Lisadog você acabou comigo e por isso estou cada vez melhor. Que será que eu tomei aquele dia no bar. Acordei vendo coisas estranhas e será mesmo que acordei fiquei pensando que não mas depois entendi que aqueles sapatos eram mesmo os meus ali no chão do quarto era eu sim. Porra vi você no meio daquela história que eu tinha contado na sexta lembra. Helencow me disse que eu tenho cara de sapo e ficou a noite inteira falando Você tem cara de sapo com uma seriedade assustadora chatíssima essa garota pena que é tão bonitinha eu queria come-la mas você vem primeiro Lisadog foi só besteira isso que eu disse daquela máquina de repetir Você tem cara de sapo. Olhei a lista de tudo que você anotou e ouvia a tua voz explicando como é tudo tão necessário. Olhei horas pra aquilo e depois só via a tua letra até a voz sumiu. Não concordei com um monte de coisas mas eu não entendo mesmo nada por isso você acabou comigo lembra. Porra você tem obsessão por guardachuvas fala três vezes na mesma coisa e a mesma cor. Três vezes já é obsessão o cara falou aquele dia que você tava com aquela sainha amarela e de botas. Não vai conseguir tudo o que tem na lista porra dane-se você é meio difícil e nem sei porque eu acabei pegando essa listinha que é que eu tenho a ver com essa história toda. Devia era te dar uma porrada na cara e falar Você acabou comigo garota tá pensando o que. Brincadeira não ia tocar um dedo em você se não fosse com jeito sabe como. E ainda por cima eu tenho cara de sapo até a Lauriebitch já estava sabendo e foi a primeira coisa que ela disse aquela segunda-feira que chegou aqui tocou a campanhia e depois sentou no sofá definitivamente sabe aquele jeito dela. Então as chances que eu tenho com você são remotas eu sei Lisadog: aceitaria ter a seu lado um sapo para sempre. Porra sapo não podia ser uma coisa menos verde. Tá bom você tá certa comi a Lauriebitch mas você conhece o jeito daquela garota que mais eu podia fazer. Ela é estranhíssima  tem mania de grandeza e disse que todos os caras dizem que ela tem os peitos mais lindos do mundo não é ridícula. Do mundo porra se ainda fosse do bairro da rua do prédio não é um exagero. Se você não vier na quinta eu vou ligar pra Helencow porque eu lembrei das pernas dela. Tá bom: eu fico lembrando das pernas dela afinal você não acabou comigo mesmo. Então o que eu vou esperar. Então porque é que eu tenho que ficar esperando você telefonar vir aqui mandar lembranças. Aquele negócio que eu tomei aquele dia no bar era uma bomba  por isso é que eu fiquei esfarelando por dois dias. Você veio aqui. Sabe que eu me arrependi de ter te contado aquela história porque depois você apareceu lá naquele tipo de sonho e se tinha acabado comigo o que é que tá fazendo no meu sonho porra. É amanhã que eu vou ter que falar pra aqueles caras. Não não sei sobre mesmo o que acho que é sobre números deve ser né. Senhoras e senhores com vocês Mark Quest não sabe nem o meu nome direito e aquele monte de gente vai ficar me olhando me olhando como eu fiquei olhando pros meus sapatos aquele dia e depois vão se encher de olhar pra minha cara de sapo e vão pensar Este cara é um idiota, não foi assim que você fez. Lisadog queria comer você sem aquela sainha mas as botas ficam. O que é que você faz com tanto guardachuva se defende. A Susanfly me mandou um bilhetinho sutil com duas palavras adivinha quais. Não não foi Me come foi Quero você muito mais romântica não acha. Devia mesmo encarar aquela vagabundinha afinal sapo come mosca mesmo ia ser fácil e já que você acabou mesmo comigo a Susanfly pelo menos ia sair contente desta história. A Debbierob disse que ela nunca troca a calcinha a Susanfly. Sabia que ela já comeu ela. Porra como ela quem. Aquela nojentinha da Debbierob que leva tudo quanto é garota da gente pra cama e depois estraga toda a história porque a mulherada fica querendo que a gente faça cada coisa. Quando uma garota chega pra você com aquele olhar de preliminares pode saber: passou pela Debbierob aquela desmancha prazeres. Você não deixou a Debbierob comer você deixou. Porra nem quero pensar nessa coisa vá fala se deixou deixou Lisadog. Não vou dar a mínima pra lista tá sabendo. Você que se vire com os teus probleminhas de símbolos isso é coisa de intelectual e você não é intelectual no fim das contas. Eu não sou e por isso você acabou comigo. Uma vez comi uma burrinha parece que o nome dela era Jennyyes e pensava que entendia de arte moderna e ficou duas horas me falando sobre um cara pintor que pintava putas e ela era isso aí por isso se identificava acho que com o cara e ele não era viado tinha tido um monte de mulheres penduradas nele e era uma história comprida só me lembro que era comprida sabe qual cara é. Você entende de arte moderna. Que que é arte moderna sabe.  Aquela coisa que eu tomei no bar era arte moderna fez um quadro na minha cabeça e você estava no quadro e eu não tinha nada a ver com um sapo e eu não tinha passado nem futuro e não ficava olhando sapatos nem comendo moscas será que você vai voltar. Claro que não você acabou comigo lembra disto. Eu é que não paro de lembrar: uma égua e um cavalo num campo sem ninguém em volta porra eles brincam o tempo todo o cavalo é imenso e a égua adora aquela história toda e claro que tem alguém olhando sempre tem alguém olhando pra entender o sentido das coisas sempre tem olhos na história não tem. Então faz a gente entender que fazer uma listinha mesmo com letra boa não serve pra nada nem comer uma garota que foi comida antes por outra nem saber tudo sobre a vida do cara que pintava putas nem saber o que você faz com tanto guardachuva nem saber de quem mesmo eram aqueles sapatos nem saber quantas vezes aquela garota troca de calcinha nem saber se os sapos enxergam verde nem saber se os cavalos e suas éguas sabem que estão sempre sendo vistos nem saber mesmo por que é que você acabou comigo. E aquilo que eu tomei naquele bar aquele dia: olhos. Porra quanta besteira, Lisadog, dá licença que eu vou atender a porta. Não não é entrega em domicílio tem alguém tocando a campainha alguém de verdade pode ser até que seja a Debbierob pra me ensinar as coisas que eu tenho que fazer com uma mulher direitinho com começo meio e fim. Porra ia ser de muita ajuda dava até pra conquistar aquela loira da revista que fica esperando no banheiro.

Quer saber eu perdi aquela lista não acho no meio de tanta coisa perdida aqui na sala e depois a gente fala nisto quando eu lembrar de novo que você acabou comigo.

É a Sallyhen?

 

 

 

A intensa e ousada febre corpo e amor que eu congreguei com você tento compor agora em lembranças metafísicas, antologizo, rebusco, tento regredir ao autêntico mas é tudo apenas ético e retalho, ressaca, altar saqueado sem os ouros, matéria invariável e fixidez do tempo sobrevivido só na concha. Errática clepsidra.

E o telegráfico eu tento transformar em barroco e mesmo assim falta muito, o mais minudente trabalho de ourivesaria é longe de ser o inefável que se conseguiu entre abraços. A lição da noite é a transgressão e eu um horizonte cômico econômico invisto em traços pretendo prover de liquidez os parágrafos tento cunhar as expressões de um levante de uma insurreição das ondas mas mais nada é grave mais nada o vermelho que se aproxima mais nada os múltiplos planos mais nada a fonte onde se bebe com sede de bárbaro. A composição que pretendo vem de um tão longe, paisagem remotíssima, o regresso impossível fica sendo esboço, estranhável essência depois da conversão do céu desfragmentado que sorriu. E o bilhete eu tento transformar em vários tomos, transformar o seu sorriso num filme numa exposição de óleos águas-fortes aquarelas em inconfundíveis licenças e a escrita nunca obedece ao projeto, é inconciliável a efusão verdadeira e o agora tão tosco que se exagera em detalhes que se rebatiza sereno é menos. O imediato do verbal é um exílio. É a condenação é a ruína ao que falta a leveza de seu inspirado ofuscante desembaraçado imaculado gozo.

 Deste lado agora estou aqui sem tradução sem lua sem olhos sem oferenda sem sentido. A casa toda toca Brahms. A sua eternidade revisita a minha memória e entra apenas um pequeno fio de luz de vez em quando, quando entra. Apenas um pequeno molde de flor, sussurros esperam na sala, naquele mesmo sofá, eu vejo a minha mão repousar sobre sua pele é apenas uma imagem num vitral é apenas uma linha que se fantasia de certeza. Ouvindo fantasmas a agitar bandeiras a fazer soar os tambores a perguntar sobre as horas, ao redor vejo só os imóveis. Meu pensamento grita um corpo e as sobras são tão precárias e indistintas que nada, nem uma janela uma penumbra uma transparência povoa o apenas aqui e, limitando o intento final das coisas, me assusta. Brota no ar a gênese de um sentido e eu opero uma diligente vigília aos seus detalhes olhos o resto todo rodeio de suspiros de palpáveis da cabeça aos pés de completamentes.

O mundo começando naquele pedaço do seu. Tento recombinar as inocências os ritmos as sombras a noite abre-se em súbitos tentáculos e é triste. Cansaço de invenção. Ninguém. Vagueza de um álbum onde as fotografias deixam mostrar só os entretantos. Fósseis. Eu sinto o ar e é áspera a consciência das próprias narinas é como existir num castelo imenso onde as salas perfeitas acumulam estar sozinho um eco. Você me leva pela mão e eu apago céu e inferno faço vingar o recíproco e fértil abstrato. A noite vem a tempestade o navio ancorado os ouvidos da noite os peixes as ondas a viagem toda a extensão do que é triste se decompõe em alfabeto que forma palavras inapeláveis. Entreato. Minha sabedoria clandestina é feita de pedaços úmidos e inexplicáveis é feita de um cardume de uma constelação é feita de anseios de desordens de arrebatamentos de flechas de fichas perdidas sobre o feltro verde de volúpias que assaltam a criação concreta das coisas. Sagração das frases de ilimitada semântica.

Confidencio segredo o nosso universo e até as magnólias se surpreendem até as ondas se descabelam até a praia ri discretamente de mim e as algas e a areia e as longas crinas do corcel e até aquela antiga atriz os dentes amarelos da atriz que será encontrada sobre as águas.

Não importa. Essa noite encontro você e recupero redondilhas mudez curvas regiões adormecidas mergulhos.

Não importa. Essa noite transformarei aquele pedido de socorro em festa de deuses gregos em uma poesia que se bebe em dança da última estrela.

Não importa. Fiz em sonho as asas um dia azul o veludo vinho dos lençóis onde eu lhe quero ter onde os cegos clássicos enxergam onde a noite clássica nunca mais termina e o nosso estado sabota a condição morredoura que o tempo quer perpetuar por meio de suas negras espadas de suas regras medíocres de sua improlífica saga.

A grandiosidade, exigindo vozes, rege um madrigal extemporâneo.

Com palavras esculpi você e o corpo seu aqui a obedecer cegamente as submissões que eu invento. Os pássaros noturnos concordam: posso ter você assim modulação de uma lira que embora confessamente inobre e insana é inocente, atmosfera que respira pulsa multiplica peixes e profundidades — um deus me faz poder cumprir o mistério antigo: você figura alimentada cuidadosamente com os elementos óbvios do sonho. Existe.

Chamas crescendo corpo acima você canta eu sinto seu hálito ressuscita-se.

E depois então até o mar esquece ser definitivo.

 

 

Do nome

 

Tão triste aquele romance onde uma enfermeira se apaixona por um soldado que acaba morrendo na guerra! Minha bisavó gostou tanto do livro que resolveu dar à filha o nome da heroína da história. Que guerra terá sido? O nome da minha avó quer dizer luz em latim.

 

 

Casa

 

A escada que dava pro andar de baixo tinha as tábuas muito gastas. Um dia escorreguei lá de cima segurando uma maçã-do-amor que alguém tinha trazido pra mim do Passeio Público. Quando dei de cara no cimento escutei uma voz retrucar da cozinha: Não vai me estragar esta maçã que custou caro! 

 

 

Fazendo anos

 

Terrível era aquilo de cumprimentar adulto! E nem dava pra fugir, que tinha sempre alguém perguntando: Já cumprimentou a Catita?  E ainda tinha que beijar: Três pra casar! Quatro pra não morar com a sogra! Da Dona Donaide eu morria de medo porque era vesga (ela é que era vesga, não eu). Vó, como é que ela conseguiu casar? Um sinal de beleza, o estrabismo! Teve muitos pretendentes, a Donaide! E aquele tio-avô Téio (Eleutério) esquisito? Ouvi a mãe dizer O tio Téio acho que toma banho de Acqua Velva! E quando beijava deixava molhado o rosto da gente (e não se podia limpar na hora, só disfarçando). Da Bebéia eu não gostava porque ela tinha cheiro de giz de costura. E por que tanto adulto se era festa de criança?

 

 

Preto no branco

 

Mãe, que que é rameira? Onde é que aprendeu isso?! Num livro. Que livro!? Um do pai. E desde quando sabe ler? Mostrei o Jorge Amado e li um trechinho. Benza Deus! Dilce, a menina tá lendo!  Vieram ver no domingo (os tios e mais a Ondina, que era só vizinha). Mandavam eu ler notícia de jornal.  Como é que pode, com quatro anos e sozinha!? — perguntavam. É o sangue do meu lado, dos Alvarenga Dias, lá de Minas!... A mãe sempre encaixava esta frase, quando dava.

 

 

De tomar e de passar

 

Vibazina (fortificante), No-vomit (em viagens), Ilosone (garganta), Específicos do Dr. Humphreys (?), Água Vegeto-Mineral (machucadura leve), Melagrião (chiado), Iodex (caxumba), Catinga-de-mulata (machucadura interna), Pomada Curitibina (verruga), Licor de Cacau (vermes), Maravilha Curativa (lavar ferida),  Emulsão de Scott (óleo de fígado de bacalhau), Magnésia Fluída (andaço). Me deram todos estes remédios e não morri.

 

 

Mãe I

 

A Chantal na segunda série me contou em segredo que a mãe dela morreu num acidente de carro e ela estava junto mas se salvou. A Wilneide na terceira série me contou em segredo que a mãe dela morreu afogada e ela estava junto mas se salvou. A mãe da Doren morreu de doença mesmo. Não foi segredo. Mandaram a gente fazer um minuto de silêncio na aula de Geografia e eu fiquei com vontade de chorar mesmo sem ter conhecido a tal mulher.

 

 

Fazendo anos de novo

 

De criança mesmo, naquelas festas, só o meu primo Edgarzinho, que também era um chato (não podia brincar de nada: óculos grossíssimos e furúnculos... ah! e ainda chorava se perdesse no rouba-monte!). E aqueles doces pavorentos? Gelado Baiano, Preto de Alma Branca, Ambrosia. E pensa que davam presente? Só aquelas frases: Que Deus te ilumine, dê inteligência e te proteja. Nem um estojo de canetinha sylvapen. Podia até ser daquele só com seis. Neca de pitibiriba.

 

 

Casa II

 

Sempre tinha alguém (Comadre Catita, Maria da Consolação, prima Dulcina, Dona Lurdeca) tocando valsas antigas no piano da sala de visita. Eu quis estudar piano só pra tocar Rimpianto. Sem sucesso.

 

 

Mãe II

 

Com Deus me deito, com Deus me levanto, com a Graça Divina e do Espírito Santo. Jesus, Maria e José minha alma vossa é. Jesus, Maria e José, minha alma vos entrego. E protegei duplo a minha mãe, por favor.

 

 

Mostrou o caminho do céu

 

Paixão recolhida eu tive pelo Luis Eulógio, meu primo que era da Marinha (acho) e usava um uniforme lindo e era lindo com olhos azuis (acho). Um dia teve um alvoroço lá em casa, os tios se reuniram na sala de visita, as mulheres choravam mas não tinha morrido ninguém porque estava todo mundo lá. Ouvi a tia Criméia contando pra Dilce que O Luis Eulógio (soluçava) deflorou uma moça! (Uma loirinha filha de alemães da Alemanha mesmo). Virgem Santíssima, bradou a Dilce e também começou a chorar. Decidiram que ele era obrigado a se casar. (O nome da noiva a gente pronunciava "Reguina" bem direitinho — mas bem que eu ria por dentro). Não cheguei a nenhuma conclusão sobre o que poderia ser deflorar mas de qualquer forma meu amor pelo Luis Eulógio acabou ali. Foi paixonite. Eu tinha cinco anos.

 

 

Plágio, eu?

 

Escrever o quê naquela redaçãozinha do Para casa? Copiei uns trechos da folhinha do Alziro Zarur que a vó tinha pregada na copa. Claro que disfarcei! Não sei como é que o professor descobriu que não era minha a frase "É perdoando que se é perdoado".

 

 

Leitura formativa

 

Ditos célebres d'A Recreativa (revista de palavras-cruzadas que o pai colecionava), Seu Horóscopo Anual  do Omar Cardoso, O Sentinela que o João da Guilhermina (Testemunha de Jeová) empurrava e a minha mãe (não era) tinha que comprar senão ele não ia embora nunca, fotonovelas da Grande Hotel (lia escondido no quarto da Dilce; tinha uma moça moderníssima que eu sempre queria ser — a Katiuscia), O Homem que Calculava faltando um pedaço, Doutor Jivago que o pai deu pra mãe quando eram noivos (na dedicatória chamava a mãe de estimada), Pérolas Esparsas do Leonardo Henke (Príncipe dos Poetas Paranaenses), um volume (todo ano vinha) chamado Ecos Marianos com lista de bênçãos do Padre Reuss. Aquele do Jorge Amado tinham dado sumiço deste o incidente da rameira.

 

 

Do nome II

 

O nome do meu bisavô era Waldetaro Orozimbo Dias e nunca se pôde fazer nada contra isso.

 

 

Vodu

 

Fui dama do casamento ecumênico do Luiz Eulógio e cortaram meu cabelo bem curtinho e eu tive febre de noite de tanta tristeza. Cortei o cabelo de uma Suzi que eu tinha e detestava. Pra me consolar.

 

 

Poderio nasal

 

Minha bisavó, aquela que leu o romance do soldado, tinha nariz de apagar vela e vários de nós herdamos, eu não. A filha da Ondina se chamava Dinazir mas por razões óbvias de grandeza nasal era chamada de Dinariz. O professor de Português tinha uma nariganga à qual ele se referia como Similar a de Gregório de Mattos! Uma honra!  Quando tinha três anos eu enfiei um amendoim em cada narina e fui parar no Pronto Socorro das Clínicas.

 

 

Espírito  natalino

 

Duro mesmo era ter que visitar a Dona Olívia, minha ex-professora, uma solteirona que a mãe ficava acho que com pena no Natal e levava uma toalhinha de crochê senão um chinelo feito pela Ondina e a Dona Olívia servia uma cambuquinha com figo em calda que ela mesma fazia de figueira própria e que nunca acabava e era doce pra chuchu e depois ela punha mais sem nem perguntar se eu queria. Saía até lágrima do olho. Tinha um cachorro pequinês lá o Bilo que a Dona Olívia chamava de filhinho e era pavoroso com olhão saltado (um dia pulou um, ela contou) e depois a Dona Olívia morreu e ninguém queria ficar com o tal Bilo não sei que fim levou o praga.

 

 

Bola em cima e bola embaixo

 

Todo mundo tinha um bolin-bolacho e conseguia fazer. Menos eu, claro, porque o meu era com duas bolas de golfe, uma preta e uma branca e não funcionava. A mão da gente ficava toda roxa. Contaram vários casos de quebradura. Não deixaram o Edgarzinho ter um porque ele ia ser cirurgião, o tio tinha decidido.

 

 

Guloseiras

 

Mandiopã de camarão de queijo e natural. Comprava no armazém da Marili e ela anotava numa caderneta e depois a mãe pagava no fim do mês. Comi tanto que não podia mais nem ver. Uma vez o pai ganhou num bingo um engradado de Mirinda. Tinha gosto de ferrugem porque as tampinhas eram velhas. A vó falava chapinha. Quando sobrava um dinheiro a mãe comprava uma lata de Lanjal. Eu sempre ia junto na farmácia quando dava porque um adulto podia lembrar de comprar uma caixinha de Supra Sumo pra mim.

 

 

Como será que é caviar

 

O pai tinha um Gordine cinza e o tio Ermelino tinha um Aero Willys com persiana no vidro de trás e eles eram ricos, acho, porque a mãe sempre tirava copo da cristaleira quando eles chegavam e foram até pra Europa uma vez e ficaram presos em Veneza quando deu uma chuvarada lá e a cidade tinha um cheiro horrível mesmo dentro do hotel. A tia Heddy sabia falar alemão aqui no Brasil mas quando chegou lá era uma língua só de Santa Catarina e não funcionou na hora agá. Trouxeram um corte de palha-de-seda, uma garrafa de cereja num licor e um chaveirinho com a foto do Papa de presente. Não tinha aqui. Na Europa, a tia contou, a mulherada só usava saia midi, slack nunca (É coisa de estadunidense...). Os cachorros comem na mesa do restaurante que nem gente, ela contou. E um banho era caro a beça mas eles pagaram.

 

 

Cruzada Eucarística

 

Ao Senhor agradecemos, alelu-ia, o alimento que teremos ale-lu-u-ia. Todo dia a gente era obrigado a cantar esta musiquinha antes do almoço porque o pai e a mãe tinham feito Cursilho. Mas não durou muito a cantoria que o pai tinha sempre que sair correndo pra repartição.

 

 

Quando eu crescer

 

Quero trabalhar na Sloper que nem a Dulcina; quero tocar na Orquestra de Acordeões do Professor Tomás Sant'Anna que nem a vó Lucy; quero ter o cabelo igual da Perla; quero ter um namorado como o Chico di Franco; quero usar um tamanco Schollita até na missa que nem a Rúbia; quero ter todos os LPs da Martinha; quero viajar pelo mundo como a Sandra Passarinho; quero estudar taquigrafia; quero fazer aquela voz da Márcia de Windsor, quero ter uma pantalona de veludo verde; quero ir no Almoço com as Estrelas; quero usar uma tiara igual da Sissi a Imperatriz; quero ter um Kharmann Ghia TC azul que nem a Wanda Eunice.

 

 

O Belo e o Bom

 

A mãe e o pai foram no casamento da filha do seu Prevedelo. Deixaram a gente assistir ao Concurso de Miss Universo. Até pra lá de meia-noite mas eu agüentei. Deu raiva foi da roubalheira! A nossa era a mais bonita e falava inglês e tudo mas perdeu porque ficou tímida na hora daquelas perguntas complicadas sobre futuro. A mãe trouxe um espelhado do casamento.

 

 

Pérolas

 

A Dilce perguntou:  Por que que não teve damo no casamento do Luis Eulógio? A Dilce não gostou da blusa: Degote muito aparecendo, não orna ne mim. A Dilce fez um pampeiro na hora do almoço porque Não tem Caldo Mágico! Com o salário daquele mês a Dilce ia finalmente Comprá a botinha ortopédia que a Marileide tá percisano!. A Dilce tentou mas não conseguiu tirar a nódia na calça do vô. Era de graxa de carro e é custoso mesmo de sair.

 

 

"O tijolinho que faltava na minha construção"

 

"A Dulcina tem o rim quente, por isso não casa!", "A Dulcina é da pá-virada, por isso não casa!", "A Dulcina não é temente a Deus, por isso não casa!", "A Dulcina é fogo-de-palha, por isso não casa!", "A Dulcina não é flor-que-se-cheire, por isso não casa!" No fim casou com um funcionário dos Correios e foi morar em Caxias. Mesmo sendo prafrentex.

 

 

Cruzcredo

 

Santa Luzia, passou por aqui... pra cisco no olho; Santa Bárbara! pra tempestade com raio (queimar junto uma palhinha benta); Deus te crie! pra espirro; São Roque! quando cachorro da rua se aproxima; Divino Espírito Santo esclarecei-me a inteligência! antes de prova de matemática; São Brás, sai da frente que tem mais! quando alguém se afoga com comida; Saravô, saravô, saravô quando encontra despacho na encruzilhada (passar a mão direita na coxa direita de cima pra baixo enquanto diz); Putcha la guerra! quando bate cotovelo ou canela nalguma quina lazarenta.

 

 

Ângelus

 

Todo final de tarde eu me escondia atrás da cortina da sala pra ver: 1) Às 18:00 a Ingeborg (cabelo da Paula Saldanha) se encontrar com o Américo (carudo e vermelhão) e beijar na boca, bem discreto tudo; tinha que ser ali na rua porque o pai dela (seu Otto) era protestante e não deixava nem pegar na mão lá dentro da casa. 2) Às 18:15 o seu Amarante (velho, óculos fundo-de-garrafa, pardo) chegar em casa e dar uma sova na Zuleima (moça, dentinho de ouro na frente, polaca) porque ele desconfiava que nenhum dos filhos (Nelo, Osir e Vanja, nenhum sarará) era seu; nunca vi mas escutava os gritos dele e dela. 3) Às 18:30 as três irmãs nordestinas (uma alta manca, uma média feia que nem briga de foice e uma baixinha ajeitada) descerem a rua pra pegar o ônibus, elas trabalhavam na fábrica de edredons na esquina e ninguém sabia o nome de nenhuma. Tinha uma aposta pra ver quem descobria. Depois a fábrica pegou fogo e nunca mais foram vistas. Não, não morreram no incêndio, só nunca mais ninguém viu.

 

 

Parada musical

 

Cadê os ovos que a galinha pôs, eles eram quatro agora são dois (vó, todo dia, varrendo perto do galinheiro); Luzes que se apagam a sorrir... Lamentar perdidas ilusões... (mãe, só este trecho vinte vezes no mínimo, arrumando armário); Xoxuá cada macaco no seu galho, xoxuá eu não me canso de falar... (Maria da Consolação, pendurando roupa no varal); Come parte il capeli bela bionda? Tu le parte a la bela marinara... (vô, molhando as avencas); Ó Minas Gerais, óooooo, Minas Ge-rais, quem te conhece não esquece jamais, óoooo Minas Gerais (Dilce, nascida e criada em Rio Negrinho, nunca tinha ido a Minas).

 

 

Gentinha e gente de bem

 

Não quero que traga esta tal de Fátima aqui pra dentro! É gentinha! Vai brincar com a Annete da casa da frente, essa sim, tem bons modos. Só a Fátima conseguia subir no muro pra roubar mexerica da Dona Élvia (vizinha implicante, passava anil no cabelo) e também me explicou que aquela história de sementinha era besteira. Na casa da Annete a gente sentava na cama e ficava olhando um cachorrinho de pilhas latir e dar uma cambalhotinha sem graça.

 

 

Suspiros

 

Ai, ai! Quem tem? Saudade. De quem? Meu bem. Quem é? Você.

Meio-dia, panela no fogo e barriga vazia.

Papagaio do bico dourado, leva esta cartinha pro meu namorado...

Ai, ai, matei meu pai e o enterro não sai.

 

 

Dos vivos

 

O Edgarzinho, dos furúnculos, é o Dr. Edgard Siqueira Dias, o cirurgião plástico (estatísticas: dois em cada quatro melhores narizes do Estado passaram pelas mãos dele); a tia Criméia é bem velhinha mas ainda faz chochê (fio zero) sem óculos; a Dulcina teve quatro filhos lá em Caxias e depois o marido descambou pra bebida; o João da Guilhermina ainda vende O Sentinela; a Doren é escultora famosa e se chama Doreen de Loyola; a Fátima casou com o dono do Açougue Jóia e fica no caixa; a Annete é Soroptimista e joga numa roda de cacheta toda quinta e se trata de depressão com o Dr. Hélder Marinho; a Wanda Eunice tem um negócio de vender cortinas; o Luis Eulógio está na terceira esposa, é uma gringa desta vez; a Dinazir tem um programa sobre adolescência na Curitiba FM; a Zuleima ficou viúva e comprou até carro e dos filhos dela soube só do Nelo, que mudou o nome pra Valdinete; aquele professor que descobriu o plágio ainda dá aulas no Colégio Dom Pedro; a Wilneide se casou com um americano e mora lá e de vez em quando manda uma cartão postal mostrando como é bonito.

 

 

Mera coincidência

 

Começou com o nome da heroína do romance. De uma guerra desconhecida. E depois as palavras foram desfilando na minha cabeça: chacrete, BNH, brim curinga, bola de capotão, bidú cola, toppo gigio, pândega, radiola e eletrola, alpargata, BHC, fatia-do-céu, crapô, lombeira, colubiazol, ki-chute, vultos da nossa história, docinho miúdo, berlineta e monareta, matelassê madrigal, boa-noite cinderela... Eu, se soubesse, ia escrever uma história com tudo isso. Que bobagem — a vida da gente não dá uma história! O que dá pra fazer é só mesmo lembrar. E segurar mais forte aquela maçã-do-amor. Que custou caro.
 

 

 

Luci Collin (Curitiba, 1964) - Graduada em Piano, Letras e Percussão. Doutora em Letras. Nove livros publicados. Recebeu premiações em concursos de literatura no Brasil e nos EUA. Representou o Brasil no Projeto Literário da EXPO 2000 em Hannover. Participa de antologias nacionais e internacionais (EUA, Alemanha, Uruguai e Argentina) e tem artigos e traduções publicados em diversos jornais e revistas. Mora em Curitiba e é Professora de Literaturas de Língua Inglesa na UFPR. Mais aqui.