gertrude stein by picasso
 
 
 
 
 

Mito e Fausto

 

Narrativa simbólica referente a deuses ou heróis encarnadores das forças da natureza e/ou de aspectos significativos da condição humana, o mito serve para ilustrar parte de uma visão de mundo de um povo. Conforme WATT (1997:16) mito é "uma história tradicional largamente conhecida no âmbito da cultura, e que encarna ou simboliza alguns valores básicos da sociedade". Estruturas míticas são constantemente exploradas em obras literárias, tendo como função permitir ao leitor fazer deduções sobre os acontecimentos futuros da história1.

 O mito de Fausto refere-se ao mágico errante Jorge Faustus (Alemanha 1480?– 1540?), "companheiro do Diabo" que, ao morrer deixou uma complexa lenda2 envolvendo feitiçaria, alquimia, estudos teológicos, prática de astrologia e sodomia. Este Fausto original exerceu um marcante impacto psicológico e social, incorporando a antiga tradição (da sociedade pré-científica que o vê como um mago) e a nova tradição (do Renascimento e da Reforma). De acordo com o mito, Fausto teria vendido sua alma ao diabo em troca de conhecimento, poder e prazer por vinte e quatro anos, ao final dos quais o diabo o carrega para o inferno onde o herói se arrepende de ter negociado a alma reconhecendo que tanto o conhecimento como os prazeres são ilusórios. A problemática faustiana reflete uma aspiração caracteristicamente ocidental — o fatal descomedimento decorrente de uma curiosidade insatisfeita. Fausto é uma idéia que floresceu em um período histórico no qual a autoridade sufocou as aspirações do individualismo e da criatividade renascentista que instigavam ao conhecimento. Em conflito ideológico e político com as forças da Contra-Reforma, Fausto tem que ser punido.

Grande parte dos mitos ocidentais refere-se a figuras ou acontecimentos clássicos e bíblicos. O Fausto, no entanto, é uma criação recente que deve sua fama póstuma ao autor anônimo do primeiro Faustbuch (1587), uma coleção de histórias publicadas em Frankfurt. Neste livro ações de magia e conhecimento ancestral, que despertavam enorme curiosidade, eram atribuídas a Fausto. As vívidas descrições que o autor faz do inferno e do estado de contínuo pavor que envolve o herói, bem como a criação do demônio Mefistófeles, são tão realísticas que inspiram medo no leitor. O Faustbuch tem uma qualidade didática da lição de moral aplicada argumentando que o cristão deve fugir da feitiçaria e temer a Deus. Pagar um alto preço, como acontece a Fausto, está relacionado à ideologia da condenação, do moralismo que recrimina os prazeres da carne, a experiência estética e o conhecimento secular — francas aspirações do Renascimento.

O Faustbuch foi rapidamente traduzido e lido por toda a Europa. Uma versão inglesa em prosa que apareceu em 1592 inspirou o drama Doctor Faustus (1598) de Christopher Marlowe. O escritor alemão G. Lessing explorou a salvação de Fausto em uma peça inacabada (1780) que interpreta a busca que Fausto engendra para adquirir conhecimento como algo de um teor muito nobre, e retrabalhou a versão original conferindo ao herói a reconciliação com Deus. Esta foi também a abordagem de J. W. Goethe, que criou a mais importante versão do mito de Fausto (1808-1832) cujo caráter profundo inclui um comentário irônico sobre as possibilidades contraditórias da herança cultural Ocidental.

Indo de encontro aos atemporais questionamentos do espírito humano, a figura de Fausto, com sua autoconsciência e sua crise de identidade, continua a exercer um grande fascínio até hoje. Entre os escritores do século XX que recontaram o mito de Fausto estão Fernando Pessoa (Fausto, fragmentos: 1907 a 1933), Gertrude Stein (Doctor Faustus Lights the Light, 1936), Paul Valéry (Mon Faust, 1946) e Thomas Mann (Doktor Faustus, 1947).

 

 

O Homem Moderno

 

Período de crise na história do humanismo ocidental, marcando a passagem da época romântica do século XIX para uma nova era no século XX, o Modernismo foi uma tentativa extremamente séria de compreender a natureza da "existência moderna". De acordo com KARL (1985:78), "Por volta de 1885, formava-se uma nova consciência, ou, podemos dizer, uma nova inconsciência, uma subestrutura da experiência que emergeria com os desenvolvimentos que associamos com o moderno e o modernismo".

Uma visão racionalista da natureza e da história sustenta o mundo moderno, que processa a mudança dos antigos valores, crenças e tradições e o surgimento de novas idéias sociológicas, políticas, morais, filosóficas, artísticas e tecnológicas. A visão romântica da natureza benevolente e divinizada é subvertida pelo crescimento das cidades, pela formação das "massas", pela mudança das classes e as certezas cristãs são minadas principalmente pelos questionamentos que derivam do Darwinismo.

No panorama da era moderna a 1a Guerra Mundial promove o nascimento da 'indústria bélica', da política global, e da indústria do horror. É também a era do estabelecimento do Capitalismo, das grandes empresas e fábricas, da produção em massa, da sociedade onde tudo pode ser vendido ou comprado, com efeitos cruciais sobre a natureza do trabalho, que passa a ser controlado, não-individual, sujeito às direções impostas pelo mercado. Aliados ao capitalismo moderno, aparecem o consumismo, a alta produção, a abundância e os mecanismos de propaganda. Até a cultura — então estandardizada — é transformada em bem de consumo no mercado do entretenimento e da informação pré-digerida. Com a comunicação em massa favorecida pelos avanços tecnológicos, ocorre um nivelamento cultural empobrecedor e que apaga as noções de profundidade cultural, consagrando o vulgar como "clássico facilitado".

Em reação a esses "males do capitalismo", Karl Marx denuncia que a tecnologia, o domínio do mercado e a natureza global do capital sustentam um sistema que divide a sociedade entre 'aqueles que lucram' (os proprietários dos 'meios de produção') e 'aqueles que são explorados' (o proletariado, a classe dos trabalhadores vistos como meras peças das máquinas).

Refletindo o desejo do homem moderno de estabelecer a organização e a distribuição racional do espaço às pessoas, a urbanização faz com que a cidade se transforme no ponto focal da era moderna reproduzindo as contradições da coletividade de homens isolados, da "sociedade de estranhos" onde a identidade é obstruída pelas relações formais. Também os meios de transporte — agora incrementados pelo advento do automóvel e do aeroplano — possibilitando o trânsito e diminuindo as distâncias entre pessoas, objetos e idéias, fazem parte do paradigma moderno.

Ligado a essas mudanças ocorridas nas duas últimas décadas do século XIX, que incluíram o crescimento das estruturas urbanas, industriais e sociais, o homem moderno passa a questionar os modos convencionais de se fazer as coisas. Muda o mundo exterior e também o interior. Como F. Nietzsche argumentou, este novo mundo exige uma "nova arquitetura mental", uma nova percepção se faz necessária, incluindo o princípio da subversão, a consciência da auto-destruição, a rejeição, a negação e a insistência nos extremos, nos radicalismos, a rebelião contra a autoridade, a denúncia do tédio e do vazio, e a sugestão do olhar para o futuro.

Descobertas no campo da física, mostrando que os fenômenos são sucessivos no espaço e no tempo, fazem sucumbir a idéia da existência contínua. Em virtude destas descobertas, um dos aspectos-chave na era moderna foi a ênfase no momento, no presente, no "agora descontínuo" — uma nova concepção do tempo que resulta em dois extremos: uma impessoalidade e frieza, em contraste com uma intensa subjetividade, notoriamente contraditórias como o homem moderno. Esta atmosfera de contradições reflete o entusiasmo pelo progresso e ao mesmo tempo a ansiedade que o homem sente pelas pressões impostas por este mesmo progresso.

Face às novas descobertas científicas, à subversão do familiar, das idéias e cenas tradicionais, o homem moderno passa por um processo complexo de ordenamento e reordenamento do ego. Como resultante da inclusão das noções da multiplicidade do inconsciente, do polipsiquismo, da segmentação do ego, passa a ter prevalência um intenso senso de perda do todo que é substituído pelo fragmento.

Os paradoxos que envolvem o mundo moderno são abundantes. Como ilustra KARL (1985:78), as explicações "tornam-se parte de um infinito que, em termos religiosos, se nega. Enquanto o Darwinismo social impele em direção a uma nova visão determinista e, portanto, limitada, do homem, a síntese orgânica e a psicologia dinâmica impelem na direção oposta, para uma visão que confere ao homem um potencial ilimitado. As brechas aumentam, e o moderno nelas tropeça".

Na medida em que o conhecimento avança em direção à definição precisa, acaba revelando ao homem moderno uma extraordinária diversidade. Em busca da luz a ciência se afunda na obscuridade sem fim. Em um processo auto-consciente de quebra com as formas e noções tradicionais, imerso em introspecção e anomia, o homem moderno é aquele indivíduo que se despreendeu da sociedade, afastado do campo mais amplo do sentimento e do pensamento; "cheio de vazios" e melancolia, ele tem apenas a consciência do abismo interior.

Cumpre por fim assinalar que no cenário moderno há um crescimento intenso e positivo das formas artísticas de percepção. Visando mais do que originalidade, os princípios das artes de vanguarda transmitem, como coloca BRADBURY (1988:19), uma noção de que "as artes modernas têm a obrigação especial, o dever vanguardista, de ir à frente de sua época e transformá-la, ao mesmo tempo em que transforma a própria natureza das artes".

A idéia de se iniciar uma "tradição do novo" impõe às artes uma reavaliação do passado e um sólido compromisso com o presente e o futuro, tentando, através de descobertas e ousadias, encontrar novos caminhos para a "experiência da modernidade".

Tudo muda para o homem moderno e, sendo que as transformações no campo das artes decorrem de mudanças sociais e ideológicas, muda também a filosofia que subjaz às artes. Refletindo a angústia moderna, as expressões artísticas engendram a propagação da conscientização sobre o declínio histórico da humanidade e descrevem a intensificação da fragilidade humana e da existência. Em substituição aos protagonistas das grandes narrativas do século XIX que eram dilacerados pelo conflito entre danação e salvação prescritos pela dogmática sociedade de então, a literatura (e agora também o cinema) do século XX gerará protagonistas consumidos pelos novos tumultos da consciência, que investiga a natureza das impressões transitórias e principalmente o mundo oculto por trás da mente consciente, espelhando assim discurso, emoções e pensamentos característicos do homem moderno.

 

 

O Fausto de Stein

        

Peça teatral em três atos Doctor Faustus Lights the Light, escrita em 1938 pela escritora norte-americana Gertrude Stein (1874-1946), mas publicada postumamente em 1949, é uma narrativa dramática sobre o mito de Fausto3. Esta peça, que a autora denominou de "opereta"4, mostra um forte investimento na oralidade do texto, incluindo uma linguagem aberta a coloquialidades e o uso intercalado de cantigas e rimas comuns. Remetendo tanto à prosa quanto à poesia, tanto ao dramático quanto ao musical, o Doctor Faustus de Stein é um texto com "caráter de fronteiridade", onde se percebe a diluição das categorias clássicas da forma.

         A exploração do mito de Fausto efetuada por Stein reflete a natureza faustiana comum ao homem ocidental mas, acresce-se aqui que, já que este homem sofre algumas transformações na era moderna, também o mito é retrabalhado resultando em um Doctor Faustus moderno, com desdobramentos e características mais significativas se relacionados ao contexto onde se situa o homem moderno.

         O Fausto original era um nigromante, manipulador dos mistérios do oculto e capaz de prever o futuro. O Fausto de Stein é o resultado da enorme expectativa depositada no futuro e que, por frustrada, condenou este homem a vítima de suas próprias crenças equivocadas. Este Fausto vende sua alma mas descobre que na verdade, sendo ele um típico homem do novo século, não tem alma para entregar, é apenas um autômato, fruto da era tecnológica.

         Com a alma já negociada em troca da invenção da luz elétrica, o Fausto steiniano é quase que um Prometeu moderno, um deus da luz artificial. Acorrentado, o Prometeu mítico recebe a punição de Zeus e tem o fígado eternamente bicado por uma águia. Já o Doutor Faustus tem a consciência atormentada pelo infortúnio de ter ultrapassado os limites na busca pela luz do conhecimento mas não delega a ninguém, nem a um deus, a culpa por sua situação angustiante, ao contrário, vê a si mesmo como um demiurgo:

 

Faustus

 

(...) O que eu sou. Eu sou Doutor Faustus que sabe tudo tudo consegue tudo e você diz que foi através de ti mas imagina, se eu não tivesse pressa e tivesse assumido meu tempo eu teria sabido fazer luz elétrica branca e luz do dia e luz da noite (...) [Ato I, Cena 1, p. 17]5

 

(...) eu sou o único que pode saber o que sei então diabo algum enfim pode me dizer que sim e eu poderia saber sem alma alguma pra vender, sem haver coisa alguma no inferno pra ver. O que eu sei eu sei, eu sei como eu faço o que eu faço quando vejo e entrevejo um jeito sempre algum dia eu verei um outro dia (...) [Ato I, Cena 1, p. 20]

 

         Subvertendo a condição primeira do herói mitológico, em Stein o Doutor Faustus, desde a cena de abertura da peça desdenha diabo e inferno:

 

Fausto resmunga

 

O diabo o que o diabo o que me importa se o diabo bate à porta. [Ato I, Cena 1]

       

(...) e quem se interessa pelo inferno só um diabo se interessa pelo inferno porque é todo seu prazer eterno (...) sai daqui diabo, não me interessa se você pode comprar ou se eu posso vender... [Ato I – Cena 1, p. 20]

 

         É, entretanto, torturado pela presença de outras pessoas (já no Ato I, cena 1, a canção "Me deixem só" ilustra que, como o Fausto original, Doutor Faustus tem necessidade de isolamento) não contando com ninguém para processar os problemas que o afligem, como é enfatizado no decorrer da peça:

 

Doutor Faustus

 

Vão embora homens e mulheres, crianças e cãezinhos lua e estrelas vão embora me deixem só me deixem ficar sozinho nenhuma luz reluz, eu não enxergo nada, vá embora mulher e me deixem menino e cãozinho me deixem ficar sozinho eu não preciso de luz pra me dizer o que reluz, vão embora, vão embora vão embora. [Ato III, Cena 1, p. 58]

 

Pateticamente quase ao final da peça Doutor Faustus diz:

 

(...) eu não preciso do diabo eu posso ir pro inferno sozinho. Me deixe só me deixe só eu posso ir pro inferno sozinho (p. 67)

 

         Na verdade nesta peça o tema central não é apenas a exposição de um dilema individual; crucial para o Doutor Faustus é a torturante relação do homem com a Luz, representada materialmente pela lâmpada elétrica. Stein explora a problemática que deriva do tratamento do teme presença/ausência da luz, conferindo ao leitor possíveis inferências simbólicas que podem conduzir à interpretação da luz como representação dos ciclos históricos (a luz solar morre toda noite), ou as referências à luz divina, espiritual, ou ainda à luz da razão, da iluminação. No texto de Stein a luz elétrica apaga a luz natural — metáfora do conhecimento e da tecnologia no mundo moderno; não há mais luar, só a luz artificial e mefistofélica.

         Quando o mundo começou, fez-se a luz. Fiat lux é um imperativo para a ordenação do caos. Subvertendo esta ordem, quando o mundo sofre o caos da modernidade, fez-se a luz elétrica. "Disse Deus: Haja luz; e houve luz. E viu Deus que a luz era boa; e fez separação entre a luz e as trevas"6. Uma vez mais demiúrgico, Doctor Faustus opera uma luz que é símbolo da evolução da obscuridade e não a saída das eras trevosas.

         No texto de Gertrude Stein há uma personificação das luzes: "...as luzes começam a dançar e uma a uma saem"; "As luzes elétricas reluzem docemente". A luz representa muito para Fausto que, no dueto com seu cão (p. 22) diz: "Lave-me. Lave-me na luz elétrica" como se estivesse na cerimônia de seu próprio batismo. No entanto, embora para isso tenha ele empenhado sua própria alma, o conhecimento da luz mostra-se insatisfatório:

              

Doutor Faustus

 

(...) e eu eu que sei tudo continuo tento tanta luz que a luz não reluz e pra que serve afinal a luz, você descobre quando não a tem, você gira às cegas quando não a tem, e eu queria fazê-la (...) [Ato I, p. 18.]

 

Faustus

 

(...) e agora talvez através de ti eu comece a saber que é tudo apenas isso, que a luz porém reluz não será nunca nada além de luz, e que qualquer luz é só uma luz e agora não há mais nada nem de dia nem de noite mas só uma luz. [Ato I, Cena 1, p. 20]

 

         Por fim Doutor Faustus conclui que seu acordo com Mephisto foi absolutamente infrutífero:

 

Faustus

 

(...) eu não ligo pra luz deixem-na apesar disso ser luz, eu não ligo pra coisa nenhuma só penso em ser eterno queimando no inferno. [Ato III, Cena 2, p. 64]

 

Pela desmesurada busca pela luz, Faustus paga com a cegueira — não a danação eterna da alma, mas a impossibilidade de ver é sua condenação:

 

Doutor Faustus diz

 

(...) não hoje em dia não pra hoje não pra qualquer dia eu posso olhar e ver, não eu não posso olhar não eu não posso ver coisa qualquer (...) [Ato I, Cena 3, ps. 37-38]

         

Faustus murmura em voz baixa

 

Eu vendi minha alma e a luz elétrica ficou tétrica pois agora ninguém nem eu nem ela nem eles nem ele está interessado nisso e eu e eu não posso ir pro inferno eu vendi minha alma pra fazer a luz e a luz reluz mas não produz nada na minha retina puxa que sina e seria melhor oh sim seria eu preferia ir pro inferno se eu fosse com toda a força e então ir pro inferno oh sim seria belo. [Ato III, Cena 2, p. 63]

 

Em Doutor Faustus há uma incisiva demonstração da alteração dos valores representada pelo dia (o século XX?) que começa à noite:

 

O menino

 

O dia de hoje começa hoje

Hoje em dia

A lua inicia o dia

 

Doutor Faustus

 

Não há lua no dia de hoje em dia.

 

Silêncio pesado

 

Você faria o que eu faria

Não há lua no dia de hoje em dia [Ato I, Cena 1, p. 24]

 

Além de Faustus e do menino, também o cão faz observações sobre uma lua inexistente:

 

Sem luar sem brilhar caro Doutor Faustus tenho que concordar, eu sou um cão sim sou só isso eu sou eu sou um cão e eu uivo pra lua, é sim é sim eu costumava fazer isso eu costumava uivar pra lua eu costumava fazer isso sempre e agora agora nunca mais, eu não posso, é claro que não posso, as luzes elétricas elas fizeram isso não há mais luar e se não há mais luar então não há mais lua e se não há mais lua eu não vejo mais ela e se eu não vejo mais ela eu não posso mai uivar pra ela. [Ato III, Cena 1, p. 57]

 

Ampliando ainda mais a problemática da presença ou ausência de luz encontramos a figura de Mephisto, com o qual Doutor Fausto estabeleceu seu pacto. De acordo com o mito de Fausto, Mefistófeles ou Mefisto7 é um espírito do Diabo. Um dos Sete Grandes Príncipes do Inferno, considerado uma agente de Lúcifer, Mefistófeles, embora nunca tenha se tornado parte integral na tradição da magia e da demonologia, foi por muito tempo uma figura que inspirou medo. No Doctor Faustus de Stein a idéia de um Mefistófeles assustador naufraga pois pressupõe a existência de uma instância superior, um céu e um inferno. Esta idéia já não se sustenta em uma era de total agnosticismo como a era moderna, onde a morte é banalizada e não está mais ligada ao encanto  da "alma imortal" e transcendental. O Mefistófeles de Stein não é o "amigo próximo", o criado fiel e sem defeitos, ele nem mesmo penetra no âmago de Faustus. É uma figura que a princípio parece enfraquecida e desmoralizada:

 

Mephisto chegando mais perto

 

(...) Não acredite neles quando dizem que o diabo mente, ele engana oh sim ele engana mas não está  mentindo não meu caro Doutor Faustus não diga que oi diabo mente [Ato I, Cena 1, p. 18]

 

Por vezes Mephisto aparece no papel do Diabo enganado: "Sim fui eu que fui enganado eu o diabo que ninguém pode enganar sim fui eu que fui enganado" (p. 65) e quase ao fim da peça, "Sempre enganado sempre enganado eu tenho uma vontade de aço e sou enganado sempre sempre enganado venha Doutor Faustus eu tenho uma vontade de aço e você vai pro inferno" (p. 69). Mas ao final da peça Stein magistralmente converte esta imagem inicial de diabo derrotado e, de acordo com a própria observação irônica de Mephisto quando diz "Um diabo pode sorrir por enquanto seja o que for que for dar no entanto..." (Ato I, p. 19) o leitor se surpreende ao compreender a dimensão real deste personagem que em si carrega uma possibilidade interpretativa extraordinária se pensado como o correspondente dos "males da era moderna".

Nem ingênuo, nem impotente Mephisto, que aparentemente some durante alguns momentos da peça, apenas assume outras formas no desenrolar do enredo. É ele a Serpente que, embora pudesse ser a princípio ligada a Fausto (como símbolo da medicina, do médico adivinho), introduz a dúvida em Margarida Ida e Helena Anabela que, depois de picada, começa a questionar "E eu eu sou Margarida Ida ou eu sou Helena Anabela" (p. 31).

No contexto bíblico, a serpente encarna o Mal, a figura do Diabo, que causa a queda do Homem; sugestivamente há na peça a menção a duas figuras opostas mas sempre relacionadas, o homem — supostamente o mais evoluído dos animais, e a serpente, animal no início do esforço genético, que aparecem através da figura do "homem que veio do mar" (um desdobramento de Mephisto).

          

Ele diz

 

Eu sou o único ele e você a única ela e nós somos o único nós. Venha venha está ouvindo venha venha, você deve vir pra mim, jogue fora a víbora jogue fora o sol jogue fora as luzes até que não reste mais nada. Eu não sou um zé-qualquer eu não sou um joão-ninguém eu sou o único alguém, você tem que me Ter porque sou quem você quer. [Ato II, p. 51]

 

Aludindo ao homem ser ao mesmo tempo o dia diabo, Margarida Ida e Helena Anabela diz: "Ninguém é alguém quando há dois, um mais um são dois, é como feijão com arroz, pois olhe pra trás olhe pra trás você não é um mas sim dois". [Ato II, p. 51]. Embora Margarida Ida e Helena Anabela não sucumba ao Homem, é ironicamente ao "Senhor Serpente" que ao final da peça o menininho e a menininha fazem um pedido (como se uma prece): "Por favor Senhor Serpente escute a gente ele é ele e ela é ela e a gente é a gente por favor Senhor Serpente escuta a gente" (p. 69).

         Um estereótipo duplo da resistência e do ataque ao mesmo tempo, Margarida Ida e Helena Anabela é uma personagem que catalisa as figuras femininas da obra de Goethe e também remete às mulheres detalhadas por E. A Poe. O binário de Margarida Ida e Helena Anabela suscita ainda uma referência direta e inteligente à estrutura binária do computador, a configuração binária dos circuitos elétricos ("ligado = um = verdadeiro" e "desligado = zero = falso").

         Se no tratamento de Goethe Fausto, o sensualista intelectual, é em si a contradição com "duas almas dentro do peito", no Doutor Faustus de Stein é Margarida Ida e Helena Anabela que encarna a metafísica do mundo natural e trava uma luta mental a respeito de sua condição de ser no mundo. Ela, e não Fausto (cuja alma já está niilisticamente comprometida desde o início da peça) deve decidir se recusa ou aceita as propostas do diabo. Uma figura que a princípio parece dominada por questões de ordem existencial, Margarida Ida e Helena Anabela sofre uma brutal transformação quando, após ter sido picada pela serpente, aparece segurando uma víbora artificial e com um halo de luz de vela ao seu redor. É quando canta: "Eu sento e sento de costas para o sol eu sentei e sentei de costas para o sol" (p. 47) tornando explícito que voltou-se contra a luz natural, estando portanto aparentemente também dominada por Mefistófles. Mas ainda não se sabe ao certo o destino reservado a Margarida Ida e Helena Anabela. Ao se aproximar da cena final de Doutor Faustus Margarida parece personificar a força da mulher que substitui a do homem e a esperança de que só ela pode recuperar a luz natural (terá ou não vendido a ama à serpente?):

 

A mulher na janela

 

(...) Doutor Faustus diz que é assim, que só ele pode fazer a noite virar dia mas agora estão dizendo, estão dizendo que uma mulher pode fazer a noite virar dia, estão dizendo que uma mulher e uma víbora a mordeu e ela não se machucou e a víbora lhe mostrou como e agora ela pode fazer a noite virar dia. [Ato III, Cena 1, p. 58]

 

         Por fim Margarida Ida e Helena Anabela, em uma reversão total de sua posição inicial de figura frágil, apresenta um discurso de caráter notoriamente feminista e estabelece a possibilidade de novas interpretações da figura feminina na peça:

 

Margarida Ida e Helena Anabela

 

Nunca nunca, nunca nunca, você pensa que é tão esperto você pensa que engana, está certo, você pensa que pode ser velho e você é jovem e velho como todo mundo mas nunca nunca, eu sou Margarida Ida e Helena Anabela eu não conheço homem nenhum diabo nenhum nem víbora nem luz eu posso ser qualquer coisa e qualquer coisa é sempre sempre concreta. Ninguém pode me enganar nem um homem jovem nem um homem velho nem um diabo nem uma víbora (...) [Cena final, p. 68]

 

         Tendo traçado comentários sobre os principais personagens da peça cumpre ainda citar como elemento de interesse em Doctor Faustus Lights the Light a presença do amigo de Doutor Fausto, o cachorro, que repete continuamente "Obrigado", em uma alusão aos trabalhos de condicionamento dos reflexos de animais desenvolvidos por Ivan P. Pavlov (1848-1936; prêmio Nobel 1904) o que adquire confere à peça um certo teor tragicômico.

         Por último, incluímos também como relevantes para o adensamento do texto a presença do coro (às vezes apenas vozes isoladas)8 que durante toda a peça traça comentários, apresenta resumos da ação ou se manifesta como uma força que intervém na ação (um eco acusatório, como ilustram os exemplos abaixo:

 

Há um repentino Psiu! E o coro distante diz

 

Pode ser pode ser o nome dela o nome dela pode ser Margarida Ida e Helena Anabela pode ser ela. [Ato I, Cena I]

                   

E o coro canta

 

Pra que serve Doutor Faustus pra que serve você no inferno também se você não se atreve a cuidar dela se você não se atreve a curar esta única unicamente esta Margarida Ida e Helena Anabela [Ato I , Cena 3].

 

 

Conclusão: Gertrude Stein liga a luz

 

         Gertrude Stein produziu uma obra considerável que inclui peças teatrais, libretos de ópera, poemas, biografias e autobiografias, romances, palestras e ensaios, crítica literária e meditações filosóficas. Através de sua escritura personalíssima Stein desconstruiu e reconstruiu história e cultura, gêneros literários, teorias de representação e principalmente a linguagem, esta considerada uma re-criação e não uma imitação da realidade. Atenta às descobertas do final do século XIX no campo da psicologia, que investigam a influência corrompedora do tempo sobre o discurso, em seus escritos Stein focalizou o “presente contínuo” em relação com o permanente, onde as palavras não estão impregnadas de referências externas e nem submetidas às restrições que derivam da linearidade. É natural que, tendo Stein alterado tantos aspectos da tradição literária, a compreensão de sua obra nada convencional e d suas radicais novidades estilísticas (que questionam toda a estrutura e a sintaxe da narrativa tradicional) tenha se dado de forma ainda apenas parcial. Entretanto a magnitude da escritora e sua influência sobre a literatura universal têm sido vigorosamente reavaliadas. Deste redimensionar o papel de Stein e sua produção literária se solidifica a importância da escritora não só como base da consciência moderna, mas também sobre a pluralidade pós-moderna.

         A produção teatral de Stein, pelo que tem de não ortodoxa, estabelece a autora como uma das precursoras do tragicômico absurdo. A leitura analítica de Doctor Faustus Lights the Light revela a habilidade e a criatividade que Stein tem em traduzir esteticamente a transformação que sofre o mundo no início deste século, focalizando o espírito do novo homem, apontando para a crise e para a necessidade de urgente mudança na visão humanista, a ser regida por uma nova autoconsciência. Sabendo que os mitos refletem a atmosfera de um período de transição social e intelectual para outro, podemos entender quão valiosa e apropriada é a escolha do mito de Fausto na construção, em palavras, de uma crítica à realidade pluralista da época moderna. Esta peça se configura como uma nova maneira de dizer o que é real.

         Quando escreve Doctor Faustus Stein, dramatizando a invenção e a importância da luz elétrica, preconiza o estabelecimento da era da comunicação em massa e suscita uma investigação filosófica cuja extensão se expande até nossos dias de "era tecnológica" alimentada pela luz, historicamente marcando uma antevisão do interesse pelas relações entre eletricidade e a nova era e o nascimento do computador — o "cérebro eletrônico", a "inteligência artificial".

         Em Doutor Faustus Stein incisivamente desestabiliza a verossimilhança do discurso tradicional, desmontando os métodos familiares de estrutura causal, de exaustão analítica, da mensagem moral e da emoção lírica; com um vocabulário deliberadamente limitado, a peça reflete a mesma repetição que acontece no mundo; o mundo é opaco, a linguagem é opaca, o mundo é fraturado e aquela que o denuncia é uma "linguagem fraturada". Os personagens da peça reproduzem o declínio histórico e filosófico da humanidade e o papel de figura frágil do homem que, no cenário moderno aparece apenas como protagonista "desmoralizado" e contraditório como Fausto (e Mefisto, como antagonista igualmente desmoralizado), inconsistente e dividido como Margarida Ida e Helena Anabela. Metáfora do homem moderno este novo Fausto recebe um castigo moderno: a "luz" que ele inventou, o conhecimento avançou, mas não estabeleceu uma melhora na condição humana e sim trouxe mais obscuridade, ampliando infinitamente o processo de busca e a angústia que deriva desta busca.

         Pode não ter concebido uma obra-prima com as características de outros Faustos literários, mas com seu Fausto Stein precede muitos autores na consciência do "colapso da cultura tradicional". Iluminando o caminho inaugural para a percepção do mundo e do homem moderno, Gertrude Stein liga uma luz. Post tenebras lux. A luz sucede as trevas.

 

 

Notas

 

 

junho, 2009
 
 
 
 
Luci Collin (Curitiba/PR, 1964). Poeta, ficcionista e tradutora. Doutora em Letras pela USP, é professora de Literaturas de Língua Inglesa e Tradução Literária na UFPR. É autora, entre outros, de Todo implícito (poesia, 1998) e Acasos pensados (contos, 2008). Traduziu Re-habitar: ensaios e poemas, de Gary Snyder (Azougue, 2005), Etnopoesia no milênio, de Jerome Rothenberg (Azougue, 2006) e Contos irlandeses do início do século XX (Travessa dos Editores, 2007).
 
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