©marc chagall
 
 
 
 
 

 
 
 
 
 

"entre flores                       uma jarra de vinho

solitário                       bebendo sem convivas

erguer a copa à lua lunescente

lua e sombra                      somos três agora"

(Haroldo de Campos. Fragmento de LI PO,

Escrito sobre Jade)

 

 

Era mais uma quinta-feira de luz — aquela luz do inverno paulistano, comprimida entre edifícios altos e nuvenzinhas melancólicas, numa dessas tardes repletas de pessoas azuladas tentando atravessar alamedas elegantes. Aparentemente só isso, mais um dia comum. Brigitte voltava pelas escadas, depois da assembleia no andar superior daquele prédio alto, no centro da cidade, onde passara a trabalhar sem saber ao certo porque — aquele prédio antigo, envolto em tradições, lendas e historinhas estranhas.

Ela voltava alegre, podemos até dizer até que voltava entusiasmada, porque relia, naqueles dias, a transcriação de Haroldo de Campos de poesia clássica chinesa. O volume de capa verde, com  discreta e bela edição da Tipografia do Fundo de Ouro Preto, Escrito sobre Jade — Poesia clássica chinesa reimaginada por Haroldo de Campos, está agora sendo manuseado por esta narradora. Naqueles dias, o encantamento de Brigitte era pleno ao ler o texto introdutório do próprio Haroldo: "assim, verti ming-yüeh por "lua lunescente", em lugar de "lua clara" ou "brilhante". Compreende,  leitor, o que se passava? A alegria de Brigitte era, em parte, alimentada pelo extraordinário trabalho do mestre, que sempre buscou ao máximo recuperar os jogos fono-etimológicos em suas transcriações.

Era-lhe muito claro, porém, que ao retornar à sua sala, no terceiro andar do prédio, não poderia falar disso aos colegas. Por diversas razões sem nenhuma importância, mas ela sabia que, quando mais sem importância fosse algo, mais importância eles dariam pelo simples prazer de lhe mostrar o quão diferente deles ela sempre fora. Por tudo isso — e por muitos motivos mais que não pretendo enumerar agora — Brigitte não tocaria no assunto. Não falaria de livro. Não falaria daquele livro. Nem de poesia. Nem de lua. E muito menos da beleza da "lua lunescente". Ao menos naquela década. Bem, do que falaria, então? De tudo. Claro, de tudo mesmo. E principalmente do trabalho bem realizado por ela na assembleia, onde representava uma parcela do poder antecipatório daquele grupo de pastores indecisos.

Ao voltar à sala, Brigitte trazia uma jovem desconhecida, que acabara de atender, após o término da assembleia e com quem precisaria, por dever de ofício, falar mais um pouquinho. E deveria reduzir a termo as declarações da moça, como lhe competia. Entretanto, guiada pelo respeito às regras de convivência, Brigitte entrou na frente. Sozinha. Para ver se, ao trazer a moça, naquele momento, não iria incomodar Aulos e Angela, isto é, para certificar-se de que nenhum de seus dois colegas de trabalho e de sala estaria, naquele mesmo instante, dando atendimento a outras pessoas, para não causar superposição de vozes.

 

"agora vai:

                  basta de perguntas!

nuvens brancas

                          tempo de infinito!"

 

Tudo estava estranho. Isso Brigitte percebera aos dar os primeiros passos na sala. Não havia ninguém de fora, mas a timidez crônica de Aulos estava nitidamente coberta por um manto gigantesco de preocupação. Ele parecia escrever, distraidamente, com sua caneta-tinteiro, mas olhava para baixo e, por vezes, fitava Angela, que, visivelmente descontrolada, andava de um lado para o outro, como se estivesse preparando um clímax. Brigitte percebeu o ambiente subitamente oposto ao que deixara, ao sair, ao ambiente que ali encontrara durante aquelas duas semanas de paz. E indagou: "tudo bem?". Foi o que disse. Inocentemente.

Os olhos de Aulos ficaram maiores. Ele queria dizer algo e tentava. Um espasmo de transtorno pairava no ar. Aulos disse, monossilabicamente: "É, é, parece que... bem, acho que... nós... nós..." Diante de sua hesitação — ele sempre tão claro, tão bom, limpidamente solidário como um irmão, Brigitte olhou para Angela, que, com os olhos completamente transtornados, disse: "Pronto! Pronto! Agora... E agora... Já!"

E nada mais.

Nada mesmo.

A senhora, Doutora Brigitte, está tentando explicar a esta narradora algo que não pode ser traduzido. Nem transcriado. Mas reimaginado. Compreendo perfeitamente porque o encantamento do livro é sua chave.

Sobre Jade. Mas sobre nada falavam Aulos e Angela. Ele ouvira, fizera que sim — ou que não — com a cabeça. Susto vagando na tela, na teia, nos arames. O semblante transtornado era um sinal do que não poderia ser dito. Brigitte precisava trazer a moça que a esperava no corredor,  para completar o atendimento.  Era sua obrigação funcional. A sala era grande. A cena era grande. O texto era grande. Os olhos eram grandes. O medo deles era grande. Tudo era enorme e por um fio ruía. Mas Brigitte era destemida e não sabia ler essas manchas escuras sobre os olhos deles.

Meu Deus, precisamos trabalhar, pensou ela. Temos deveres a cumprir. Temos prazos. Temos regras. Não temos tempo. O vidro da janela ardia sob a luz. Nenhum inseto ousava entrar ali. Repetia para si própria, mentalmente, um breve fragmento da transcriação de Haroldo de Campos da poesia clássica chinesa: "Basta. Nuvens brancas. Tempo de infinito".

No carrossel de temas daquele prédio, algumas palavrinhas se repetiam.  Estenotipia? Não, foi por meio do procedimento normal. Vocês todos sorriem quando trazem flores? Depende do dia da semana. Tiramos os espinhos antes. É porque eu estava ouvindo canções na minha cabeça cansada. E ouvi a voz de Nara Leão e de Carlos Lyra, pois, pela manhã, em casa, antes de me vestir, escutava discos de bossa-nova.

Ela gosta de música, mas não é possível compreender compassos que não são entoados. Ela compreende pausas. Mas não há como entender silêncios grávidos, silêncios prenhes de frases indizíveis. No escuro dos olhos de seus colegas tão delicados e agora transtornados, no escuro dos olhos deles, manchas enormes se alastravam.

Brigitte, cuja irmã gêmea, Brites, estudava etimologia, reimaginou aquela tarde nesta tarde que escurece enquanto escrevo. Pesquisou símbolos. Adormeceu suposições. Mas a verdade é algo se desenhava entre os personagens da cena. Ela realmente desconhecia, naquele instante, a motivação dos gritos que logo começaram.

Menos de dois dias depois, isto é, no sábado, tudo já lhe era claro.

Sei de tudo. Mas, como narradora, não me é dado reimaginar. Somente Brigitte poderá fazê-lo, se desejar. Por exemplo, sei que os gêmeos Fernanda e Ronaldo insistiam em lhe perguntar: "a senhora não foi colega de turma do Doutor Félix?".

Ela se cala. Pensa. E, depois, responde. Qual a Universidade? Aquela bem pertinho do prédio em que a senhora está morando. Não, realmente, não, porque eu cursei outra Universidade, aquela bem pertinho deste prédio onde Aulos e Angela, imersos em nuvens, nada dizem. Nada mais. Aulos se levanta. Vai se retirar.

Passarei pela capela antes de voltar. Mas, aqui é diferente. Não há capela. O que existe é uma Catedral.

Aulos, de cabeça baixa, sabia que algo poderia explodir. Mas, todos os dias, Brigitte sorria ao descer os degraus da escada, mesmo mancando um pouco, como ele pôde perceber. Ora, Doutor Aulos, Doutora Elizabeth, Doutor Teófilo, como sabem, algumas vezes, nas escadas, nossos passos se erguem e nossos pés não tocam os degraus. É como se fizéssemos exercícios de levitação.

Como ela é diferente. O que faremos?

O que veio fazer aqui?

Quando caminhava, era sempre acompanhada por uma libélula rósea, cujas asas às vezes paravam de se agitar, porque planava. Planagem.

Ricardo, Ricardo, Ricardo. Eles chamaram. Em vão. Angela destravou as janelas. Muitos dias se passaram sem chuva. O abafado das tardes era engolido pelos pastores. Engolindo em seco, desfaziam perguntas. Seus filhos também gostam de pássaros? Você agora toca num assunto que é um de meus preferidos. Vicenzo, meu avô, tinha um canário que cantava fora de hora. Brigitte riu-se da menção. E canário tem hora certa para cantar? Individualmente, temos horas certa? E para quê?

O rosto de Angela mudara de cor. Pronto. Basta. Chega. Chega. Chega. É agora! Já!

Estudei música na infância, comenta Brigitte, sorvendo o champagne que lhe é oferecido por Raul. Mas a narradora deste conto estudou somente artes cênicas e é por isso que ela insiste em voltar à cena, quando personagens quase nem se lembram do texto, ou assim fingem, por acomodação e egoísmo. Eu mesma nem me lembro. Nem quero. Não faz sentido.

Dezessete caravelas atravessaram meu oceano. Dezessete jangadinhas de artesanato sobre a mesa de Raul. E Ana Stella, sempre acendendo as luzes. E Elizabeth procurando vagalumes. Aulos trabalhando concentrado, sugeriu algo que fez Brigitte rir muito. Foi quando eles brincaram diante de uma crise de tosse dela. Quer dizer, riram com a cumplicidade. Então, lembre-se, minha cara, do que diz o segundo mandamento: "Não tomar seu santo nome em vão". Porque ela falava, comentava, vibrava — estava viva!

Raul revelaria seu verdadeiro nome após os ensaios. Brigitte estava cansada. Isso era visível. Sairia definitivamente do Parque. Antes de entoarem os mantras, uma oração para Santa Rita de Cássia. Contatos, poemas, cantatas, passaportes, fronteiras, alfândega. Brigitte também poderia ser Bridget e, nesta hipótese, somente o acento tônico mudaria de lugar. Brites, sua irmã, revelou: "sou sempre chamada pelo meu apelido, mas meu nome é Beatrix". Que engraçado, assim mesmo, com x?

Ela mudaria de lugar. Trocaria um abraço com Aulos, inquilino do tempo. Porque sempre gostaria dele, companheiro de jornada.  Angela terá dezessete anos para ler outras traduções ou transcriações, se interessar a ela. Nos seus olhos, duas lágrimas bem grandes. Mas ninguém chora. Tudo está certo. Muito bem. Fica assim. Não se toca no assunto. Outras perguntas flutuam. A senhora compõe, doutora? É verdade que escreveu um Oratório?

O tempo dos vinte e um pastores se esvai. Brigitte compreende que estivera num palco. Sabe que textos truncados foram ditos por atores absolutamente incompetentes. Tédio, bússolas, bomsais e libélulas. Retiro-me de cena porque sim.

Noutro ano, com Guilherme, tantos deles, tantos amigos e colegas e conversa-se longamente sobre O Auto da Comparecida e sobre outras obras de Ariano Sussuna. Mas Brigitte ainda está cansada. Sabe que seu nome é meu desenho. E que todos os dias são gerados por script. Não gosta de farsas. E descansa, à sombra de uma árvore que é sua.

Multiplicando-se doze por dezessete, chegamos a nosso resultado: trezentas e quarenta lunações. Depois destas é que alguns pastores, re/lendo Escrito sobre Jade, expõem nos olhos gotas de chuva que alagam avenidas.

Nat King Cole. É o que todos ouvem agora. Tudo certo. Anos miseráveis. Mísero  aceno para o dia. A cortina? Ela se despede de personagens arcaicos. Desafinados. Figurinos são abandonados. Ah, contrarregra, você me inunda de verdade. Marionetes. Circo. Brigitte é somente dona de seu tempo. Que nenhum mito lhe precisa ser revelado.  Sobre Jade, Escrito. E tudo sabe — pela música, pelas frases não ditas, mas óbvias, como a força do sol e tênues como a lua lunescente.

 

"um instante       sombra e lua     celebremos

a alegria             volátil primavera!

canto                   e  a lua                     se evola

danço                  e a sombra          se alvoroça

despertos                                   o prazer nos unia

ébrios                                  separamos os caminhos

nós de água                          nunca mais reatáveis?

Já nos veremos pela via láctea".

 

 

março, 2016

 

 

Beatriz H. Ramos Amaral. Escritora, poeta e ensaísta, autora de A Transmutação Metalinguística na Poética de Edgard Braga (Ateliê Editorial, 2013), Luas de Júpiter (Anome Livros, 2007), Alquimia dos Círculos (Escrituras, 2003), Planagem (Massao Ohno, 1998), Poema sine praevia lege (1993, finalista do Prêmio Jabuti). Mestre em Literatura e Crítica Literária pela PUC/SP, é formada em Direito (USP, 1983) e em Música (FASM, 1985). Coordenou projetos de arte e literatura entre 1994 e 1997 na Secretaria Municipal de Cultura. Recebeu em  2006 o Premio Internazionale Francesco di Michele de Poesia (Caserta, Itália). Foi Secretária-geral da UBE/SP e diretora da entidade entre 1996/2005). Participa de diversas antologias no Brasil e no exterior. Gravou com o músico Alberto Marsicano o CD Ressonâncias (poesia), lançado em 2010. Mais: www.beatrizhramaral.com.br.

 

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