RL - Você é uma transgressora?

 

LC - Afirmando que sim, nós passamos a considerar que a literatura contemporânea — e isto é muito triste — tem regras determinadas a serem seguidas e eu estou, com o meu trabalho, infringindo, violando estas regras. Mas para transgredir efetivamente eu deveria estar criando elementos novos — e isso eu não faço, com certeza. Eu vejo que os meus escritos, antes de representarem transgressão, são apenas "regressão", não no sentido de "regredir", mas de "regressar", regressar a um experimentalismo que foi explorado pela linguagem moderna e depois covardemente abandonado por muitos pós-modernos confortavelmente estacionados na linearidade e num realismo que em nada correspondem à realidade. Fragmentação, cortes, sobreposição, exploração de temas não usuais, ironia, colagem, absurdo, manipulação sintática e semântica, como eu apresento nos meus textos, não é transgressão, não é novidade genuína, é uma tentativa de aproximação da maravilhosa desordem da realidade que não pode, por seu dinamismo, ser registrada tendo por base regras artificiais.

 

 

 

RL - Você acredita em escrita feminina?

 

LC - "Acreditar", nesta pergunta, é um termo impreciso para mim. Se você se refere a alguma ideologia do feminino que eu queira deliberadamente apresentar nos meus livros, a resposta é não. Não vejo necessidade de imposições das idéias "feminino" e "masculino" como contendoras — são existências altamente complementares, são princípios indissociáveis. Quanto ao escritor e sua habilidade, Henry James criou maravilhosos personagens femininos, Hilda Hilst, personagens masculinos muito complexos — assim a sensibilidade do artista parece ser assexuada.

 

 

 

RL - Seus contos não têm enredo, pelo menos, não o enredo da forma tradicional. Por quê?

 

LC - Porque o enredo, da forma tradicional, é um embuste. Se o leitor é hábil o suficiente para combinar, reagrupar, editar um enredo aparentemente disparatado, porque menosprezar, ou desconsiderar toda esta agilidade do leitor enquanto editor do texto? E por que determinar que enredo é apenas o que tem começo, meio e fim? Isto é fórmula de redação de vestibular, e quem segue fórmulas faz automaticamente uma escolha que passa pela condenação dos elementos-surpresa. Se você usar como tema, por exemplo, a solidão, e transformá-la em personagem do seu conto — não uma pessoa experimentando a solidão, mas a própria solidão, ou o medo, ou a saudade, ou a escuridão — não é injusto limitar estes personagens tão livres com um enredo prescritivo e que não gerará as emoções do inusitado?  

 

 

 

RL - Como é a sua relação com a linguagem em seus contos? Você busca uma nova linguagem a cada conto?

 

LC - Quem me dera! Não busco, porque não encontraria. A minha relação com a linguagem é muito espontânea, liberal, rítmica, primitiva até. Não tenho idéias que elaboro para então apresentar sob a forma de conto ou poema — tenho impulsos de escrever. O que acaba acontecendo é que os contos aparecem de maneiras diferentes, com vozes diferentes, com técnicas e formas diferentes. Gosto muito de explorar o estranhamento, as ambíguas combinações entre palavras e frases que levantam duplos sentidos. Lastimo que, para nos proteger do desconhecido, muitas vezes abandonemos os caminhos da linguagem desestabilizadora, porque eles sim podem nos levar à reflexão e a um desconforto que, embora doloroso às vezes, pode ser muito mais — espiritualmente — profícuo.

 

 

RL - Você se considera mais poeta ou mais da prosa? Aonde transita com maior facilidade?

 

LC - Os gêneros são diferentes e eu me expresso de maneira muito diferente em cada um deles. Escrever poesia é um processo muito mais desafiador pela concisão que a forma demanda. Não me considero coisa alguma — acho isto precoce, mas gostaria de um dia me considerar poeta.

 

 

RL - Como está a cena poética do Sul do país?

 

LC - Em ebulição, como o resto do País. Novos nomes, muitos livros sendo escritos e isto é estimulante. Curitiba está cheia de bons novos escritores: Paulo Sandrini, Marília Kubota, Nara de Sousa, Estrela Leminski, Fernando Koproski, Greta Benitez, entre muitos mais. Há também as revistas literárias (Rascunho, Etcetera, Oroboro, Coyote) que vêm dando visibilidade à produção literária do Paraná. Mas ainda é difícil romper esta invisibilidade de quem está fora do eixo (que agora, às vezes, vem incluindo Porto Alegre, para nossa alegria!). O Paraná deveria oferecer um fomento à literatura nacional através de um bom concurso literário — como foi o Prêmio Paraná no passado — que automaticamente desse aos escritores paranaenses chances de revelar suas produções num âmbito maior.

 

 

RL - Por que escreve?

 

LC - Porque o momento existe. Parafraseei claro.

 

 

RL - Quais são as suas influências literárias na prosa e na poesia?

 

LC - Como fiz boa parte da minha formação na música, tenho mais influências da linguagem musical possivelmente. Na literatura, contudo, gostaria que tivessem sido Ionesco, o Nouveau Roman, O. Lins — mas soa absurdamente pretensioso afirmar que foram. De qualquer forma, sempre li muito de tudo, dediquei anos a uma freqüentação compulsiva da literatura, de Ovídio a S. Sheldon. Hoje leio com especial e renovado interesse Gertrude Stein, Gary Snyder, Jorge de Lima e a literatura francesa e brasileira contemporânea.

      

 

RL - O que poderia ser feito para se aumentar o número de leitores de poesia no Brasil?

 

LC - Escrever boa poesia. E é papel dos críticos revelar, discutir e estimular o que é bom.

 

 

RL - Para quem daria um Nobel de literatura? Por quê?

 

LC - Ressuscitando-a, para Gertrude Stein; absolutamente genial, séria, inovadora e muito superficialmente conhecida.

 

 

RL - O e-book vai substituir o livro?

 

LC - Falando em hiperficção, hiperdrama, holopoesia e afins, tomara que sim, porque eu tenho muita curiosidade (e esperança numa literatura mais dinâmica) de ver quem serão os escritores do século XXI, cuja cabeça deverá ser equipada com uma sensibilidade diferente, mais viva, mais abrangente, mais provocativa. É uma perspectiva animadora e mais compatível com a mente contemporânea. E também evitaríamos tanto desperdício de papel, matéria tão nobre.

 

 

RL - Se pudesse fazer um pedido aos seus leitores, antes de ler um dos seus livros, qual seria?

 

LC - Pedido nenhum — os leitores dão conta do que eu pretendo, percebem as minhas propostas. Acho que "pedir" implica uma postura de torre de marfim que eu abomino — o leitor não é nenhum desavisado e inepto e, por outro lado, o escritor, aliás artista nenhum, também não é esse semi-deus que vê coisas que só ele compreende. Pelo contrário, os leitores são parte essencial na revelação dos elementos do texto. Acho uma prepotência considerar o escritor um detentor de verdades superiores — o escrito é o visto por aí, e não o genialmente forjado pelo escritor. Captar e codificar o estético — o artista como antena da raça — é uma parte essencial da nossa existência, mas que deve ser encarada com humildade, porque pressupõe compartilhamento. A antena estar no alto é meramente uma condição estratégica e assim a sua superioridade.

 

 

RL - Tem algum mote que a acompanhe pela vida?

 

LC - Gosto deste pensamento oriental: "Aprender e esquecer muito, deliberadamente".

 

 

RL - Qual o papel do escritor na sociedade? 

 

LC - Ser parte do complexo e delicado processo de sensibilização das pessoas, via apreensão estética, para a beleza da condição intrinsecamente filosófica das nossas vidas.

 

 

 

Luci Collin (Curitiba, 1964) - Graduada em Piano, Letras e Percussão. Doutora em Letras. Nove livros publicados. Recebeu premiações em concursos de literatura no Brasil e nos EUA. Representou o Brasil no Projeto Literário da EXPO 2000 em Hannover. Participa de antologias nacionais e internacionais (EUA, Alemanha, Uruguai e Argentina) e tem artigos e traduções publicados em diversos jornais e revistas. Mora em Curitiba e é Professora de Literaturas de Língua Inglesa na UFPR. Mais aqui e aqui.

 

 

junho, 2005
 
 

 

Rodrigo de Souza Leão (Rio de Janeiro, 1965), jornalista. É autor do livro de poemas Há Flores na Pele, entre outros. Participou da antologia Na Virada do Século — Poesia de Invenção no Brasil (Landy, 2002). Co-editor da Zunái — Revista de Poesia & Debates. Edita os blogues Lowcura e Pesa-Nervos. Mais na Germina.