, é tempo de abraçar". Refletir sobre o quê? Sobre o motorista que temos ganas de matar porque ficou com o carro atravessado na nossa frente no cruzamento? Renovar o quê? O IPVA do carro, a matrícula das crianças, a assinatura do jornal? Abraçar quem, se estão todos carregados de eletricidade estática e soltando faíscas?


As mensagens natalinas pedem que a gente brinde àquele que veio ao mundo para nos salvar, mas não se referem a Jesus, e sim ao décimo-terceiro salário, essa grana extra exposta à cobiça do comércio, do governo, da prefeitura, do crime desorganizado, das seguradoras, até do mecânico que cuida do meu carro e do rapaz que atualiza meu computador. Sem somar tudo o que a gente é obrigado a pagar no final do ano, acabamos com remorsos por termos sido consumistas que esbanjam todo o décimo-terceiro.


Conte quantas caixinhas de Natal estão penduradas no seu caminho, desde a padaria até o açougue, do self-service até o estacionamento, da mesinha do office-boy à portaria do prédio, do caminhão de lixo aos carteiros, sem falar nos mendigos peripatéticos que nos abordam em toda parte. É de dar vontade de pegar Papai Noel pra uma boa esfola, com faca cega. Depois de pendurar o escalpo do velhinho, empunhar uma carabina e crivar de balas todas as renas do seu maldito trenó. Christmas serial-killer. Taí uma saída radical para a classe média brasileira.



Márcio Metzker

Na Web

> Crônicas







Márcio Sales Saraiva

O Natal eterno



Se tens a alma aberta,

o amor arrojado

e um grão

de mostarda-esperança

poderá ser fecundado

pelo Espírito divino.

E gerar em si, Deus-menino,

que florescerá em dezembro

na manjedoura, vaso

de terra, seu coração.

E subirá a fumaça do incenso,

haverá partilha de todo ouro,

as flores vermelho-amarelo da mirra

enfeitarão a festa do vinho,

utopia de carnavalesca alegria,

pois é Natal, Natal de novo:

saturado de coragem,

o oprimido povo

derrubará os muros da bastilha.



Márcio Sales Saraiva

Na Web

> Quem é.







Marcus Vinicius Faria

Poema



minhas mãos não alcançam

o bem que delas se espera

a esperança é linda se lida

como quem a arranca do chão



Marcus Vinicius Faria

Na Web

> Quem é.







Maria do Carmo Ferreira

2 poemas



R E D E



Desejo de abraços

paz nos corações.


Nós que se desfaçam:

vidas que se opõem.


Caminho no encalço

do que pode o homem


mesmo com o desgaste

de hoje: dois mil anos.


Vidas que se atraiam

sem porquês ou como.


Paira um tempo-espaço

a fim de que se amem.


Oxalá brotassem

como água de fonte


corpos renovados

mentes renovantes


e esta rede fosse

a de João, de Tiago,


com Pedro no assombro

de lançá-la ao largo:


Jesus no comando

repetindo o "faça-se!".


Quem dera, hoje e sempre,

recolhesse Amor


(naufragado e morto)

são e a salvo em nós!







CORDEIRO DE DEUS



Senhor meu Deus, ouço os irmãos bradando

que um pai não age assim com um filho seu.

Oferecê-lo à cruz porque pecamos.

E ele, cordeiro, vos obedeceu.


Respondo a esse mistério que me humilha

com o grão de fé de quem mais quer saber.

Ao criar os anjos, foi com inteligência,

liberdade e poder de decidir.


Se vistes que era bom, e não errastes,

e Lúcifer, 'o portador da luz',

de onde, do Bem, rebelde tal procede,

por não se sujeitar ao bom Jesus?


Competência? Competitividade?

Soberba, orgulho, ódio, inveja, ciúmes?

"Não me sujeitarei", brandindo a espada,

eis o Adversário, o Cujo: encontrou cúmplices.


Pecados capitais. Mas tais pecados,

a espíritos puríssimos, condizem?

Se nem o ser humano fora criado

e o Bem gerara o bem de Suas raízes.


Depois, a tentação dos pais primevos.

E a maldição, pecado original,

que ainda nos pesa, filhos do pecado.

O peso do Calvário pesou mais.


Por que chorou Jesus, pedindo arrego,

já transudando sangue ante esse cálice

que havia de beber, e bebeu mesmo?

Por que se ensina a impassibilidade


como atributo de um só mesmo Deus

em três pessoas, sim, consubstanciais:

a dupla natureza ao Galileu.

Vós não sofrestes, e Jesus sofreu?


E se o demônio, sendo uma criatura,

está sujeito a vós, sendo o Criador,

por que tentou Jesus (fê-lo à fartura) 

com regalias de que se apossou?


Que feliz culpa vê Santo Agostinho

por termos merecido um Redentor?

Que novo Adão se diz de Jesus Cristo,

pagador de promessas do Senhor?


A pouca fé que me questiona, Pai,

me atrela a mil por quês de penitência

por dardes asas-deltas a satanás

quando Jesus sois vós, o Alfa e o Ômega.



Maria do Carmo Ferreira

Na Germina

> Poesia







Mário Alex Rosa

Poema de Natal



Nascedouro:

nasceu para os outros

— ouro de muito valor —

sem moeda de troca

troca por palavras

água, peixes, animais,

a multiplicação dos pães

para quem tem fome.


Semente brotada

doa para ser semeada

milagre que há

lembrado será

em noite de Natal

em dias de promessas

rezas por quem precisa

para isso também fomos feitos.


Nascer para apenas ser

natureza aberta como de braços abertos

mover um verso feito mão estendidas

para o presépio.



Mário Alex Rosa

Na Germina

> Poesia







Mariza Lourenço

natais



*



dia de natal era dia de pai para a menininha dos olhos imensos. era dia de ele aparecer pra fazê-la esquecer a ausência do ano inteiro. no natal de 2020, no entanto, ele não apareceu: a mãe explicou que ele não podia, estava em outra cidade. 


— este ano ele vem, né, mamãe?


dia de natal, para aquele homenzarrão: só era feliz por causa dela, da sua menininha de olhos enormes. ele nunca deixou de vê-la nesse dia. em novembro de 2020, pegou uma carga pesada até Recife. precisou correr, tomar bola, aviar a documentação da carreta. ficou feliz quando chegou ao seu destino e recebeu pela entrega. no natal de 2020, preso a um respirador, pensava que a boneca de olhos imensos valia cada minuto sem respirar.


— ano que vem eu vou, minha filha.




*



abriu o primeiro presente, depois o outro e mais outro. coloridos e caros. mas, nem todos os embrulhos e presentes a impediram de dar um pinote porta afora e seguir correndo para aproveitar aquele dia lindo no lombo de quinzé, seu melhor presente há exatos dez anos.




*



— corre, o papai noel tá entrando na casa daquele pessoal.

— que legal, será que ele vem aqui também?

— não sei, vamos perguntar pra mãe, ela sabe de tudo.

— mãe, mãe, o papai noel vem aqui?

— não, filho.

— eu queria que ele vinha.


o menininho voou e aboletou-se na janela minúscula para ver a saída do papai noel.

todo ano é assim: pela fresta.




*



papai noel estava muito cansado no final de 2021, um calor dos infernos, uma criançada chorosa, mães e pais irritados. e aquele pedido que não tinha como atender. não dependia dele, mas tinha de consolar a criaturinha de olhos imensos sentada em seu colo. abriu um largo sorriso e apontou para a mulher triste, logo atrás. a menininha pulou no colo da mãe.

natal de merda, pensou papai noel.

assim, pensamos nós.



Mariza Lourenço

Na Germina

> Contos







Miguel Torga [1907-1995]

Nascimento



Nascem os homens como deuses pobres:

Nus e de um ventre que desesperou

De os guardar

Sagrados e secretos no seu lago.

Nascem disformes, sem nenhum afago

Da raiva desabrida que os expulsa

E das mãos que os recebem.

Bebem

O ar do mundo aos gritos.

Olham sem ver, e são

Surdos e transitórios mitos

De nossa devoção.



Miguel Torga

Na Web

> Poesia







Mô Ribeiro

Vox Populi



dizem que nasceu um menino

dizem que foi tarde da noite

que foi à meia-noite


dizem que nasceu na pobreza extrema

e que reis o visitaram

mas que continuou pobre


dizem que o menino nasceu

de mãe virgem

hímen complacente

mãe complacente

— quanta benevolência —


dizem que o pai do menino

determinou sua morte por tortura

aos meros trinta e três anos de idade


o nome do pai

dizem

era deus


dizem



Mônica (Mô) Ribeiro

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> Poesia







Neurivan Sousa

As luzes do Natal



as luzes de dezembro

enfeites vermelho-verdes

cédulas de suor em led


os olhos em pisca-pisca

sonhos ao pé da árvore

na hipnose das vitrines


no cálice do alto clero

transborda a opulência

as bênçãos da república


aos gentios resta gastrite

mendigar o pão porque

a esperança está no lixo


à noite procura-se jesus

junto à mesa onde cristãos

rezam e trocam versículos


natal ilusão fosforescente

de receberem no amém da ceia

um novo indulto celestial.



Neurivan Sousa

Na Germina

> Poesia