"É Clara princesa
No país da escuridão acesa
Feito luz de incendiada certeza".
(Francis Hime e Geraldo Carneiro,
na música "Clara", CD Clareando)



Uma ótima surpresa para os leitores. Para todos os leitores. Para os que gostam de música de qualidade, para os que admiram o talento, o trabalho e a extraordinária arte de Clara Nunes (1942-1983). Para os que gostam de narrativas brasileiras, bem contadas, com toda a espontaneidade da memória. Acaba de ser lançado o livro Clara Nunes nas memórias de sua irmã dindinha Mariquita, uma parceria entre Maria Gonçalves da Silva e Josemir Nogueira Teixeira, filósofo, professor e poeta. Publicação da Editora Jaguatirica, o livro reúne as memórias da irmã de Clara, que a criou desde a infância, quando a cantora ficou órfã, e com quem manteve um bonito relacionamento de afeto, respeito, amizade e ternura durante toda a vida. Clara nasceu em 1942, na cidade de Paraopeba, no Distrito de Cedro. Anos depois de seu nascimento, o distrito emancipou-se e recebeu o nome de Caetanópolis. Da vida de Clara ainda menina, brincando livre entre passarinhos e árvores da terra e começando a cantar na escola e no coral da igreja, encontramos nestas memórias testemunhos verdadeiros, detalhes curiosos, cenas marcantes, tecidas num fio de linha vivo, íntegro, singelo e vibrante. Um relato que somente Maria Gonçalves da Silva poderia apresentar.

As memórias constituem, sempre, um importante ponto de conexão entre a literatura, a psicologia, a sociologia e a história. Quer sejam memórias sobre um indivíduo, quer sejam sobre uma comunidade, abrem portas para o conhecimento das condições de uma época, um local, uma família, um grupo social, uma cidade, um país. O aspecto coletivo estará sempre presente nas narrativas memorialísticas, no retrato do modo de vida do indivíduo-protagonista na comunidade, no relato de suas relações com o ambiente em que nasceu e viveu, com os outros membros de seu grupo social. É, também, no terreno da narrativa memorialística que são expostos, em diferentes graus de intensidade, o aprendizado do indivíduo e os ensinamentos que transmitiu, pois a dinâmica das relações contém em sua essência os relevantes atos de aprender e ensinar, transmitir, educar.

No caso de uma grande artista popular brasileira como Clara Nunes, intérprete, pesquisadora e compositora nascida no interior de Minas Gerais, que estruturou sua trajetória, em torno do imenso talento, das qualidades vocais, da expressividade, da ilimitada versatilidade para tão bem interpretar diferentes estilos musicais e da opção definitiva, no início dos anos 1970, pela música brasileira de raiz, pelos ritmos e gêneros autênticos do povo, a relevância destas memórias de sua irmã e madrinha está em fornecer — para o leitor que aprecia história e cultura — o retrato da artista além da vida pública. Além do palco. O retrato de suas circunstâncias. Além do espaço a que pode chegar a imprensa. O retrato do ser humano, da menina Clara Francisca, do modo como lidou com as dificuldades e como enfrentou e administrou seus inúmeros desafios de vida. A orfandade precoce e as dificuldades econômicas foram os primeiros desafios da vida de Clara, cuja sensibilidade encontrou na coragem, na fé e na força de uma inconteste vocação os ingredientes necessários para seguir em frente, sem jamais esmorecer. Sensível, humilde e tenaz, consciente de que nascera para realizar uma missão com a sua voz de cristal, Clara sempre ouviu os familiares, os irmãos. Ouvia, argumentava, expunha suas razões, sua forte convicção. Seguia o coração e a intuição, mas sempre ponderando e considerando o ponto de vista dos familiares e dos amigos. Sabia ouvir e dialogar. Acatava as boas sugestões.

Obviamente, também "fugia" durante a adolescência para cantar nas rádios das cidades vizinhas, sendo muitas das "fugas" planejadas com o apoio das irmãs mais velhas, pois toda a família sempre cultivou música em casa, a começar pelo pai, Manoel Pereira de Araújo, conhecido como "Mané Serrador" violonista que organizava as Folias de Reis na região e tocava diariamente em casa, reunindo amigos e ensinando os filhos. Quando Manoel e Amélia Gonçalves Nunes faleceram, a música já havia contaminado toda a família. Uma curiosidade: Clara tinha um ano e meio, quase dois, quando perdeu o pai. Foi a única dos irmãos que não teve a oportunidade de aprender música com o pai. Mas a genética favoreceu a caçula, que encantou o mundo e se transformou na primeira cantora brasileira a bater todos os recordes existentes em vendagens de discos, a primeira mulher a figurar no topo das paradas de sucesso, recebendo muitos discos de ouro e dezenas e dezenas de prêmios, abrindo caminho para tantas outras cantoras.

Entre os sete irmãos, José, Maria, Ana, Vicentina, Branca, Joaquim e Clara, construiu-se — no afeto — uma forte união, que os manteve sempre ligados, conectados, mesmo quando, já adultos, passaram a viver em cidades distintas, formando suas próprias famílias. O relato do livro destaca muitas manifestações de evidente empatia, em que cada um conseguia avaliar e sentir a dor do outro, bem como se alegrar com os momentos de felicidade do outro.  Momentos bastante difíceis foram enfrentados com união. Esta característica familiar certamente deu a Clara um expressivo conjunto de valores positivos, que lhe permitiram estruturar sua personalidade consciente das necessidades das outras pessoas e a ensinaram a generosidade e o respeito ao outro, marca da cantora que conquistou o Brasil e o mundo. E que ergueu como bandeira dar voz e luz a todos os ritmos populares e emprestar seu talento para a conscientização dos valores da religiosidade afro, da cultura afro e da necessária tolerância a todas as religiões.

Maria Gonçalves da Silva, conhecida como Mariquita, a primeira das irmãs, doze anos mais velha do que a caçula, casou-se muito cedo e levou Clara para morar em sua casa. Pediu ao marido que adiassem a ideia de ter seus próprios filhos, pois queria dispor de todo o seu tempo para bem criar e educar Clara e auxiliar a criação dos outros irmãos, que permaneceram na casa da família, com José, o mais velho. Assim foi feito. Maria teve seu filho quando Clara já tinha 21 anos e já iniciara em Belo Horizonte a primeira etapa de sua significativa carreira profissional.

Como bem salienta a historiadora Sílvia Brügger, no prefácio ao livro, o papel de Dona Mariquita "em relação aos legados da irmã famosa é a de uma guardiã de memórias. Memórias materializadas em objetos que hoje formam o acervo do Memorial Clara Nunes, mas que por muitos anos foram cuidados, sobretudo, em razão do sentimento que a unia à sua irmã caçula". O conjunto de cerca de nove mil itens, objetos, troféus, prêmios, vestimentas, acessórios, estátuas, objetos pessoais, instrumentos, livros, peças de decoração, discos, um magnífico acervo fotográfico, artigos de jornal, revistas, vídeos, cartões, cartas, depoimentos, hoje "permitem a quem visita o Memorial ou pesquisa em seu acervo refletir sobre questões importantes da história e da cultura brasileira" (S. Brügger, p.10, prefácio).

Este também é, naturalmente, o papel do livro Clara Nunes nas memórias de sua irmã dindinha Mariquita, pois narra de modo saboroso e natural as experiências, os casos, as confidências entre as irmãs, que permaneceram próximas e unidas até o último dia da vida breve, mas fulgurante de Clara.

Sabemos que o autor memorialista dispõe de dupla possibilidade: oferece uma visão da história, mas uma visão personalizada. Apresenta uma história particular e pessoal de que também é personagem e narrador. Mariquita Gonçalves da Silva abre, neste livro escrito com a colaboração de Josemir Nogueira Teixeira, um amplo conjunto de fatos, confidências, sentimentos e impressões. Tece fios narrativos cujos temas se soltam, se desprendem num capítulo e são retomados e recompostos noutro capítulo, trazendo surpreendentes relatos concernentes à vida adulta de Clara, a seu casamento com o poeta, compositor e escritor Paulo César Pinheiro, a assinatura de contrato com a gravadora Odeon (EMI), à qual a intérprete se manteve fiel, nela gravando todos os seus dezesseis álbuns individuais, além de quase uma centena de compactos simples. Noites de entrega de prêmios, noites de shows, entrevistas, encontros de Natal estão entre os fatos narrados saborosamente por quem os viveu e realmente os conhece. E os relata sem pretensão, com naturalidade e verdade. Como se estivesse numa conversa íntima com o leitor.

Sempre muito procurada para entrevistas, para falar sobre a irmã célebre, Maria Gonçalves da Silva, que foi vereadora da Câmara Municipal de Caetanópolis em duas legislaturas (de 1983 a 1992) e fundadora e presidente vitalícia do Instituto Clara Nunes, decidiu compartilhar com o público suas lembranças desse intenso convívio de toda a vida com a irmã. Teve a iniciativa de escrever e solicitou o apoio do Professor Josemir Nogueira Teixeira. Foram desenvolvidas, entre 2006 e 2014, sessões de minuciosas entrevistas em que a autora narrou oralmente as lembranças da família e da própria infância, resgatando até mesmo a época anterior ao nascimento de Clara, sétima e última filha do casal Manoel Pereira de Araújo e Amélia Gonçalves Nunes.

É extremamente bem-vindo o resgate, pois proporciona ao leitor o conhecimento de todos os aspectos da vida da família, oferecendo uma contextualização importante para que bem se possa compreender como o nascimento de Clara teve repercussão na vida dos familiares e também na cidade e entre os amigos, nos anos que se seguiram, nos quais brotou a incontrolável vocação artística da menina.

O texto é composto de 38 capítulos e de um caderno iconográfico contendo imagens de Clara em família e também de seu início de carreira, quando, vitoriosa em Minas Gerais no concurso "A voz de ouro ABC", ganhou um programa de rádio em Belo Horizonte e, depois, um programa de TV intitulado "Clara apresenta". Essa fase de sua profissionalização em Minas antecede a ida da intérprete para o Rio de Janeiro, onde assinou contrato com a gravadora Odeon, iniciou a própria produção fonográfica, construiu brilhante trajetória estética, conquistou a liderança em vendagens de discos, recebeu importantes prêmios, fez turnês muito bem-sucedidas em vários países do exterior, lançou álbuns em outros países, casou-se com o poeta e compositor Paulo César Pinheiro, gravou 16 LPs e cerca de uma centena de compactos simples, fez espetáculos memoráveis, como "Poeta, Moça e Violão", com Toquinho e Vinicius de Moraes, "Brasileiro Profissão Esperança", ao lado do ator Paulo Gracindo, com texto de Paulo Pontes, textos de Antônio Maria, canções de Dolores Duran e direção de Bibi Ferreira, espetáculos próprios, como "O Canto das Três Raças" e "Clara Mestiça", todos de imenso êxito, os dois últimos divulgando a religião e a estética afro, dando visibilidade aos nossos ritmos autênticos, a chamada música de raiz. Dessa forma, realizou com arte, vibração, entusiasmo e também com refinamento seu relevante trabalho, oferecendo imenso enriquecimento à música e à cultura brasileira.



A grande revelação do livro de Maria Gonçalves da Silva é trazer a público o modo como Clara permaneceu extremamente próxima da família, com constantes contatos, por meio de telefonemas, visitas a Caetanópolis, e o quanto sua sensibilidade floresceu na família. A proximidade no plano afetivo foi sempre intensa. Para a premiada artista brasileira, passar o Natal com seu marido na casa da irmã, com toda a família, a deixava sempre muito feliz. Permitia-lhe o reencontro com suas origens, permitia-lhe a liberdade de olhar para um largo horizonte, sentir-se integrada na natureza, ver e ouvir pássaros, ouvir serenatas e cantar informalmente com amigos. Permitia-lhe exercer, de muitos modos, sua generosidade e delicadeza, que, por vezes, chegou a surpreender e emocionar a própria irmã, a autora memorialista, Dindinha Mariquita.

Há que se registrar a atuação do Prof. Josemir Nogueira Teixeira na transposição da narrativa para a forma de livro. Conforme suas palavras, procurou organizar as entrevistas... "na forma narrativa na primeira pessoa, onde sobressai a fala da entrevistada como depoente e narradora, diante de um interlocutor que se esforça em manter-se oculto". E o fez com esmero. A naturalidade das inserções de diálogos, comentários e exclamações decorre da utilização de discurso direto e indireto. Dinamismo e velocidade estruturam o texto dos trinta e oito capítulos.

Relembra Nogueira Teixeira: "Ser é ser como memória. Perdemos o eu se perdemos a memória. [...] ... a memória é modo constitutivo do eu. [...] Memória não é história; a verdade da memória não é uma verdade histórica, mas um substrato sobre o qual se pode construir a narrativa histórica". Este livro, riquíssimo de relatos que encantam o leitor, é uma realização do Instituto Clara Nunes e do Programa em Extensão Memorial Clara Nunes, da Universidade Federal de São João del-Rei e contou com a colaboração de Marlon de Souza Silva na pesquisa de fotografias. Da transcrição das entrevistas, participaram o próprio coautor Nogueira Teixeira, além de Elaine Cristina Ferreira e Tayane Aparecida Rodrigues Oliveira. A revisão é de Sandra Frank. A capa do livro tem a concepção de Herik Rafael Oliveira e fotografia do Studio Jeane Fotógrafa.

Na contemporaneidade, o estudo da memória insere-se na esfera polifônica da transdisciplinaridade. Áreas diferentes do conhecimento dialogam e se influenciam reciprocamente. Interpenetram-se de modo construtivo. A ótica cientificista do século XIX começava a estudar a memória com ênfase na psicologia. Em sua obra Matéria e Memória, o filósofo francês Henri Bergson afirma, em 1869, que a memória não é uma propriedade do cérebro e, sim, do espírito. A importância de seu pensamento e de seus conceitos se revalida na obra de herdeiros como Maurice Halbwachs, Gilles Deleuze e Pierre Lévy. A memória se atualiza em novos cotejos com o presente. Mas jamais será exclusivamente cerebral. O componente sensório, na verdade, a revitaliza.

No tecido não linear da memória, vibram pontos fortes, que se atraem e acabam por coser, com outros fios e pontos, tons, notas e sons, a experiência de uma vida. Um livro de memórias sobre Clara Nunes, composto pela ótica de sua irmã, naturalmente preenche uma importante lacuna, reafirmando uma veemente aproximação, que é rara, entre ser e obra.

"Clara: uma luz que se acendeu. Fogo, era o fogo de Xangô", ouvimos no início da canção que Francis Hime e Geraldo Carneiro dedicaram à estrela. Que esse importante livro de memórias possa encantar a todos os leitores e abrir novas portas para a compreensão e expansão do excepcional legado de Clara Nunes. Oxalá!



julho, 2020



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O livro: Maria Gonçalves da Silva e Josemir Nogueira Teixeira.
Clara Nunes nas memórias de sua irmã dindinha Mariquita 
Rio de Janeiro: Jaguatirica, 2020, 270 págs., R$ 49,90
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Beatriz H. Ramos Amaral. Escritora, poeta, ensaísta, é mestre em Literatura e Crítica Literária e autora de catorze livros, entre os quais Planagem (poesia reunida), Peixe Papiro e Os Fios do Anagrama. 

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