©stuart hughs
 
 
 
 
 
 

"Eu amo os crisântemos misteriosos (...)"

 

1930, oito de dezembro — INGERE UMA DOSE DE VERONAL. Os crisântemos são rústicos e de fácil cultura. A palavra veronal é um substantivo masculino que deriva de Verona. INGERE UMA DOSE EXCESSIVA. O crisântemo é um gênero de plantas da família das asterácias. Derivado do ácido barbitúrico o veronal é empregado como hipnótico. Florescem no outono e duram até o início das geadas. O suicídio é o ato de tirar, voluntariamente, a própria vida. Dá-se o nome de crisântemo também às plantas pertencentes ao gênero ântemis. INGERE UMA DOSE EXCESSIVA DE VERONAL. É um homicídio de si próprio. Verona fica à beira do Ádige. Suicida na madrugada do dia de seu trigésimo sexto aniversário. Sui quer dizer "a si mesmo".  Amava os crisântemos misteriosos.

 

"(...) raiz morta de sede sob a terra!"

 

1927, seis de junho — MORRE-LHE O IRMÃO. A palavra incesto significa uma união ilícita entre parentes por afinidade ou por consangüinidade. A palavra raiz é um substantivo feminino que se refere à parte da planta que a fixa no solo podendo assim dele extrair as substâncias de que se alimenta. CHAMAVA-SE APELES. A raiz, conforme a botânica, já existe em todas as sementes. De acordo com o direito canônico há incesto espiritual na cópula ilícita entre pessoas ligadas por afinidade espiritual. Apeles é o nome do célebre pintor grego do século IV a. C. De acordo com a disposição legal, nada mais repugnante do que a união incestuosa. Quando germinam, as raízes, habitualmente, dirigem-se às profundidades do solo. O IRMÃO MORRE EM ACIDENTE AVIATÓRIO. 

 

"Procurei o amor, que me mentiu."

 

1925: DIVORCIA-SE DE ANTÔNIO. CASA-SE COM O MÉDICO MÁRIO PEREIRA LAGE.

1914: DIVORCIA-SE DE ALBERTO. CASA-SE COM O ALFERES ANTÔNIO JOSÉ MARQUES GUIMARÃES.

1913: CASA-SE COM ALBERTO DE JESUS SILVA MOUTINHO.

 

Neste momento todas as casas são irreparavelmente vazias todos os espaços são inabitâncias todas os enredos são indecifráveis. Embora as vozes clamem nada se ouve embora as luzes cintilem. A noite redimensão daquela tristeza dor mistério de um rubro vinho que põe os contornos em fuga. A tanto amor chamou-se embriaguez e o coração é só o errante eternamente em desventuras. Diz-se das palavras. Fala-se das mortalhas do peito que se abre em caminhos das águas que também se abrem fala-se da procura fala-se das preces em palavras doces fala-se de pétalas daquilo que não se esquece mas não há memórias que garantam aurora livre do íntimo desespero. Tecer planícies, fontes, deuses, sombras acolhedoras, prazeres, beijos. Tecer violetas e esquecimento.

 

"Quem nos deu asas para andar de rastros?"

 

PRIMEIROS VERSOS ("já prenunciam desajustamento"). LICEU DE ÉVORA ("poucas raparigas frequentam estudos"). A MÃE BATIZA A CRIANÇA COMO FILHA DE PAI INCÓGNITO. Culto em si: Inquietações sede Vocábulos da paixão sede Palavras que insistem sede A alma a rir imaculada sede Egocentrismo Inspiração sede Desejo Dimensões sede O mal da solidão sede Eleita Lirismos Inventariação sede Exageros Noites empalidecidas sede Tabu sede O sagrado sede Beleza Euforia Esconderijos sede Deleite Paradoxo Exaltações.

 

"Versos! Versos! Sei lá o que são versos..."

 

A quem levou a sua alma apaixonada, às pedras ao sol às horas mortas às tílias ao rio às gaivotas às montanhas de lividez sinistra aos ramos à neve que chora o inverno aos mastros na tempestade ao gelo no cume das montanhas às noites consteladas ao fogo e à lava, disse os anseios segredos as incoerências os orgulhos a tarefa da flor aberta absolutamente ávida inúmera e mágica. Flor, entre as coisas que se diz e o eterno espanto, hiatos. Mas não se queira compendiar cada silenciamento. Entre a prece e a compreensão dos destinos, o encanto. E não se queira complanar todos os prantos. Entre o riso loucura este sem número de vozes umas desdizendo umas sendo melodia puramente sem sentido entre as coisas todas este imprincípio. E não se queira perceber os cantos feito uníssono. Entre os anos passando como um rio sem se importar com sempre o mesmo curso, este consentimento. Mas não se queira ousar da pedra ser a retidão ser  sem constrangimento que esta situação da dor encolhe o discurso é o siso é compasso é o horizonte que confere a amplitude ao vôo. Flor, entre as paredes rimas perpetuam-se. Flor, entre as distâncias entre estes dois um outro ponto: todo indistinto. Quisera suspender da sede o inaplacável. Quisera arder o ardor insubmisso. Quisera conjugar o verbo inexplicável.

          

Estar para sempre imensidão posta num verso.

 

FLORBELA (D'ALMA DA CONCEIÇÃO) ESPANCA NASCEU NO ALENTEJO EM 1894.
 
 
 
 
Luci Collin vive em Curitiba, Paraná. É doutora em Letras e professora de Literatura de Língua Inglesa na UFPR. Tem nove livros publicados. Mais aqui.