O cineasta Augusto Sevá nasceu em Campinas e radicou-se em São Paulo, onde cursou Cinema na ECA-USP (Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo). Ele está lançando seu sétimo filme longa-metragem, Tais & Taiane (2019), que já recebeu prêmios internacionais em Festivais de Cinema na Índia e nos Estados Unidos. Sevá iniciou a carreira em 1976, realizando curtas-metragens e desde aqueles anos, encontrou reconhecimento em Prêmios de Melhor Filme no Festival de Cinema Jornal do Brasil / Aliança Francesa, Melhor Filme na Jornada Brasileira do Curta-Metragem, ambos em 1976, Prêmio Especial do Júri, em 1977, entre outros. Dirigiu os longas A Caminho das Índias (1982), Real Desejo (1990), Arquipélago de Abrolhos (1998), Ilha Grande — As Visões do Paraíso (2001), Estórias de Trancoso (2007) e Fala Sério! (2013). Também foi Membro do Conselho Consultivo da Embrafilme, Diretor da ANCINE, Presidente da APACI, Assessor de Cinema e Vídeo da Secretaria Municipal de Cultura e Assessor de Cinema e Audiovisual do Estado de São Paulo. Sobre essa vasta e múltipla experiência, ele conversa conosco, fala sobre o novo filme e nos conta parte da polifônica trajetória. [Beatriz H. Ramos Amaral]

 

 

 

 

Beatriz H. Ramos Amaral - Augusto Sevá, seu novo filme, Tais & Taiane (2019), tem recebido vários prêmios, em festivais internacionais de cinema: prêmios para atrizes, na Índia, prêmios de roteiro, nos Estados Unidos (roteiro, aliás, que é seu), entre outros importantes reconhecimentos.  Fale um pouco para nós sobre esses recentes sucessos e sobre o processo de realização do longa-metragem.


Augusto Sevá - Eu comecei por eles. Eu era de escrever poesia, em Português e Inglês, na minha juventude, no auge dos Beatles e do Tropicalismo e, depois, nos anos 1970, de tanta efervescência cultural. Naquela época, eu e amigos de geração queríamos mesmo era escrever letras de música popular jovem, ser Chico e Caetano ou Lennon e McCartney. Mas eu queria escrever prosa e a primeira coisa que escrevi foi um conto, imitando abertamente o meu ídolo de então, Dalton Trevisan. Outros vieram, mas sem importância, pretensiosos, e fui rasgando (durante muito tempo não fiz senão rasgar tentativas de ser um escritor de prosa). Penso que eu sentia, intuitivamente, que me daria melhor com formas curtas. Venerava e ainda venero o conto, por seu poder de síntese, de atmosfera, de visão compacta e drástica do mundo.



BA - Tais & Taiane é um road movie com duas protagonistas femininas bastante jovens e, reunindo as características básicas desse gênero, como deslocamentos, desafios, provações, situações de crise, perigos, intempéries e transformações. O filme mantém a linguagem cinematográfica de Augusto Sevá, que valoriza aberturas narrativas, clareiras, planos abertos, claros, sutileza de alternâncias de luz, sutilezas nos gestos de personagens. Em que momento sentiu ter encontrado o equilíbrio da obra, na conclusão do roteiro, durante as filmagens, na edição/montagem?


AS - A história do Tais & Taiane nasceu de minha experiência em viagens de carona pelo Brasil, nos anos 70. Inspirei-me nas Taises e Taianes que encontrei na estrada, nos postos de gasolina, borracharias, botecos e prostíbulos. O tema é a intolerância e em seu oposto, a construção de uma amizade. O gênero road movie combina com o tema, a convivência das personagens naqueles três dias traz o autoconhecimento e as leva a transformações. Colaboram nisso, a solidão e a inexistência de saídas, onde a infinitude das paisagens é o tudo e ao mesmo tempo o nada. Não há onde as personagens se apoiarem, uma boa alma, um resquício de civilização, apenas elas com elas e por vezes, enfrentando a hostilidade da paisagem e seus poucos habitantes. E sempre, um destino vago a ser enfrentado.



BA - Augusto, conte-nos um pouco da seleção de elenco realizada para esse filme e para outras obras de sua filmografia.


AS - Eu precisava de protagonistas que contivessem nelas a Tais e a Taiane. Que não "representassem", mas que tirassem as personagens de dentro de si. Não interessava uma atuação técnica, mas uma espécie de "não atuação". Foram mais de mil candidatas do Brasil inteiro submetidas a um funil seletivo, com testes fotográficos, vídeos e encenação de partes do roteiro. Além disso, também foi fundamental que, já no processo seletivo, ocorresse uma química entre elas. Assim cheguei na Tais-Gabriella Vergani e na Taiane-Yasmim Santos.



BA - Seu primeiro longa-metragem é de 1980, A Caminho das Índias, no qual você declara sua linhagem estética com elementos "oswaldianos", da antropofagia, do pau-brasil. Posteriormente, em 2007, você faz Estórias de Trancoso, retomando a linha de brasilidade e navegando por várias décadas da cidade de Trancoso. Como você vê sua ligação, enquanto artista, com a Bahia e as origens do Brasil?


AS - Cada filme resulta de uma época, de uma fase da cultura e do cinema, mas também da história pessoal do autor. Eu não me preocupo em citar elementos, linguagem ou gênero já existentes, mas também não os descarto. Cada filme é apenas mais um tijolo na construção da cinematografia. O A Caminho das Índias, de 1980, tem a presença forte do cinema experimental, da dramaturgia caleidoscópica, de uma busca das raízes na cultura popular e de sua interação com a modernidade. Coerente com o final dos anos 70 que também valorizou a antropofagia modernista. O Estórias de Trancoso, de 2005 é um quase-documentário, uma encenação dramatizada de um período da história de Trancoso, com o foco no momento de transformação de sua cultura. No primeiro, através de uma realização provocativa e no segundo, mais contemplativa. Ambos têm em comum, uma curiosidade antropológica, que será retomada no Fala sério!, de 2011, o terceiro da série trancosense. Todos foram realizados a partir da história local e com "não atores" preparados especialmente para os filmes.



BA - Augusto, entre os anos de 1976 e 1980, antes de fazer os seus filmes de longa-metragem, você dirigiu curtas-metragens e foi muito bem sucedido. Quais as principais experiências que traz desse período? E há documentários seus muito belos realizados em 1998 e 2000: Arquipélago de Abrolhos e Ilha Grande: as visões do paraíso. Fale um pouco sobre o que eles representam na sua carreira.


AS - Comecei na profissão com documentários de curta-metragem e num momento propício, quando houve a obrigatoriedade de exibição de filmes curtos anteriormente aos filmes longos nas salas de cinema, o mecanismo legal chamado "Lei do Curta".  Resultou em um boom do gênero e de novos realizadores na virada dos anos 1970 para 1980. Foi essa a experiência inicial que me levou à dramaturgia de ficção. Mas não abandonei o documentário, realizei nos anos 1990 a série televisiva Arquipélago de Abrolhos, do gênero wild life, o único produto brasileiro exibido no programa Planeta Terra, da TV Cultura de São Paulo. Foi também exibido em televisões de vários países. Fiz também, em parceria com a TV Cultura, no ano 2000, o documentário-experimental Ilha Grande: as visões do paraíso, filmado na Ilha Grande, litoral do Rio de Janeiro, mas cujo tema são as visões do paraíso, sempre presentes na história da humanidade, notadamente na Renascença. Tenho um carinho especial por este "filho estranho", que não atende a nenhum padrão, não sendo nem ficção nem documentário, uma viagem onírica em torno da Ilha Grande, em busca do paraíso relatado em textos antigos.



BA - Quem é o diretor de cinema Augusto Sevá? Como se define como artista e profissional ativo da cultura brasileira?


AS - O que me move é a curiosidade, em saber como funcionam as coisas e para que servem. Vi a linguagem do cinema, hoje chamada de "audiovisual", inicialmente como um desafio e, a seguir, a possibilidade de expressar e comunicar minhas inquietações. Vejo-me em busca disso e sou produto de minha época, mas ligeiramente descolado dela.


Creio que o momento mais significativo da história do cinema tenha ocorrido até o final dos anos 1970, atingidos o auge do classicismo e também do experimentalismo. De lá para cá, exerceu-se muito a "citação" e a "desconstrução".


A dessacralização atingiu fortemente o cinema, os filmes se tornaram efêmeros, "líquidos", como tudo. O resultado é que filmes como Limite (1931), de Mário Peixoto e Cidadão Kane (1941), de Orson Welles além de sobreviver com força, podem ser considerados mais modernos do que grande parte da cinematografia atual. Mantenho-me permeável à evolução da técnica e da linguagem, mas refratário aos modismos, tanto nos temas quanto na linguagem. Por isso, me considero um pouco "na contramão".



BA - Augusto, o que você levou de construtivo da sua atuação como profissional do cinema (diretor, roteirista) para as funções que exerceu em órgãos públicos de cultura, como a ANCINE, de que foi diretor, a Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo, em que foi assessor de cinema e vídeo, e a Comissão Estadual de Cinema de São Paulo, de que foi Diretor Executivo?


AS - Entendi logo no início da carreira que para ser diretor/autor, eu precisaria ser produtor de meus filmes. E que para ser produtor eu precisaria saber acessar e administrar recursos e que para que tudo isso acontecesse, minha atividade precisaria existir. A profissão de cineasta não é considerada essencial no Brasil. Ela existe, apesar de tudo. Então interessei-me pelos mecanismos de manutenção da atividade e de seu financiamento. Aos 26 anos, antes de lançar meu primeiro longa-metragem, participei do Conselho Consultivo da Embrafilme e, posteriormente, fui Presidente da Comissão de Cinema do Estado de São Paulo, Assessor Especial de Cinema na Prefeitura de São Paulo e Assessor de Cinema e Audiovisual do Estado de São Paulo. Em todos esses lugares, ajudei no aperfeiçoamento de mecanismos e aumento de recursos para a atividade. Mas a função em que o alcance foi maior, foi na ANCINE.  Ajudei, em parceria com o cineasta Gustavo Dahl, a concebê-la a partir de 1998 e, mais tarde, a implantá-la, na condição de Diretor, a partir de 2001. Foi um processo maravilhoso. O projeto é um resultado de formulação conjunta, durante três anos, de todos os segmentos da atividade interessados em plantar bases sólidas de seu desenvolvimento. Dediquei-me inteiramente a isso até o a conclusão de meu mandato, no final de 2004 e Gustavo, até o final de 2006. Quanto mais exerci funções administrativas, mais me apaixonei por elas e conscientizei-me que grade parte das dificuldades do Estado brasileiro está aí. Políticos que não são administradores e administradores que não se interessam pela finalidade de suas áreas.



BA - Acha que o inverso também ocorreu em quais dimensões? O que o administrador trouxe de volta para o realizador? Qual a sensação de transitar, em momentos diferentes por essas fronteiras — federal, estadual e municipal — da gestão pública na área cultural?


AS - O contato do artista, principalmente nas artes industriais — caso do cinema —com o poder e com o mercado, proporciona que ele entenda melhor seu papel e a importância do que faz. Ajuda a amadurecer e consolidar seu trabalho.



BA - Quais as características das trilhas sonoras de seus filmes? São muito bem cuidadas. Fale a respeito.


AS - A ópera foi a primeira manifestação multimídia, mas creio que o cinema a superou como possibilidade de utilização de várias linguagens e artes. Enquanto a ópera é prisioneira das três paredes, o cinema não tem limites para iludir o espectador e inseri-lo no ambiente da narrativa.  Mas a ópera sinalizou para o cinema a possibilidade de as linguagens serem orgânicas.


Fiz filmes em que a música original era menos presente ou até inexistente. Em alguns, bastaram apenas as músicas diegéticas, as que eram reproduzidas no próprio ambiente da cena. Também trabalho com música incidental, com a função de dialogar, reforçar, amenizar, comentar ou contrapor-se à imagem. Nestes casos, destaco o longa Real Desejo, a série Arquipélago de Abrolhos e o Tais & Taiane. Neste último, a música composta pelo maestro José Antônio Corciolli, foi realizada juntamente com a edição de imagens, ora conduzindo o ritmo e os climas, ora conversando com as imagens e demais sons. Corciolli transita com desenvoltura entre o popular e o erudito, é habituado a peças longas com movimentos diversificados sem perder a personalidade musical. Compreendeu perfeitamente o objetivo de construir uma obra visual/musical, onde as imagens e a música original, juntamente com todos os demais efeitos sonoros, ruídos de ambiente, cantos de pássaros, canções populares, diálogos e silêncios formassem um só corpo, com começo, meio e fim, como em uma ópera, uma espécie de ópera intimista.



BA - Cite três cineastas do mundo e três escritores que se tornaram referências para você.


AS - Todos os filmes que a gente vê, nos influenciam e aprendi que "todo filme, por mais estranho que seja, tem algo de novo e de autêntico e que nos acrescenta". Eu diria que este "algo novo" é a marca do seu autor, que pode estar em um detalhe quase imperceptível. Grandes autores fazem do todo de seu filme, essa marca. Reconhecemos a autoria apenas assistindo o filme. Minha proximidade maior é com o Cinema Brasileiro, o que mais vi, com o qual mais me identifico. Mas são muitos os filmes e diretores que admiro e com quem aprendi e vou citar apenas três brasileiros que representam tendências: Mario Peixoto, Glauber Rocha e Walter Hugo Khouri. Dos estrangeiros, Murnau, Eisenstein e Orson Welles. Mas gosto também dos gêneros western e da chanchada, do cinema japonês dos anos 60, de Fellini, de Herzog, de Sergio Leone, de Antonioni, de Buñuel, de Jacques Tati... um universo bem amplo, minha subjetividade, creio.




BA – Por fim, agradecendo-lhe o diálogo, gostaria de saber:  como você vê a relação entre a literatura e o cinema? E como essa relação influencia o seu trabalho?


AS - O cinema já nasceu delineando suas duas principais matrizes narrativas, as cenas "naturalistas" filmadas pelos irmãos Lumiére, como A Saída da Fábrica (1895) e, em sua contraposição, as exigências ilusionistas de Georges Meliès, sendo A Viagem à Lua (1902) a mais conhecida. Essa segunda vertente revelou no novo invento um ótimo veículo de histórias. Após uma brevíssima passagem pelo teatro, o cinema elegeu a literatura como principal aliado. O drama, a tragédia, o épico, o intimista, a comédia, a aventura, a jornada do herói, as viradas, a apresentação do conflito e das personagens, o desenvolvimento e sua conclusão, tudo isso já existia. O roteirista é um escritor que narra através de imagens, de imagens que a indústria tem condições de realizar. Ele está limitado pela técnica e pelos custos do cinema. Já o mundo do escritor é ilimitado, ou limitado apenas pelos seus objetivos. Mesmo sendo o cinema uma arte "de diretores", é no roteiro que se fundamenta. O cinema industrial leva isso a sério. Os departamentos de roteiro das grandes produtoras norte-americanas são imensos e compostos por profissionais pagos em ouro, que analisam a qualidade dramatúrgica do roteiro, as possibilidades comerciais e as necessidades técnicas do filme. O cinema ousado e o experimental, que nunca deixaram de existir, tratam esse tema com menos severidade, namorando com a poesia. Mas não há como abandonar a narrativa, já que o cinema se desenrola no tempo. Sempre cultivei o hábito da leitura, mas não tive oportunidade de adaptar as histórias que li e gostei. Creio que minhas próprias inquietações foram suficientes para me ocupar, mas certamente as histórias que conto reportam a algum tipo de elemento já existente ou à soma ou à combinação deles.



julho, 2020


Beatriz H. Ramos Amaral. Escritora, poeta, ensaísta, é mestre em Literatura e Crítica Literária e autora de catorze livros, entre os quais Planagem (poesia reunida), Peixe Papiro e Os Fios do Anagrama.

 

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