"é preciso o tempo todo para acender o mundo".

(João Rasteiro, "O Desconcerto de Deus")

 

 

Em seu décimo livro1, Pequena Retrospectiva da Encenação/Pequeña Retrospectiva de la Puesta (Toledo/Espanha: Lastura, 2014, edição bilíngue), o poeta João Rasteiro nos dá preciosa e inquestionável reiteração do conjunto de razões que o tornaram uma da principais vozes da poesia contemporânea produzida em língua portuguesa.

Como se olhasse retrospectivamente para a palavra ancestral e mirasse a argila de cada sílaba — entre o fogo e o silêncio, na urdidura de seu próprio tempo — o poeta se apresenta como ator e dramaturgo de suas bem cuidadas e reconstruídas cenas. Nos interstícios quase esquecidos entre a palavra e a medula, afina seu gesto, cravando no verbo o eixo corpóreo da existência. Na memória de um som transilábico, vestígios e cânticos dialogam pelos fios do avesso. E, numa táctil vibração de embriões e fábulas, João Rasteiro estrutura a verdade de seu fazer poético.

O recém-lançado volume do poeta e ensaísta português (cuja tradução para o espanhol coube a Xavier Frías Conde) apresenta três partes, intituladas "Skenê", "Proscenium" e "Thymele", cada qual contendo oito poemas. Cada conjunto fertiliza o outro e amplifica as propostas reflexivas oferecidas pelo poeta. Cada seção assimila-se a uma bem entoada escala diatônica, cujos tons constroem cidades, mandíbulas, víboras e borboletas, num saboroso confronto de espelhos e reflexos. Ao escolher os nomes das diferentes partes do antigo teatro grego para as seções de seu livro, o poeta desde logo apresenta ao leitor seu firme compromisso com a ideia de encenar (dramatizar ou des/dramatizar) o vasto conjunto de temas que percorre suas páginas poéticas, criando paisagens transbordantes de metáforas que se entrecruzam e se entrelaçam em prol de um projeto poético diferenciado, que teve início com a estreia, em 2001, com o livro A Respiração das Vértebras, prosseguindo, com a publicação de No Centro do Arco (2003), Os Cílios Maternos (2005), O Búzio de Istambul (2008), "Pedro e Inês ou As madrugadas esculpidas" (2009), "Diacrítico" (2010), A Divina Pestilência (2011), Tríptico da Súplica (2011) e Elegias (2011).

A poesia de João Rasteiro convida o leitor a uma espécie de iniciação, onde tudo se condensa e se transmuta, quase ritualisticamente, em instâncias particulares de ardências e desejos, no inexorável fluir da vida. Veja-se o belo poema "A Auscultação da Triangularidade", do qual se transcreve, a seguir, um fragmento:

 

 

"Vós, pardos pássaros urbanos

escrupulosamente voltados à inutilidade

do prenúncio dos dias,

 

vós, obscuros comparsas

da cegueira do sol, entre a terra e o céu

o íntimo reflexo da fractura,

 

vós, criaturas geradas entre a pedra

e o metal: a triangularidade divina,

homem, deus e  shakespeare

vós, espavoridos e adversos: eu

poesia e prosa, orifício e aresta, corpo

a derradeira estrofe do mundo".      

 

 

Um sucessivo desnudamento de camadas insere o poeta e o leitor num mesmo e fundo abismo. Em fios de vísceras sem promessas, delicadezas se articulam com golpes secos. Paradoxos permitem a aproximação — poeta, mão que escreve, tempo. Onipotente, o poeta faz do engenho seu lugar. Em outros instantes, reconhece a impotência inerente à condição humana, e instaura a palavra-nada, em todos os seus plurais e contornos. Como volúvel ave, sobrevoa a velocidade das alucinações. A heresia do vento se incorpora na escrita. O poeta tece os poros, perpassa as arestas e se alimenta de palavras acesas. Rema, entre pálpebras, fingindo a indução da piedade:

 

 

"Sou apenas uma mão que escreve"

 

 

Em "Skenê", o poeta-encenador parte da parte de trás, no oculto dos sentidos, recebendo "equações não-lineares" para o amálgama das horas, das névoas, dos momentos de orvalho. Conhece os caules e as estrelas. Ajusta seu gesto aos desejos secundários do corpo.

Em "Proscenium", junto à ribalta, mastigando o sustento que se move entre os clarões, o poeta invoca a força primordial do vazio. Ameaça os céus, oscilando entre o tudo que é nada, face/inter/face da espiral do tempo. Nessa surpreendente música, à frente do cenário, toda a sua cena é uma "peleja de vozes" — doce e paradoxalmente árdua polifonia, que desliza em "líquidos silêncios". Nesse ato, homenageia José Saramago, desenhando o branco horizonte dos lugares. Há fogo, sal, refúgio e cicatriz. O alfabeto recolhe o dia, permitindo à noite a existência das pétalas, das cadências e dos eclipses.

Em "Thymele", a mutação mais intensa expande sentidos por delicadas alamedas. O chamamento de línguas e mariposas constrói rasuras na pele. Fogo, brasas, memórias, anseio — de que matéria é tecido o desejo de expelir? Linhas, ecos, asas, toda permissão para os desígnios do vinho. O poeta está diante da completude do dia e brinca com a intermitência dos verbos. Recebe o chamamento da instabilidade, vê-se circundado por línguas e mariposas. Tangencia o incorpóreo de seu único e primitivo gesto, matriz de todos os passos. Submerge entre ondas e uivos. Outras vezes ousa a apreensão de silêncios e se hospeda no mais alto ponto de sua cordilheira. Deste ponto, vê uma cidade à espera de suas estações. Olhos d'água o recebem. E suas perguntas estão bem alinhavadas. Uma delas destaca-se e desprende-se: "e o que é a bem-aventurança de um corpo aceso?".

Ao cabo de seus três atos poéticos — que também representam os vários loci do homem, do narrador, do sujeito da escritura e do personagem tecido — João Rasteiro apresenta poemas em prosa, "O regresso dos amieiros" e "O desconcerto de Deus". Como a retomar os temas propostos pela infinitude de sua música.  Colhe gestos paternos, como "o calor no cume da alegria" e segue, lúdico, regente da espessura das fendas, dos lugares, das árvores, de todo esse conjunto timbrístico híbrido composto numa paisagem que dissolve a cada compasso.

Enquanto se reconecta com as máscaras ancestrais, um sopro cicatriza feridas abertas. Prossegue em direção às largas margens da noite. A terra e os frutos cognitivos estão no núcleo de cada cena. A inevitável perplexidade o acompanha. A estrada poética de João Rasteiro é cenário e é estrada viva. Reanimando as mínimas porções de tempo desmedidas.

Como escreveu Foucault, "o homem fora uma figura entre dois modos de ser da linguagem; ou antes, ele não se constituiu senão no tempo em que a linguagem, após ter sido alojada no interior da representação e como dissolvida nela, dela só se liberou despedaçando-se: o homem compôs sua própria figura nos interstícios de uma linguagem em fragmentos2".

Corporificando-se como ser de linguagem, que encena e re/encena os próprios passos, na rede de dispersões do tempo, o poeta abre e percorre todas fendas, penetra na intimidade caótica dos segredos e apresenta os índices do esfacelamento do eu. Naufraga em orgias e sabe que "os lugares são fabulosos" quando a pronúncia os assim os reconhece: simplesmente lugares. Mas emerge, concluindo que "os escolhidos foram amparados pelo arcanjo de marfim fluindo como rosas de feroz plenitude, que se reproduzem na noite da sua castidade", transitando entre ondas e nomes, em sua inevitável perplexidade.

Sobre a poesia de João Rasteiro, escreveu Graça Capinha: "Todo o trabalho de Rasteiro sobre a imagética nos faz pensar em metamorfose. Não se trata de sobreposição de contextos, mas de uma passagem sintática, extremamente subtil e veloz, que nos transporta de metáfora em metáfora, através de uma multiplicidade de contextos".

Nas páginas de Pequena Restrospectiva da Encenação, em que "as fábulas convergem a nudez da sílaba", o poeta pede um "infinito poema vazio dos profundos olhos límpidos dos cavalos". Entre seus instrumentos e gestos, no altar do caos, depura, com todas as brasas "a voz que apazigua os sonhos da argila". O poeta encena sua verdade primeira, ciente de que "debaixo do núcleo venerável das oliveiras uma serpente glauca adormeceu de cansaço". Por isso e por todas as pétalas dessa extraordinária retrospectiva estética, dizemos, com o poeta: "é preciso o tempo todo para acender o mundo". 

 

 

 

Referências

 

1RASTEIRO, João. Pequena Retrospectiva da Encenação. Trad. Xavier Frías Conde. Capa e desenho: Lidia López Miguel e Alfredo Luz. Toledo/Espanha: Lastura, 2014.

2FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas. Tradução de Salma Tannis Michail. São Paulo: Martins Fontes, 2002. 8.ed.

 
 

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O livro: João Rasteiro. Pequena Retrospectiva da Encenação.

Trad. Xavier Frías Conde. Capa e desenho: Lidia López Miguel e Alfredo Luz.

Toledo/Espanha: Lastura, 2014.

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agosto, 2014
 

 

 

 
Beatriz H. Ramos Amaral. Escritora, poeta e ensaísta, autora de A Transmutação Metalinguística na Poética de Edgard Braga (Ateliê Editorial, 2013), Luas de Júpiter (Anome Livros, 2007), Alquimia dos Círculos (Escrituras, 2003), Planagem (Massao Ohno, 1998), Poema sine praevia lege (1993, finalista do Prêmio Jabuti). Mestre em Literatura e Crítica Literária pela PUC/SP, é formada em Direito (USP, 1983) e em Música (FASM, 1985). Coordenou projetos de arte e literatura entre 1994 e 1997, na Secretaria Municipal de Cultura. Recebeu em  2006 o Premio Internazionale Francesco di Michele de Poesia (Caserta, Itália). Foi Secretária-geral da UBE/SP e diretora da entidade entre 1996/2005). Participa de diversas antologias no Brasil e no exterior. Gravou com o músico Alberto Marsicano o CD Ressonâncias (poesia), lançado em 2010. Site: http://www.beatrizhramaral.com.br.
 
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