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Pra que servem os poemas



Muito antes de eu nascer

várias pessoas passaram por aqui

e inventaram coisas essenciais

como o clipe de papel,

o prendedor de roupa, a pipoquete,

o chuveiro elétrico, o funil,

o zíper e o abridor de latas.

O carimbo e o relógio de ponto.

Sendo que ainda assim,

ninguém mais quer saber

quais são os nomes desses gênios

inventores da saída de emergência

com barras anti-pânico,

da luinha do celular

com modo silencioso,

aquele pau com uma cestinha

pra pegar manga,

o ralador de fazer macarrão 

de abobrinha, o telejogo Philco,

o descascador de batatas,

o saca-rolhas.


Nenhum poema pode

tornar mais prática

nem mais confortável 

segura, produtiva

ou necessariamente bela

a vida de ninguém.

Poemas são invenções

pensadas pra falhar.

São objetos feitos

expressa e miseravelmente

pra darem errado.

E só pra isso servem:

pra mostrar a todos

que há coisas pensadas,

meticulosamente urdidas

pra nada servir nem ninguém.

Nem nunca. 

Inclusive os canhotos.

Os melhores poetas

servem unicamente a esse fim,

o de vingar todo o desprezo

que a humanidade legou

aos anônimos inventores

das coisas realmente úteis, geniais.







Noivado



As minhas namoradas estão todas

pairando na memória de um relâmpago

secreto na gravidez da noite.

Seus olhos, nossos filhos não nascidos,

são anjos passarinheiros, 

pousados em um ipê ainda sem flor.


As minhas namoradas vão todas

costuradas num caderno espiral

de capa dura e um plástico na abertura

repleto das polaroides esfumaçadas,

que colei com cola e durex,

papéis de bala e bombom,

bolachas de chope, lágrimas

e ingressos de cinema.


As minhas namoradas correm todas

de mim num campo de flores, nuas,

puxando cercas de arame e lanças,

entre postes de luz e containers

transformadores de alta voltagem

explodindo no horizonte

como fogos de artifício.


As minhas namoradas foram todas

resultando em paradoxos temporais

escavando lapsos

distraídos de diamante e carvão

nos vagos chamados vãos

das tardes perdidas

por muito lúcidas ou sentimentais.


As minhas namoradas tiveram todas

seus cabelos enovelados

em estrelas binárias

que se perderam umas das outras

cumprindo órbitas aleatórias

sob as minhas gravidades falhas

sem cotidiano ou martelo.


As minhas namoradas são todas

mais leves que o ar.

E em seus balões coloridos

partem sempre de novo

em saias rodopiantes

num céu de discos voadores.

Até que me voltam na lembrança,

em velas diáfanas,

feitas de sua própria impermanência.


Infladas do mesmo ar que lhes ia dentro

das sedas da primeira visita,

as minhas namoradas saúdam-me

num esgar imaginário

de desprezo, pescoço e ombros.

As minhas namoradas moram todas

juntas, omoplata, clavícula e úmero,

na rotação dos joelhos

e nos ligamentos calcanhares

da mulher que estou amando agora.







Parçarinho



Amigo passeriforme,

saudações plumárias.

Que vontade de sair de casa.

Ainda tem lugar na asa?







Belo Horizonte e eu



Belo Horizonte é minha torre de marfim, meu passeio na ilha.

Belo Horizonte é minha mãe em sendo também minha filha.


Belo Horizonte é o sem saída de meu trânsito parado e ruim.

Belo Horizonte é um onde — quando mais me aproximo de mim.


Belo Horizonte é um projeto erguendo minha infância sem tempo e estrada real.

Belo Horizonte é um palco-plano tablado, atrás da Serra do Curral.


Belo Horizonte são cinco estrelas no mais azulado do céu.

Belo Horizonte me deu lápis, tinta e meu principal papel.


Belo Horizonte são dois arcos sobre os trilhos embaixo; no alto, sobre a cruz.

Belo Horizonte é uma lagoa desaguada de esgotos que nunca lhe fizeram jus.


Belo Horizonte é o triunfo do equívoco, como todo belo fracasso modernista.

Belo Horizonte é a linda perspectiva que já não me alcança a vista.


Belo Horizonte é Beckett na Praça da Liberdade esperando Godoi.

Belo Horizonte é uma hipótese na parede. E como remói.


Belo Horizonte é o desenho ortogonal de meus contornos tortos.

Belo Horizonte é a Floresta onde estão os meus mortos.







Altar



Casa comigo, meu bem

na cidade de São Paulo

eu vi escrito num muro

que havia, sim, o amor

apesar dos modos incivilizados

de um certo batalhão de choque.


Casa comigo, acima de tudo,

amore mio, no Terazzo Itália,

não!, casemos na Lopes Chaves

sob a palma de tantos Mários

de andrajos que hoje vagueiam

abandonados, sob o Minhocão.


Casa comigo, radiante

na antena da Gazeta,

nossa tour Eiffel, mon amour

seremos dois rios imundos,

mais bien au loin,

au bord de la Ayrton Seine

até o alto da serra da Cantareira

em seu sol maior e mais bonito.


Casa comigo, amor,

o amor é nossa ladeira de agora-agora

Porto Geral das nossas chances

de felicidade a 1,99

no trampo, nosso negócio.


Não casemos, minha nossa!,

no marco zero da Sé

esse pelourinho paulista

que só me faz lembrar o início

de entradas e irradiadas mortes

até hoje, bandeiras sangrando

no volante do Brasil profundo.


Casemo-nos sob as luzes

dos vitrais coloridos do mercado

Municipal, minha vida,

brindando chopps com mortadela

margaridas sobre o kraft amigo

do cachorro da carroça da reciclagem.


Casa comigo amanhã, querida

na beira-mar das ondas do Copam.

Esquece o Pátio do Colégio,

que ele está muito próximo à Bolsa.


E vamos ao mosteiro de São Bento

onde órgãos e sinos

abadescos nos tocarão

com o melhor vinho, que bênção,

o mais puro pão.


Casa, goza comigo o ardor

do centro sem muita unidade mesmo, 

do viaduto do chá saltemos juntos

para vale do Anhangabaú

como num quadro de Segal

e olhemos lá embaixo, Ismália,

como é pungente e pedestre

a louca solidão dos sem teto.


Casa comigo, bella, na Mooca, no Brás

no Bixiga e na estação da Luz da lua.

A gente compra um bilhete sem volta

nem baldeação, você me conduz

de volta pro amor,

essa Barra funda.


Casa e baila comigo, doçura

sobre o desenho contrastante

do piso e do guarda-corpo

no barco de Santa Efigênia.

Guarda meu corpo no arco

e embarquemos juntos e de vez

felizes, antes do grande naufrágio.


Casa comigo, repito meu anjo,

no Cantinho do Céu

no campinho do Jardim Jaqueline 

Irene, no fogo e no buzinaço

que tocaram na favela do Cimento.


Abraça-me por um momento

na linha do tiro e do trem

dos barracos de Paraisópolis.

Casa comigo na multidão,

sob os delírios não totalizantes

do vão do Masp, essa abóbada Lina.

A Paulista aceita todos os sentidos

mas ainda temos nosso segredo ativista

sem moeda no lago: vamos, meu Belenzinho,

cuspir nos carros que passam

na Santos, da ponte do Trianon?


Casa comigo, riqueza

sob as asas-muros grafitados

do beco do Batman, antes

que surja ali um retrofit studio

de vinte e nove metros quadrados

e nos expulse de vez

para o Paraíso.







O menino, eu e a poesia



Eu moro no menino

O menino mora na casa antiga

A casa antiga mora no retrato

O retrato mora na tristeza

A tristeza mora na tragédia

A tragédia mora na chuva.


A chuva mora na nuvem

A nuvem mora sobre a estátua

A estátua mora no bloco de pedra bruta

A pedra bruta mora na montanha

A montanha mora na minha terra

A minha terra mora no feriado.


O feriado mora no trabalho

O trabalho mora no dia

O dia mora no calendário

O calendário mora na parede

A parede mora no condenado

O condenado mora na noite.


A noite mora na despedida

A despedida mora na estação do trem

O trem mora nos trilhos

Os trilhos moram na vontade

A vontade mora na liberdade

A liberdade mora no passarinho.


O passarinho mora no vento

O vento mora de casa em casa

A casa mora na solidão

A solidão mora na lua

A lua mora no céu escuro

O céu escuro mora no azul do ar.


O azul do ar mora na flecha

A flecha mora no espaço 

O espaço mora na música

A música mora nas coisas.

As coisas moram no tempo

O tempo mora no rio.


O rio mora no vale

O vale mora no velho

O velho mora na árvore

A árvore mora no parque

O parque mora nos namorados

Os namorados moram na felicidade.


A felicidade mora no acaso

O acaso mora no esquecimento

O esquecimento mora em tudo

Tudo mora na roda líquida 

Do olho do redemoinho de letras

Da órbita do ralo da poesia.







23 o quês sem resposta



O que deus faz lá fora

a uma hora dessas

tomando chuva entre os carros

todo vazado dessa luz branca,

os fachos dos faróis?


O que de tristeza e mágoa

forma uma revolução?


O que foi de nós dois

e das promessas que nos fizemos

naquele desbotado fim de tarde

em que ainda nos bem dizíamos?


O que de desprezo há em calar-se?


O que fariam advérbios de modo

em um poema tão educado

se há forças mais substantivas

nos dicionários?


O que de revolta pode ainda

se destilar em perdão?


O que se acumulou

de objetos perdidos e fotos

e cartas perdidas e palavras perdidas

desde aquela tarde

em que a menina sem nome ficou?


O que de entendimento nasce

apenas por praticidade,

conformidade ou preguiça?


O que de fato nos teceu

enquanto desfiávamos o novelo

do nosso convívio,

nossa saca de sal feita de linho,

bordada com cabelo de milho?


O que de entendimento

e sentido pleno

não nascerá nunca?


O que pode estar querendo dizer

o fato de ter derramado café

na camisa três vezes

só nesta semana?


O que só de incômodo e enjoo,

e não de desejo,

forjou aquela mudança?


O que de sulfato de amônio

ficou ainda nas veias,

nas artérias mesmo tantos anos

depois de ter deixado a lavoura?


O que de pequenos desvios

involuntários

pode gerar uma trajetória tão precisa?


O que de histórias sem mérito algum

merece figurar em um poema

igualmente

desmerecido?


O que faz o sol ardendo agora

bem na asa da minha xícara?


O que do frio anormal daquela manhã

pode ter contribuído

ao desencontro, ao fim?


O que do sangue

de antigas batalhas inomináveis

e conquistas covardes

ainda mancha minhas mãos?


O que desse cheiro

de esgoto

vem de minhas próprias

entranhas?


O que talvez ainda dê tempo?


O que era para ser liberdade

e não passou de inútil valentia

ou apenas doce

insubordinação?


O que do lagarto homem

ainda repousa de sua passagem

pela pedra do mundo?


O que sinceramente importa

agora que já está tão bem fechada

a portinhola da vida?







Como desarmar uma bomba



Selecionar os fios,

antecipar o pulso

e desmontar o mundo.


Forjar o atrito,

esfacelar os medos depois

cuidadoso recolher as pequenas certezas.


Borrar as cartas,

deslocar os centros,

até descoagular o sangue.


Contrapor-se à mosca,

saudar o primeiro desespero, o outro

até reconciliar-se com os compassos.


Abandonar o neutro,

apaziguar as vésperas

neutralizar o abandono.


Estranhar os verbos, os inícios,

tudo, desenganar a dor.

E se propor um perrengue.


Esquartejar sujeitos objetos,

festejar o impasse, a morte do futuro

conservando a substância das coisas presentes.


Antecipar a vertigem,

embaralhar os aniversários

para desencaixar a náusea.


Expor-se o ao sol,

despertar das peles seu olor,

tentar colher o efêmero da flor.


Processar, engarrafar

anunciar, distribuir modos

de enfatizar o efêmero da flor.


Desfigurar o unânime,

guilhotinar as gravatas

e reenjambrar o mundo ainda que.


Saber em definitivo

que deus tem,

mas acabou.







Confissão I



Eu sou farsante falsário

uma farsa picaresca 

um poeta no armário.


Eu sou um cantor sem muque

de argumentos re-quebrados

lírico de feicibuque.


Eu sou um mímico de araque

um otário dis-traído

ornado de badulaques


No espectro do ruim

eu sou o fim da picada

sou o começo do fim.


Eu sou ingênuo infeliz

um malaco baco bêbado

eu sou quase, por um triz.


Tal um Rimbaud de Inhaúma

eu sou um poeta-coisa

poeta coisa nenhuma.







Confissão II



Eu nunca sofri

(mudo)


eu nunca perdi

(fácil)


eu nunca falei

(tudo)


eu nunca chorei

(pouco)


eu nunca te amei

(tanto)


eu nunca menti

(muito).



dezembro, 2020



Marcílio Godoi é doutorando em Literatura Brasileira pela USP e Mestre em Crítica Literária pela PUCSP. Venceu o Grande Prêmio Cásper Líbero em 2004 com São Paulo, cidade invisível (Letras e Expressões) e o Prêmio Barco a Vapor em 2012 com A inacreditável história do diminuto senhor minúsculo (SM Edições). Arquiteto e jornalista, Marcílio trabalha como editor de publicações customizadas na Memo Editorial, em São Paulo. Publicou o livro de poemas Estados úmidos da matéria (Patuá), em 2015, e o de contos Frágil recompensa (Sagüi), em 2016. Mais recentemente, publicou com a ilustradora Isadora Godoi o Livro de bichos.


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