"Camões sorriu, levantou-se da barrica de madeira em que estava sentado e tudo explicou. Para proteger o manuscrito, como sempre, colocou-o dentro de sua sacola de couro, embrulhou-a de serapilheira grossa e enfiou-a dentro da barrica, que foi logo tamponada e bem vedada. Depois, afivelou a pequena pipa e ligou o cinturão de cabedal ao seu braço. Quando o tufão os arremessou pelos ares, mergulharam juntos nas águas. [...] Depois nadou em aflição até a costa, carregando a barrica sobre as águas, e lá adentro as suas escritas". (João Morgado, O Livro do Império, p. 56)

 

 

Na trajetória marcada pelo pleno domínio de recursos narrativos e pela elegante expressividade na construção da linguagem — elementos por si só reveladores da inconteste literariedade do texto — o premiado escritor português João Morgado tem conquistado os leitores e alcançado crescente prestígio da crítica ao mergulhar em diferentes épocas, fatos e personagens e criar os romances históricos Índias, Vera Cruz e, recentemente, há poucos meses, o seu extraordinário O Livro do Império, uma publicação do Clube do Autor.

Nesta incursão pelo século XVI e pelas raízes da poesia clássica (ou classicismo) português, o autor transporta-se para o momento da gênese de uma obra-prima internacionalmente consagrada, fazendo não só uma declaração de amor à literatura, à poesia, ao livro, à leitura, ao ato de escrever e à cultura, como também deixando entrever que somente a arte tem o condão de redimir e libertar o homem das forças destrutivas que, tantas vezes na história, têm se conjugado em prol do declínio moral, do obscurantismo e da barbárie.  

Mais do que narrativa ou relato dos acontecimentos relacionados à criação de Os Lusíadas (com o sabor dos pormenores e percalços que envolveram o nascimento da obra), tem-se, ainda, o retrato de fatos que culminaram com o seu resgate de um naufrágio e, posteriormente, sua proteção e guarda, sua preservação inusitada, mesmo em meio aos fortes grilhões da Inquisição, para a posteridade.

Em arrojado projeto que une ficção e história, após mergulhar na vida e no cotidiano do império e trazer à tona a voz, a vida e o percurso de Luiz Vaz de Camões, o romancista João Morgado, também poeta e contista, brinda os leitores com a reconstrução da linguagem e do estilo característicos da época por ele revisitada. E o faz com excelência e naturalidade, abrindo, com olho certeiro, todas as portas do tempo, ao descrever as peripécias camonianas vividas em terras e mares, apresentar o temperamento forte do poeta, o "Trinca-Fortes", contar-lhe os vários e intensos  amores e, naturalmente, trazer à tona a veia crítica e a ironia do mestre, que lhe valeram inimizades, perseguições,  prisões e dificuldades de toda sorte. Relembra Morgado, como traço indissociável do olhar de Camões, "a crítica mordaz a uma sociedade de novos-ricos, usurários e bandalhos, que gozavam  do beneplácito dos governantes e dos religiosos que, cuidando de emendar o mundo, não se emendavam a si próprios".

Ao louvar a glória e todos os feitos do povo português, no período posterior ao sucesso das grandes navegações e da descoberta de novas terras, o poema épico de Camões, marco da história da literatura da língua portuguesa, não deixa de fazer expressa menção a todos os sintomas de decadência moral, às mazelas humanas e à corrupção que se instalaram em sua cultura, apresentando uma verdadeira radiografia que não privilegia, mas também não oculta nem mascara e nem escamoteia a face negativa e doentia da sociedade da época. O retrato é completo e as verdades se alinham e se mesclam. Nem tudo foram glórias. Nem tudo são glórias.  Bem sabe Luiz Vaz de Camões e bem sabe João Morgado que o reconhecimento dos aspectos mais vis e miseráveis que corroem a estrutura moral e ética de uma sociedade constitui um dos primeiros passos para a desejada modificação e para a necessária redenção. Enfim, é fato inconteste que nenhum mal se cura sem o diagnóstico exato. Reconhecer os vícios e erros, os excessos, a arbitrariedade e a insensibilidade moral de um povo, de uma casta, de um grupo hegemônico ou sociedade é indispensável para promover os ajustes e reformas que possam entreabrir as trilhas do bem, especialmente, do bem comum. 

Há muito se sabe que o apogeu de todas as civilizações contém no próprio bojo a semente do declínio. Saber tecer o reequilíbrio, na linha que separa virtudes e vícios, coragem e covardia, é a chave da equação capaz de evitar a derrocada total de um povo ou de um projeto de poder. Portanto, o reconhecimento da totalidade do arbítrio, da corrupção e da degeneração de uma estrutura ou sistema propicia a retomada do rumo, da direção, da rota construtiva. Na sabedoria camoniana, são cantados todos os aspectos culturais que envolvem a cultura a e o tempo. Nessa visão ampla — que nada oculta — reside um dos principais elementos do prestígio alcançado pelo célebre poema épico Os Lusíadas. Na força muito bem alicerçada pela realidade reside a integridade da obra, que, aliada à estética e ao engenho supremo do mestre, logrou inseri-la em um lugar privilegiado da história e da literatura.

Em prodigioso entrelaçamento de metáforas, o romancista realça pontos em que o leitor vislumbra belos clarões:

 

"Nada parecia interessar-lhe. Só o deslumbre da escrita limpa de Camões". (p. 87)

"Estou a crer, meu bom mestre, que foi a obra que vos salvou a vida... e não o contrário". (p. 56)

"Por vezes era preciso ficar alienado a um canto, sentindo só o ondular da embarcação, o rugir do mar, sem nada fazer, sem nada pensar. Uma quietude de quem precisa descontinuar os dias, suspender a vida, pairar no tempo e esperar que ele corra. Ou tão somente a quietude instintiva de um bicho a tentar sobreviver". (p. 91)

 

Os percalços e imensos desafios enfrentados por Camões nas malhas da Inquisição são narrados por João Morgado com uma surpreendente riqueza de detalhes, com recortes de tempo, dias, noites, debates, silêncios, defesas aguerridas, acusações desprovidas de razão, discussões, ponderações, reflexões, mas o poema épico a tudo vence e o engenho de seu autor exibe para o leitor o melhor do homem: a habilidade em lutar por um bem imaterial, isto é, pela obra literária, que jamais perece e da qual toda a humanidade se tornou herdeira.

Expressando com justa emoção o resultado do exame de Os Lusíadas pela difícil censura da Inquisição, depois de intensos combates verbais, João Morgado transcreve a licença da Mesa do Santo Ofício para a publicação do livro, que, com acerto, já fora chamado de O Livro do Império. Eis o fragmento do texto final assinado pelo censor Frey Bertholameu Ferreira:

 

"... e por isso me parece o livro digno de se imprimir, & o Autor mostra nelle muito engenho & muita erudição nas ciências humanas. Em fé do qual assiney aqui".

 

No capitulo denominado "A letra impressa para todo o sempre", o romance narra os acontecimentos que se seguiram a essa aprovação. Escreve João Morgado: "Finalmente, Os Lusíadas estavam concluídos e autorizados pelo poder dos homens e de Deus. Dez cantos, 1102 estrofes de versos decassílabos", referia Camões com orgulho.

O ato de colocar os tipos, um a um, emparelhados numa pequena régua de encaixe — o componedor — até que, nas palavras do romancista, as mãos voassem e formassem linhas de palavras e frases inteiras, também é descrito em minúcias que conquistam e fascinam todos os que são devotados à escrita, à escritura, à leitura. Um destaque para o instante em que Luiz Vaz passa seus dedos trêmulos pelas letras de metal e sente a comoção natural de ver seu nome grafado para sempre na obra pela qual lutou contra o mundo, a natureza, o oceano, as tempestades, pela qual lutou contra todos. Com a força de sua luta, o poeta reconstruiu a linguagem e fez passar à história a perfeita radiografia estética de um povo, num período relevante para sua nação.

Autor polígrafo, navegando por outros gêneros literários e pesquisador de extrema competência, João Morgado firma-se, com seu trabalho cuidadoso, no cenário da literatura contemporânea.

O domínio de recursos expressivos bem dosados proporciona ao leitor uma experiência única e quase física: personagens são esculpidos pelo verbo; tornam-se quase tácteis. O engenho do autor é absoluto. Regente de sua linguagem, João Morgado refaz a história com tintas narrativas de mestre. Expõe bastidores da Inquisição, narra a vida dos portugueses do século XVI e nos relembra que a celebração de grandezas passadas convida à análise de desvirtuamento do poder do reino. Para frente, com arte e engenho, seguirá sempre íntegro o pensamento crítico e reflexivo, iluminado pela luz da liberdade.

 

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O livro: João Morgado. O livro do império.

Lisboa: Clube do autor, 2018, 344 págs.

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junho, 2019

 

 

Beatriz H. Ramos Amaral. Escritora, poeta, ensaísta, é mestre em Literatura e Crítica Literária e autora de catorze livros, entre os quais Planagem (poesia reunida), Peixe Papiro e Os Fios do Anagrama.

 

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