"À noite, fugido ao pássaro inquietante, o homem

atormentado esconde-se do destino para superar

a sua condição de existência".    

Luís Filipe Sarmento, em KNK

 

 

Em seu novo livro, KNK (Lisboa: Poética, 2019) o premiado e respeitado escritor português Luís Filipe Sarmento navega em camadas profundas de três universos de linguagem, pensamento, estética, cultura e literatura — Kant, Nietzsche e Kafka — e não só os navega como neles e entre eles recria, de modo palpável e vibrátil, as pontes e conexões que possibilitam ao homem tecer o necessário resgate de sua liberdade e autonomia.  Abre múltiplos clarões entre as ideias centrais da obra e do legado dos dois filósofos e do escritor para romper as arcaicas limitações cuja absurda subsistência, na contemporaneidade, insiste em aprisionar e asfixiar as possibilidades do futuro.

Graças ao olhar de mestre do autor, seu texto refinado e sensível transita dinamicamente pelos fios lúdicos e lúcidos da história viva da razão, pelas vigas e alicerces fundamentais das matrizes do pensamento kantiano, pelo fogo das brasas que anunciam e erigem o eterno retorno de Nietzsche e pelos voos labirínticos da expressão e das grandes metáforas kafkianas, da recomposição estética da existência, em sua inteireza, cujo fundamento e ratio essendi reside na liberdade. Liberdade que é núcleo da consciência, do verbo e de todas as navegações possíveis. E escreve:

 

"Na ordem do tempo, a aventura de sair

para ser, do olho à boca, a experiência do gesto,

o corpo como primeira impressão".

 

Sair para ser: sempre, desde a origem, o gesto do início. Sair do confinamento mental gerado por vozes aniquiladoras. Sair dos desvarios, das alucinações, das divisões. Sair do automatismo, do vazio, da superfície dos dias. Por meio de vislumbres, pouco a pouco, ou por meio de gigantescos atos de rebeldia. Sair. Para que a vida seja o que deve ser. Para que a vida e o tempo tragam a polifonia da invenção e sejam muito mais do que a angústia previsível dos calendários e das ilusões e mistificações. Para que a força da linguagem encontre seu tom, suas águas e seu porto. Para que a voz do ser irrompa livre em todas as galáxias.

Pensamento e liberdade constroem instâncias de volúpias, arrebatam o leitor e avançam estradas e tempos inauditos. No corpus da vertigem, a razão e a des/razão, em ambas as faces, em ambos os hemisférios, reconectam-se, plenas, ao des/limite. O homem deseja ir além.  Além da mediocridade e da barbárie, além do cotidiano estreito e do automático vício do medo. Além do vácuo da criação. Além das fronteiras e do desânimo. Para permitir a fluência das ideias e a fertilização do prazer.

Ao estruturar poeticamente a tríade em que o rigor e a razão liberam e libertam os olhos das vendas do obscurantismo, da ignorância, da negligência e da insanidade, Luís Filipe Sarmento retoma, na audácia da palavra, a verdade e a essência, desvelando e desconcertando o carrossel de aberrações, insanidades e angústias que ainda ameaçam nosso tempo, nossos passos, nossa integridade. É coerência o outro nome da liberdade. A coerência da verdadeira lucidez dos loucos que ousam abrir as portas.

 

"nem o louco é um alienado

perdido nas distâncias do mar quando o mar é

a maré dos irrepetíveis horizontes  como páginas

da infindável biblioteca que busca em todas

as margens das pedras"

 

Na ousadia criativa de sua linguagem poética, sempre ávida por desfazer o conformismo morno dos insensíveis, KNK é o livro para o nosso tempo, por convidar o leitor à experiência da reflexão aguda e apresentar poeticamente as conexões inerentes a cada autor — Kant, Nietzsche e Kafka, construindo e ampliando pontes entre o pensar e o sentir, conjugando intersecções que potencializam ideias e efeitos da admirável navegação.

Na audácia dos infinitos, entrelaça-os numa galáxia verdadeiramente aberta para o equilíbrio e o reequilíbrio das asas-viandantes, pois "na febril tempestade do sísmico texto em labaredas, arquitectava paradoxalmente o desfile da revolta na sua ausência, intimando o futuro à marcha libertária da linguagem".

 

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O livro: Luís Filipe Sarmento. KNK.

Lisboa: Poética, 2019, 96 págs.

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setembro, 2019

 

 

Beatriz H. Ramos Amaral. Escritora, poeta, ensaísta, é mestre em Literatura e Crítica Literária e autora de catorze livros, entre os quais Planagem (poesia reunida), Peixe Papiro e Os Fios do Anagrama.

 

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