©marcos oliveira
 
 
 
 
 

 

 

"O jazz aprofundou, alargou a matéria sonora,

 percebeu  que  a interpretação pode ser uma

 forma de criação". (André Francis, Opus 86 – Jazz)

 

 

Pelas sutis fronteiras desenhadas entre o jazz, a bossa nova e o jazz-samba, o álbum Sundial1, de Lucia Viola (Moophonix, London, 2007) inaugura a carreira fonográfica da flautista brasileira há anos radicada em Londres. A excelência da intérprete e sua maturidade artística despontam na unidade estética do disco, refletindo-se, também, na seleção do belo repertório, composto por dez obras de autoria de Chris Wells, músico inglês com quem Lucia mantém entrosada parceria.

Oito das faixas — "Sundial", "East to West", "Granada", "Cleopatra", "Desenho", "Ilhabela", "Beija-Flor" e "Kaleidoscope" — compostas especialmente para o álbum, resultam de um diálogo fértil e bem sucedido entre a intérprete o compositor, que já trabalham juntos há algum tempo. Sundial tem produção de Chris (também responsável pela percussão, pelos teclados e sintetizador) e ainda conta com a experiência e a versatilidade dos violonistas Ife Tolentino e Mike Eaves, e do baixista Gustavo Roriz, que garantem ao grupo um entrosamento perfeito. Na única faixa com letra, intitulada "Sobre o papel" (letra de Pedro Casadalma sobre melodia de Chris Wells), há a participação vocal de Valdo Silva, outro antigo parceiro musical de Lucia. Somente "Sobre o papel" e "São João" (parceria de Chris e Mike Eaves) haviam sido compostas anteriormente à ideia do álbum.

Ao compor as obras, Chris Wells procurou concebê-las como canções a serem entoadas pela flauta e esteve atento à sonoridade peculiar da intérprete, que imprime elevado nível de densidade e plasticidade às frases melódicas. Por outro lado, a estrutura das peças permitiu a Lucia expressar sua desenvoltura nas sequências de improvisações. A fluência do diálogo entre as flautas (soprano e contralto) e as cordas dinamiza o percurso melódico e enriquece o eixo harmônico, enquanto os contornos rítmicos marcados por acentos bem definidos pela competente percussão tornam-se responsáveis por bem trabalhadas interações entre a música de tradição ocidental e certo clima cósmico próximo do pensamento taoísta. A aproximação entre as duas tradições musicais expande largamente o espectro de possibilidades da proposta estética de Sundial, pois a fisionomia rítmica da música oriental conduz a um patamar superior de expressividade, que a flauta, como poucos instrumentos, é capaz de alcançar, principalmente se estiver em mãos de uma intérprete sensível e fluente como Lucia Viola.

A intersecção entre a cultura musical do ocidente e do oriente — que, de certa forma, perpassa todo o álbum — faz-se presente de modo mais nítido em "Granada", "Cleópatra", e principalmente, na belíssima "East to West", em que a flautista nos presenteia com a delicada força de sua sensibilidade, erigindo massa sonora densa, quase táctil, oriunda de sopros que não só atravessam o tempo e o espaço, mas nele se prolongam, como figuras projetadas, obtidas, em alguns momentos, graças a um bem dosado emprego de vibrato, gerando agradável efeito polifônico.  As ondulações de matiz oriental experimentadas pela flauta contrastam com o ritmo brasileiro bem marcado que a percussão e as cordas vão construindo e, desta mescla inusitada, advém um instigante resultado musical.

A beleza no tratamento dos temas, a variação rítmica das frases das diversas faixas do disco e a riqueza das texturas sonoras produzidas pela diversidade de timbres instrumentais realimentam o dinamismo do disco, por meio de surpresas que, progressivamente, vão se delineando para o ouvinte.

A flautista cresceu ouvindo e tocando bossa nova e choro, enquanto estudava o repertório tradicional para flauta. Iniciou sua formação no Conservatório Municipal de São Paulo, e estudou com Antonio Carlos Carrasqueira e Grace Henderson, entre outros mestres. Seu grande interesse pelo jazz contemporâneo a levou a explorar técnicas de improvisação. Posteriormente, graduou-se e pós-graduou-se na London University, tendo estudado harmonia e composição com Peter Driver e David Owen, no Departamento de Jazz da Goldsmiths College. Radicada em Londres, atuando como solista ou em conjuntos de formação diversa, tem se apresentado no Nacional Theatre, Royal Festival Hall, British Museum, Brazilian Music Festival, ao mesmo tempo em que desenvolve intensa atividade didádica. Tem entre suas principais influências Miles Davis, Egberto Gismonti, Herbie Mann, Villa-Lobos, Pixinguinha, Milton Nascimento e Chico Buarque. A música brasileira e o jazz são, portanto, os pilares principais sobre os quais Lucia erigiu seu gosto musical e é esta a paisagem estética que ora nos apresenta em Sundial.

Na faixa-título, depois de introdução consistente em base rítmica de sabor bem brasileiro, executada pelas cordas e percussão, enuncia-se melodia vibrante, desenvolvida pela flauta, em progressões ascendentes, até o ápice agudo, a partir do qual outros contornos e climas serão delineados. Nesta primeira faixa, abre-se o leque da manhã, abre-se o tempo de Sundial, e o relógio das cores é um círculo em constante mutação. O círculo contém toda a música, sua ideia, a concretude em que vibra e a multiplicidade de seus espelhos.

Como lembra Stravinsky, em sua Poética Musical em 6 Lições2, "a música — diz o sábio chinês Tchen-ma-tsen em suas memórias, é o que unifica. [...] Pois a unidade da obra tem uma ressonância toda própria. Seu eco, captado pela nossa alma, soa cada vez mais próximo. E assim a obra acabada flui para ser comunicada, até, mais adiante, refluir para sua fonte".

Em "Sobre o papel" e "Desenho", é possível vislumbrar elementos de metalinguagem. Na primeira, após a introdução executada pela flauta de Lucia, as frases iniciais da letra já apresentam o vasto tema da criação artística. Valdo Silva entoa: "Gritam sirenes submersas / nas tardes descontentes / e eu sobre o papel / em guerra sem fim / Pra que criar algum sentido / se todas as quimeras / já trazem em si / a dor e o prazer? / Bate as asas o serafim ...".

"Desenho" abre-se com um bem articulado diálogo entre a flautista e o teclado de Chris Wells. Com elegância, sem pressa, a flauta vai abrindo belos desenhos melódicos e expandindo os contornos da própria criação. Tocar é, aqui, expandir limites, figuras e horizontes, integrar sinestesicamente cores e raízes, e avançar em direção à expressividade plena.

"São João" e "Ilhabela", conforme a sugestão dos próprios títulos, apontam, em suas paisagens cromáticas, nuances de imagens tipicamente brasileiras, visivelmente inspiradas na dicção de nossa melhor bossa-nova. Em "Ilhabela", alternam-se ideias melódicas ascendentes e descendentes, por vezes intercaladas com ornamentos, enquanto os violões e o baixo compõem um panorama análogo a um espelho dágua.

Em "Beija-Flor", células rítmicas rápidas repetem-se com pequenas alterações melódicas, num gracioso voo minimalista que se interrompe no repouso. A breve oscilação das asas se reitera, iluminada pelo inventivo trabalho do percussionista e compositor Chris Wells. As cordas — violões e baixo desenvolvem suas vozes, recebem novamente o tema inicial, pela flauta, que, agora, experimenta outro rumo e conduz todo o grupo de instrumentistas para um virtuosístico ponto de encontro.

"Kaleidoscope" inicia-se com belas frases da lenta melodia enunciada pela flauta solo, na espessura de oportunos vibratos, inicialmente num registro de altura média e, em seguida, em região aguda. Silêncios eloquentes valorizam a identidade de cada som. A expansão de um largo espectro de ideias sonoras parece emanar de regiões longínquas. Surgem, então, o teclado e a percussão, em marcações igualmente lentas, e, logo depois, os solos das sempre competentes cordas completam a multiplicidade de luzes. Comunhão e polifonia para ouvidos sensíveis e exigentes.

Em sua variedade de formas e texturas rítmicas, Sundial se apresenta como um objeto estético perfeito, que vibra poeticamente na multiplicidade artística de sua unidade e apresenta o  talento da flautista Lucia Viola, titular de um espaço próprio, erigido com singularidade a partir da confluência estilística do que de melhor tem produzido a música dos séculos XX e XXI, quer no âmbito popular, quer no universo do jazz, quer na esfera da música erudita. Em todo o seu trajeto de experimentos e nesta bela realização fonográfica, é preciso destacar, ainda, uma influência, célula-matriz de tantas interações: a antena especial de Debussy.

Sobre a intérprete brasileira, escreveu Richard Stagg: "Generous helpings of Brazilian sunshine are beamed to us by Lucia Viola... Don your shades, commander a chaise-longue, order something in a glass with ice, face the sea, and dream as you wait for the shadow to lengthen" (Pan — The Flute Magazine).

A riqueza do álbum também se deve ao ajuste perfeito entre os talentos de Chris Wells, Ife Tolentino, Mike Eaves, Gustavo Roriz e Valdo Silva. Chris já é conhecido do público brasileiro pelos trabalhos desenvolvidos com Ivan Lins, Guinga, Marcos Valle, João Donato e Wanda Sá, entre muitos outros. Graduado pela Guildhall School of Music e Drama, já gravou com Paul McCartney, Luciano Pavarotti, com a London Phillarmonic Oschestra e a London Symphony Orchestra. O paulista Ife Tolentino iniciou sua carreira no Brasil, tendo permanecido por mais de uma década no Rio de Janeiro, tocando com Nana Vasconcelos, Toninho Horta, João Donato, Sivuca, Dominguinhos, Fagner e Jacques Morelebaum. Nos anos noventa, radicou-se em Londres, onde trabalhou com Mônica Vasconcelos, Steve Lodder, John Parricelli, Paul Clarvis e Ingrid Laubrock, entre outros. Mike Eaves, que divide com Ife as cordas de Sundal, é compositor e violonista dos mais experientes do cenário instrumental contemporâneo, sendo um dos fundadores do bem sucedido projeto Sessions Online [clique aqui para saber mais]. Vem atuando como solista e em concertos, já tendo se apresentado com a Royal Phillarmonic Orchestra, BBC Concert Orchestra, London Symphony Orchestra,, e com Shirley Bassey, Will Young, John Williams, entre outros. O baixista brasileiro Gustavo Roriz graduou-se em Música pela UNICAMP, onde estudou com Cyro Pereira, Jorge Oscar, Arno Von Butner, entre outros. Já se apresentou em Moçambique, África do Sul, Estados Unidos, Japão, Espanha, República Checa, Alemanha, Argentina, Uruguai e Chile. Atualmente, está radicado em Portugal e pertence à atual formação do Grupo Madredeus. Valdo Silva, que faz participação especial numa das faixas de Sundial, é cantor, compositor e violonista. Nasceu em Goiás, onde iniciou carreira, e já morou em Londres durante oito anos, tendo tocado e gravado com diversos músicos brasileiros e estrangeiros. Também fez parte, como cantor, da série  Born to Run, veiculada pela BBC 1. Em Portugal, Valdo gravou o disco Mistura Tranchã, a ser brevemente lançado.

Concluindo estas notas sobre o álbum de Lucia Viola, é necessário realçar o elevado teor de poeticidade presente em todo o projeto, desde sua concepção até a obra gravada. A expressividade do som está na suave alquimia das formas, que, em desenhos e redesenhos, atingem a sofisticada liberdade do improviso. E, no caleidoscópio de variações possíveis, reportamo-nos à fala de Lucia Santaella3, que, refletindo sobre a Poesia e a Música, relembra: "Ao trazer para o poema indagações sobre estruturas da partitura musical, Mallarmé preencheu o universo da escritura poética com a densidade secular do pensamento das formas levado a efeito pela escritura musical, detonando a evidência de que, por baixo dos sons audíveis, existe uma outra música inaudível, aquela que é feita dos movimentos constelares da música das formas".

Música, tempo e relógio. Improviso, desenho, luz-matriz. Nesta rede de associações, impera a metamorfose: variação de timbres nas instâncias que o silêncio escolhe e tece para a expressão do som pleno. Nesta faixa de transmutações, insere-se Sundial, o belo álbum de Lucia Viola.

 

 

Notas

 

outubro, 2009

 

 

 

 

 

Lucia Viola em Germina

> Entrevista, por Beatriz Amaral

 

 

Beatriz Amaral. Mestre em Literatura e Crítica Literária, musicista e escritora, publicou nove livros, entre os quais Planagem (1998), Alquimia dos Círculos (2003), Luas de Júpiter (2007).
 
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