"Tem um mistério

que bate no coração

força de uma canção

que tem o dom de encantar"

("Ijexá", Edil Pacheco)

 

 

A estratégia estética predominantemente utilizada pelos diretores Susanna Lira e Rodrigo Alzuguir para tecer o belo filme Clara Estrela (documentário longa-metragem de 1h e 11min, 2017) situa-se principalmente na esfera poética, em sua mais elevada acepção, resgatando com leveza e rigor o conteúdo artístico, humano e religioso que caracteriza o percurso de uma das maiores intérpretes da história da música brasileira.

A cantora Clara Nunes (1942–1983) revolucionou a cultura musical do país, em especial, a partir de meados da década de 1970. Nascida no interior do Estado de Minas Gerais (Cedro, que integrava o município de Paraopeba, e que hoje, independente, tem o nome de Caetanópolis), efetuou imensas transformações na indústria fonográfica. Foi a primeira mulher a atingir, no Brasil, as excepcionais vendagens de discos (à época dos LPs) equivalentes a quinhentos mil ou hum milhão de unidades vendidas de cada álbum. A primeira a trazer para a cena principal as raízes de nossa música, em ampla conexão com as matrizes africanas, preservando ritmos folclóricos e lhes emprestando o máximo de sua energia criativa.

Ao investigar com profundidade as raízes da música brasileira e sacralizar o seu canto com as asas, gestos, palavras e luzes das religiões afro-brasileiras, Clara foi tão intensa, sincera e tão atenta aos detalhes que desbravou muitas fronteiras, abrindo portas para cantoras e cantores das gerações que se seguiram. Estudou dança afro por vários anos. Conhecia profundamente o alcance de cada gesto de suas mãos. Era e é visível a autenticidade com que empreendeu suas pesquisas étnicas e culturais, cercando-se de muitos compositores de raiz, e mantendo elegância e coerência na escolha do repertório de shows e de álbuns. O equilíbrio é visível. A coerência é notável.

Este bem estruturado trabalho alcançou resultado extraordinário, o que fez com que Clara conquistasse o público do Brasil e do mundo (Japão, França, Alemanha, Suécia, Argentina, África e vários países europeus) e, cada vez mais, conquistasse a admiração de seus colegas e de críticos e mestres, como Antônio Callado e Arthur da Távola, por exemplo, que sobre ela escreveram textos sólidos, crônicas, análises críticas de espetáculos, construindo uma textura intelectual importante para a compreensão de seu legado.

O filme Clara Estrela captou muito bem a figura singular da artista, sua história de vida, seus movimentos rodopiantes, as danças, a honestidade, a comovente simplicidade e, a sua absoluta devoção à música. Sua entrega à carreira se fez em plenitude. Clara superou dificuldades de naturezas diversas. Ergueu suas mãos para abraçar a realidade dos que não tinham voz nem a atenção devida. Trouxe para o primeiro plano os dramas e questões de um povo oprimido, marginalizado. E o fez com leveza, com a lúdica escolha de roupas brancas, colares e adereços de um Brasil mestiço, que ajudava a revelar para o mundo com seu raro talento e sua disciplina. A construção de sua imagem se fez com inteligência, sensibilidade, sinceridade e coragem.

No documentário de Susanna Lira e Rodrigo Alzuguir, um tom translúcido se mescla à espessura dos problemas sociais a que a intérprete deu voz. A espontaneidade da delicadeza e da força do canto de Clara Nunes, a beleza de seu timbre vocal, o equilíbrio na distribuição de agudos, médios e graves e o teor de suas oportunas falas — contidas em entrevistas — são alguns dos principais elementos retratados neste filme lançado em 2017 e que continua a arrebatar os espectadores, a cada reexibição. Depoimentos importantes de outros artistas completam o trabalho.

Uma das ousadias e também um dos acertos do filme é a narrativa em primeira pessoa, numa sequência construída à moda de diário, sintetizando os encontros artísticos de Clara com Vinicius de Moraes, Toquinho, Bibi Ferreira, Paulo Gracindo, Ataulfo Alves, Paulinho da Viola. Seus tantos e merecidos prêmios, entre eles o prestigiadíssimo Roquette Pinto. Seu casamento com o poeta Paulo César Pinheiro e a bela parceria que entre eles se solidificou. Susanna Lira e Rodrigo Alzuguir declararam ter trabalhado por quase duas décadas na idealização do documentário. Ouvir a voz da própria cantora, narrando sua história, acaba por inserir o espectador na beleza dessa trajetória. Um percurso de luta, passo a passo, até uma explosão de sucesso fonográfico, jamais antes obtido por uma mulher na música popular brasileira. A voz de Clara é extraída das muitas entrevistas por ela concedidas à televisão e ao rádio. Essas falas de Clara são tecidas a outras entrevistas escritas que deu a jornais e revistas, para cuja oralização foi convidada a atriz Dira Paes. Engenho e suavidade tecem a poética singular do filme.

Clara Estrela mostra e relembra os shows de Clara, seus discos, sua transbordante religiosidade, os espetáculos que fez com Toquinho e Vinícius — Poeta, Moça e Violão — e com Paulo Gracindo — Brasileiro, Profissão Esperança (texto de Paulo Pontes com direção de Bibi Ferreira) — que bateram todos os recordes de público e hoje fazem parte dos clássicos da história da cultura brasileira.

Neste tempo em que novas homenagens e reverências são feitas à carreira da cantora, shows são realizados em sua homenagem, teses sobre vários aspectos de sua obra são apresentadas em cursos de mestrado e doutorado de várias universidades brasileiras. Alguns livros também têm surgido a analisar seu percurso. O jornalista Vagner Fernandes já lançou a segunda edição da biografia Clara Nunes — Guerreira da Utopia, pela Editora Agir. A escritora, ensaísta e professora da Faculdade de Letras da UERJ, Giovanna Dealtry, lançou o instigante Clara Nunes Guerreira, na Série O Livro do Disco, um belíssimo projeto da Editora Cobogó. Adriana Andrade, Edna Pires e Jones Pires publicaram O Mistério da Terra de Clara Nunes, pela Editora Madras.

Intérpretes das novas gerações têm, frequentemente, revisitado o repertório de Clara Nunes, inserindo algumas obras icônicas que ela popularizou, como o samba-exaltação "Portela na Avenida", de Paulo César Pinheiro e Mauro Duarte, e "Morena de Angola", de Chico Buarque.

Neste contexto, o filme Clara Estrela é exemplar: um retrato verdadeiro e altamente poético da trajetória especial de uma artista consagrada, que permanece com sua bela voz, dinamismo e talento a iluminar as trilhas do Brasil.

 

 

março, 2020

 

 

Beatriz H. Ramos Amaral. Escritora, poeta, ensaísta, é mestre em Literatura e Crítica Literária e autora de catorze livros, entre os quais Planagem (poesia reunida), Peixe Papiro e Os Fios do Anagrama.

 

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